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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Os meus botões


por Júnia Puglia     ilustração Fernando Vianna

 No passado recente, o mundo se dividia entre capitalismo e comunismo, Estados Unidos e União Soviética, como consequência da divisão de áreas de influência territorial e política que se seguiu à Segunda Guerra Mundial. Como sabemos, a rendição do Japão, que precipitou o fim do conflito global, foi obtida pelo uso de bombas atômicas, um recurso extremo e definitivo.

A partir daí, esses dois lados, de tendências políticas divergentes, que se haviam aliado para ganhar a guerra contra forças realmente opostas, passaram a viver em permanente beligerância, cada qual latindo para o outro o tempo todo e ameaçando usar seu respectivo arsenal nuclear para ampliar e jamais perder um milímetro sequer do poder ou dos territórios divididos entre eles. Instalou-se, assim, a "guerra fria", feita de espionagem, infiltrações, manipulação, muitas ameaças e alguns quase-ataques. A vida no planeta estava em jogo, uma vez que as ogivas nucleares em poder de cada lado eram mais que suficientes para não deixar nenhuma florzinha ou passarinho de lembrança, caso os botões dos mísseis fossem acionados. Talvez baratas, bichos de idade contada em milhões de anos, sobreviventes de todas as catástrofes anteriores, segundo as piadas lúgubres que se contavam.

Mas um dia essa dureza toda afrouxou, os alemães derrubaram com as mãos o muro que simbolicamente dividia o mundo, um historiador decretou o fim da História e todo mundo prendeu a respiração, pra soltar em seguida, num anticlímax que, olhado à distância, teve o seu lado cômico, tão bem registrado no filme "Adeus, Lenin!". Alguns dinossauros perduraram e resistem, mais por teimosia e conveniência do que por convicção, e preservam seus países como parques temáticos, tristes disneilândias ideológicas.

Em termos históricos, tudo isso aconteceu de ontem pra hoje, e muita gente ainda tem dificuldade de perceber que o binarismo político virou pó de traque, a dicotomia de pensamento caducou de vez, o certo e o errado de viés religioso e ideológico se transformaram em peças de museu. Estão nos atrasando, e muito.

Ainda somos bem capazes de destruir a vida no planeta, minando-a na sua própria essência, quando destruímos os elementos essenciais para a sua manutenção e fazemos desaparecer a água, entupimos o mundo com motores movidos a combustíveis fósseis e lixo de todo tipo e desprezamos a urgência de dividir a comida de maneira que encha a barriga de todos os seres vivos todos os dias, entre outras tantas coisas. E, ironia das ironias, substituímos as disputas políticas por terrorismo de inspiração religiosa, como se andar para trás nos devolvesse as referências estáticas, que tanta falta fazem a quem não consegue perceber a beleza, a força imensa e a possibilidade de justiça embutidas no pluralismo e na diversidade, filhos mimados da liberdade.

Ultimamente, pouco se fala dos arsenais nucleares, mas isto não significa que tenham deixado de existir. Por enquanto, estão quietos, e nós continuamos aqui. Se formos espertos o suficiente e conseguirmos avançar, mais do que retroceder, poderemos ficar por muito mais tempo.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

O rei das matas

Passados os 50 anos do golpe militar a coluna 1964+50 segue firme em 2015, mas agora com novo título: VIVOS. Afinal, mortos e desaparecidos estão vivos na nossa memória e na nossa história.


Osvaldo Orlando da Costa
Nascimento: 27 de abril de 1938
Cidade natal: Passa Quatro - MG
Morte: abril de 1974
Região final: matas do Araguaia
Causa da morte: tiro
Status: desaparecido

por Fernanda Pompeu ilustrações Fernando Carvall

A Guerrilha do Araguaia tem uma narrativa fragmentada. Um quebra-cabeça de fatos e versões. Há uma névoa. Em parte, por insistência das Forças Armadas em negar que os acontecimentos tenham acontecido. Seguindo a ordem de matar e ocultar, quase meio século depois, dezenas de militantes seguem na macabra lista de desaparecidos. Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão do PCdoB, é um deles.

Apontado como o primeiro militante a chegar no Araguaia, em 1966, e um dos últimos eliminados por volta de abril de 1974. Nesses oito anos, Osvaldão ficou famoso, entre os camponeses da região, por ser profundo conhecedor da arte de escapar, se esconder, sobreviver. Tal capacidade irritou bastante os militares, a ponto de sua captura ser tratada como questão de honra. Quando o exército infiltrou agentes entre os militantes, a lógica era serem discretos. Com exceção do Osvaldo: “Se trombarem com ele, eliminem”. Mesmo que isso estragasse o disfarce.

Antes do Araguaia, o mineiro de Passa Quatro viveu na capital da ex-Tchecoslováquia, onde cursou até o terceiro ano de Engenharia de Minas. Homem negro, quase dois metros de altura, 100 quilos, boxeador amador, carismático ele fez furor no leste europeu. “Quando cheguei em Praga, os meninos passavam saliva no dedo e esfregavam meu braço, para ver se a cor da minha pele saía. Eles nunca tinham visto um negro.” Segundo o escritor theco Cytrian Ekwensi, o brasileiro literalmente “parou a cidade”.

Muito se conta de Osvaldão no Araguaia, alguns matutos o consideravam imortal. Soldados temiam sua força e astúcia. Mas tudo isso terminou no dia que um tiro voou em sua direção. Testemunhas relatam que, na sequência, os militares içaram o morto por helicóptero e expuseram o cadáver para intimidar os camponeses. Depois cortaram sua cabeça e deram sumiço no corpo. Restaram a fama, a lenda, as lacunas da história.

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Fernanda Pompeu é escritora e redatora. Fernando Carvall é o homem da arte.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

A emoção quer ingressos para voltar aos estádios


Por Pedro Mox*

Lembro-me quando fui, ainda moleque, aos jogos do meu time pelas primeiras vezes. Filas intermináveis para chegar ao estádio. O melhor churrasquinho de gato da cidade vendido nos arredores. Toda a massa de torcedores lá reunidos pela mesma paixão. Havia apenas dois setores, sem contar os camarotes; a social, coberta, e o resto do estádio. Sem cadeiras, sem teto e com sanitários precários. Banco de reservas em concreto, idêntico à maioria dos pontos de ônibus da cidade. O lanche era espetinho de frango sem o espeto, amendoim e pipoca. Nas arquibancadas, circulavam vendedores de refri, cuba e cerveja.

Atentei a isso recentemente, enquanto fazia um trabalho no mesmo estádio – que, na verdade, não é mais o mesmo. Está muito mais bonito, modernizado. Quase todo coberto, várias entradas. As cadeiras (agora, todos os lugares são cadeiras) desenham o escudo do time. Internet sem fio, assentos confortáveis para comissão técnica e suplentes.

Enquanto esses dois estádios misturavam-se ante meus olhos e minhas lembranças, não pude não questionar o caminho que nosso futebol está tomando. Um rumo que parece não permitir modernidade e torcida  concomitantemente. Com a Copa vieram as arenas, modernas. Entretanto arrisco dizer que sem a mesma vibração dos tempos cujos gritos da geral do Maracanã ecoavam campo adentro. Podemos, quiçá devamos, nos acostumar à organização vinda dos estádios europeus.

No entanto, a transformação da torcida em platéia não me parece um quesito fundamental. O futebol vive dos torcedores, da turba que, faça chuva ou faça sol, deixa tudo de lado para apoiar o time.   

O estádio da minha infância lembra o que se vê até hoje na Argentina; muitas cantorias e trapos, como eles chamam bandeiras e faixas. A devoção dos hinchas, inclusive, merece ser notada. Toda a festa antes das partidas, músicas durante todo o jogo, incentivo, mesmo nas situações mais adversas. Isso não tem a ver com violência. Isso é estádio.  

O extremo oposto, igualmente, não é nada saudável. Torcedores não precisam de jaula, algo que felizmente conseguimos abandonar – é muito melhor sentar na arquibancada ao lado do banco de reservas do que fossos e gradis medievais. O arremesso de todo tipo de objetos dentro das quatro linhas foi coibido com punições aos clubes no Brasil, mas não raro, na Libertadores, policias precisam “blindar” jogador que bate um escanteio. Algo vergonhoso.

Aqui mesmo, em alguns estados, a entrada do batalhão de choque para “proteger” o árbitro ao final das partidas é, no mínimo, desproporcional.

O ponto central é: uma situação não implica ou impede a outra. Não precisamos de espectadores de futebol para acabar com vândalos disfarçados de torcedores. Tampouco necessitamos de brigas após qualquer partida para provarmos ser realmente apaixonados. Torcer implica ficar mal-humorado, se incomodar, não querer ver ninguém após a derrota num clássico. Chegar e sair do estádio xingando ou chacoteando o rival. O que  distancia-se anos luz de bater na cabeça de outro com uma barra de ferro pela camisa que usa.

No último Palmeiras x Corinthians, as confusões não foram causadas por uma briga entre torcedores rivais, mas entre torcedores palmeirenses e polícia, e entre os próprios corintianos. Torcida única, posto, não é a solução. Aliás, ela só serve para comprovar a apatia do estado nas questões relativas, mas não necessariamente ligadas, ao esporte bretão.

Tomemos como exemplo outra situação no mesmo final de semana: ao ver que num vagão do metrô estavam quatro são-paulino, 40 organizados do Corinthians resolvem invadir o trem para agredi-los. Findo o incidente, assinam um termo circunstanciado e vão para casa como se nada tivesse acontecido.

A conivência com a qual estado, polícia e organizadas lidam com esse tipo de fato explica o porquê deles ainda acontecerem. Medidas paliativas como sempre, discursos vazios e ação zero, como tendemos a tragicamente acostumarmo-nos. É um crime, além de esdrúxulo, deslocado do campo de jogo. Contudo, por ser relativo ao futebol, recebe tratamento leniente e inócuo.

Todos lembram da briga generalizada entre torcedores do Atlético-PR e Vasco, na última rodada do brasileiro de 2013. Dos 31 indiciados, 22 tiveram, esta semana, direito à suspensão do processo. Em contrapartida, não poderão ir a eventos esportivos nem cometer outros crimes durante dois anos. Parênteses, como se não poder cometer crimes fosse punição para qualquer coisa.

Da batalha campal no Couto Pereira em 2009, num Coritiba x Fluminense, apenas 14 pessoas foram identificadas. Metade cumpriu penas brandas e metade ainda aguarda julgamento. Ninguém está/foi preso.

Em Santa Catarina, torcedores organizados não podem frequentar estádios com artefatos das torcidas, mas podem ir a todos os jogos desde que usem outro fardamento. Reprime-se a entidade, como se fosse um ser próprio, e, por tabela, os que não têm nenhum problema com confusões. Porém às pessoas que executam atos passíveis de punição, medida alguma é tomada.  
 
O medo e os problemas com violência – sim existentes – fizeram com que grande parte da população se afastasse dos gramados. O combate acabou dando-se, todavia, com a simultânea extinção do torcedor torcedor, que chora e comemora os feitos de sua agremiação. Dentro de campo, ou melhor, dentro dos estádios, desenhou-se uma situação que parece não poder coexistir, mas ela pode.    

2015 poderá apresentar passos importantes para o futebol brasileiro. No ano seguinte à Copa do Mundo, nossos clubes tiveram algo próximo ao que pode se chamar de pré-temporada. O Bom Senso FC articula-se em favor do esporte. A medida provisória que permitiria o refinanciamento das dívidas dos clubes sem qualquer contrapartida foi felizmente vetada. Apesar da CBF, novos ares podem soprar sobre nossos gramados. 

Por fim, sim, eu gosto de belos estádios. Torço apenas para que a emoção de antigamente volte a frequentá-los.



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 Pedro Mox
, jornalista e fotógrafo, especial para o NR. Imagem: Jornalismo FC

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Caixa postal


por Júnia Puglia    ilustração Fernando Vianna

No meio do feriadão de Carnaval, um almoço inesperado, no miolo do interior paulista, aonde cheguei com amigas em cujo carro me enfiei quando soube de seus planos. A mesma região de onde parti, há muito tempo, rumo ao cerrado transformado em cidade futurista, cheia de vícios e defeitos velhos, velhíssimos.

A ideia para o domingo era uma rápida visita à tia Vanda, uma simpática senhora nonagenária, e que ela nos acompanhasse ao almoço num restaurante. Plano que ela ignorou solenemente, oferecendo-nos delícias italianas caseiras e um daqueles momentos que parecem suspensos no tempo e no espaço. A conversa tecia uma teia de nomes de parentes, casamentos, descasamentos, gestações, partos, mortes, netos, bisnetos, tantos, que desisti de tentar acompanhar.

A certa altura, declarou: "se eu pudesse reencarnar, queria nascer homem". Perguntei por que, e ela: "por causa da vida boa deles". Exatamente as mesmas frases que ouvi de minha avó há mais de cinco décadas. Um tratado inteiro sobre assimetrias de gênero.

Horas depois, chegou-me a notícia paralisante sobre a morte trágica de duas mulheres minhas conhecidas e estimadas, num acidente de carro. Ambas se ocupavam da dura tarefa de empurrar ladeira acima políticas públicas que permitam às descendentes da Dona Vanda uma "boa vida" nesta atual encarnação. Seu legado não será desperdiçado.

Mais um dia no calendário momesco, desfrutado num jardim de verde intenso, passarinhos e morcegos, cercada de gente acolhedora e generosa. Nada se compara à intensidade de convivência e à comilança que rola nas cidades pequenas. Arroz integral, legumes assados e peito de frango branquelo, só depois de voltar para casa.

Numa cidade próxima, onde fui criança e adolescente, reencontrei o inesquecível professor de francês, localizado graças ao Facebook. Algumas horas de enorme alegria e uma emoção dessas que a gente economiza por pura tolice. No caminho de volta, minha Elis interna cantava: "Eu quero encontrar as pessoas, de mãos e de olhos abertos... eu preciso encontrar as pessoas, ficar de mãos dadas com elas, conversar com a boca e os olhos do coração."

Foi tudo muito rápido lá, mas por sorte pude caminhar alguns minutos pela belíssima praça ladeada por oitizeiros centenários, a cuja sombra lambi incontáveis picolés vermelhos. Mais alguns passos, e eis a agência dos correios aonde ia todos os dias abrir a caixa postal, a mais prazerosa incumbência familiar de que tenho memória.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Morte no Araguaia

Passados os 50 anos do golpe militar a coluna 1964+50 segue firme em 2015, mas agora com novo título: VIVOS. Afinal, mortos e desaparecidos estão vivos na nossa memória e na nossa história.



Maria Lúcia Petit da Silva
Nascimento: 20 de março de 1950
Cidade natal: Agudos - SP
Morte: 16 de junho de 1972
Local da morte: Pau Preto, Araguaia
Causa da morte: tiro
Identificação da ossada: maio de 1996

por Fernanda Pompeu   ilustrações Fernando Carvall

Há quem diga que Maria Lúcia morreu em confronto com uma patrulha do Exército na região do Araguaia, sul do Pará. Nessa versão, ela tombou com a revólver na mão e a revolução no coração. Também há o relato de que Maria teria sido executada: recebeu o tiro e caiu morta. O assassino seria um camponês que se fazia de amigo, quando na verdade era inimigo. Dez minutos depois do disparo de carabina, helicópteros do Exército Brasileiro apareceram metralhando a área.

Passados 43 anos, as versões de como a jovem de 22 anos morreu ainda convivem. Mas há fatos irrefutáveis. Por exemplo, a ocultação do cadáver. Na época da ditadura militar, a ordem era matar, por tortura ou execução, e sumir com o corpo. Tal prática é a raiz da eternizada angústia de familiares e amigos que nunca puderam enterrar os seus queridos.

Mas no caso de Maria Lúcia Petit da Silva, em 1991, a história começou a mudar quando a ossada de uma mulher, enrolada num pedaço de pano de paraquedas, foi encontrada no cemitério de Xambioá (em tupi, pássaro feroz), no atual Tocantins. Os indícios apontavam se tratar dos restos mortais de uma guerrilheira do Araguaia.

Cinco anos depois, houve o reconhecimento feito por técnicos da Unicamp. Maria Lúcia foi sepultada em Bauru, com a presença de sua mãe Julieta. No entanto, seus irmãos Jaime e Lúcio seguem desaparecidos, como aliás todos os outros militantes da Guerrilha do Araguaia. Para nunca esquecer: 434 pessoas morreram ou desapareceram nos anos de chumbo. É claro que estamos falando dos nomes notificados.

Apesar da existência breve, Maria Lúcia fez história política. No fulgurante 1968 - ano marcado por juventudes nas ruas em vários países - ela participou do movimento estudantil secundarista. Dois anos depois, militante do PCdoB, foi para Goiás e logo após para o sul do Pará. A ideia era estar ao lado dos camponeses para tecer a resistência à ditadura de 1964 e preparar a revolução que - na visão daquela esquerda - derrubaria as injustiças do Brasil. Roubaram-lhe a vida por conta disso.

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Fernanda Pompeu é escritora e redatora. Fernando Carvall é o homem da arte.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Beijos de língua


por Júnia Puglia  ilustração Fernando Vianna

 alecrim mexerica jamelão jerimum

gérbera jenipapo jerico alabastro

libélula cajuína primavera cambraia

fúcsia alcaçuz bruma sirigaita

zimbro zumbi libélula escarlate

brim bugiganga luz estrela

claraboia filigrana urucum cítara

mirabolante lampreia púrpura

berinjela gloxínia quinquilharia

picolé marroquino negritude prisma

alfazema pirilampo frenesi purpurina

amálgama sucuri sangria cardamomo

salamandra silhueta bromélia

mafuá manjericão

Lindas. Agora, em voz alta, pausadamente. Delícia!

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

O internacional

Passados os 50 anos do golpe militar a coluna 1964+50 segue firme em 2015, mas agora com novo título: VIVOS. Afinal, mortos e desaparecidos estão vivos na nossa memória e na nossa história.

David Capistrano da Costa
Nascimento: 16 de novembro de 1913
Cidade natal: Boa Viagem, CE
Desaparecimento: março de 1974

por Fernanda Pompeu   ilustrações Fernando Carvall

A primeira vez que ouvi falar do David Capistrano da Costa foi por intermédio do meu pai, um comunista de carteirinha. Então os dois eram do Partidão. Papai na base, David na diretoria. Anos depois meu pai, já no PT, me falou de outro David Capistrano, o filho. Este, morto precocemente, foi prefeito de Santos e brilhou no sistema de saúde da cidade.

Mas o assunto desta crônica é o David Capistrano, pai. Antes de ser “desaparecido” - ao lado de José Roman, em março de 1974, numa viagem entre a gaúcha Uruguaiana e São Paulo - David encarnou o sonho de todos os comunistas da velha-guarda, o de ser um soldado internacional. Afinal, os injustiçados do planeta não são todos iguais?

Nascido em Boa Viagem, Ceará, em 1913, o garoto iria ver muito mais do que paisagens do sertão e ouvir além dos gritos agudos das arapongas. Assim em 1935, ele participa do Levante Comunista no Rio de Janeiro, capital federal. Aquele em que deu tudo errado, pois o povo faltou ao encontro. David, então sargento, é expulso das Forças Armadas e levado ao famoso presídio da Ilha Grande. De onde, com outros companheiros, foge a nado. Um ano depois, David entra na Espanha, integrando as Brigadas Internacionais com o objetivo de derrotar o generalíssimo Franco. Seria mais uma batalha perdida.

O país seguinte é a França. Lá o insistente comunista participa, juntos aos partisans, da Resistência Francesa frente à ocupação nazista. Ele é pego e deportado para um campo de prisioneiros na Alemanha. Depois de liberado, retorna ao Brasil sendo imediatamente preso. Ufa! É solto com a Anistia de 1945. Dois anos depois, é eleito deputado estadual pelo PCB. Tem uma vida parlamentar curta, uma vez que seu partido será rapidamente empurrado de volta para a ilegalidade. Com o mandato cassado, David segue editor da Folha do Povo e de A Hora - jornais ligados ao Partidão, em Pernambuco.

Por força do Golpe de 1964, pesadelo político em que os comunistas eram vistos como o feio diabo e acusados de comer criancinhas, Capistrano entra na militância clandestina. Algum tempo depois, embarca para a Tchecoslováquia. Até que o banzo bate forte. Ele volta ao Brasil. Mas por conta e obra dos militares, será para nunca mais ouvir o canto das sabiás e o vento balançando as palmeiras em flor.

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Fernanda Pompeu é escritora e redatora. Fernando Carvall é o homem da arte.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Quer lutar?

por Carlos Conte*

Tem gente que gosta de começo de ano. Eu não. Pra mim só melhora depois, talvez semanas, meses depois, quando já não me lembro mais do baque que é voltar de férias e recomeçar. Recomeçar sempre!, diz o personagem Carlos do filme “São Paulo S.A.”. O título do primeiro roteiro escrito por Luiz Sergio Person era “Agonia”.

Ao voltar de viagem constato, com pesar, que a vida só recomeça se houver trabalho. Os cães estão desesperados de fome e carência, há um rato na lavanderia, a calçada da frente está cheia de mato e sujeira, meu quarto precisa ser arrumado (e essa arrumação vocês não imaginam como é difícil); há um ano inteiro de trabalho pela frente, e então me dou conta de que as férias nunca são o bastante e que este novo ano só vai mesmo pegar no breu no momento em que eu recolher o primeiro cocô do quintal e jogar no lixo o feijão que está podre na geladeira desde o ano passado.

Por isso adotei um instrumento de autoajuda bem curioso: estou usando uma foto do Bukowski (outro Charles) como plano de fundo da área de trabalho do meu computador. É uma das poucas fotos em que o velho não aparece com um copo na mão: está de pé, de frente para o fotógrafo, em posição de guarda, chamando pra briga. Assim, toda vez que eu abro meu laptop de manhã, dou de cara com o velho safado prestes a me acertar um jab.

– Quer lutar?
– De novo, Buk?...
– Em guarda, garoto!

E então é preciso fazer alguma coisa, é preciso reagir, matar um leão por dia, recolher as contas na caixa de correspondências, escovar os dentes, pagar as contas que eu acabei de recolher, trabalhar. Recomeçar. Como Sísifo e sua pedra maldita, recomeçar a cada dia. E nisso o Buk me ajuda, por incrível que pareça.

Vão me dizer que ele era um péssimo exemplo: alcoólatra, agressivo, machista. Na verdade, ele mesmo diria isso, porque ninguém melhor do que Charles Bukowski para destruir Charles Bukowski: “Bukowski chorou em hotéis que eram verdadeiras espeluncas, Bukowski não sabe se vestir, não sabe falar, tem medo de mulher, sofre do estômago, vive assustado, não gosta de dicionários, freiras, moedas, ônibus, igrejas, bancos de praça, aranhas, moscas, pulgas, tarados; Bukowski não foi pra guerra. Bukowski já está velho... ; se fosse macaco, seria expulso do convívio da espécie”.

Como ele mesmo diz nos textos autobiográficos, era um zero à esquerda no quesito “administrar a própria vida” – aluguéis sempre atrasados, pilhas de garrafas de vinho em cima da pia, nenhuma cueca limpa para vestir... Pior quando ficava sem luz por falta de pagamento. Pior quando estava de ressaca (isso sempre). A vida pode estar sempre pior – mas o velho Buk tirava de letra, rindo dos outros e de si mesmo, sem autopiedade. Quando acordo de manhã, não espero que me deem a mão...

– Quer lutar?
– Que tal conversar antes?
– Nada disso, garoto, conheço você e suas desculpas. Em guarda!
– Vai encher o saco de outro, porra!... – e tento correr para longe daquela visão dos infernos.

Mas não há saída. É preciso enfrentar. Por mais que meu corpo implore “Não vá, por favor, não vá!”, num misto de preguiça e desesperança, lamentando o fim dos sonhos, o fim das férias, lamentando, acima de tudo, o fato de um dia ter saído do útero quente e confortável de mamãe, é preciso levantar guarda e ficar atento antes que seja desferido o primeiro golpe.

– Quer lutar?
– Desiste, Buk, já era. Eu sou mesmo um perdedor... Que foi? Tá rindo do quê?
– Só agora você se deu conta de que é um perdedor?
– Vai se foder, velho brocha!
– “Todo homem é vítima de um meio que se recusa a compreender sua alma”.
– Li isso em algum lugar...
– Claro que você leu isso em algum lugar! Fui eu que escrevi.
– Pois é, você é chato mas pelo menos escreve bem...
– Eu sou o melhor de todos, garoto!
– Ai!
– Levanta essa maldita guarda!
– Meu nariz, filho da puta!...

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Carlos Conte, sociólogo, é também resenhista e cronista. Mantém a coluna mensal Casa de Loucos, uma homenagem aos mestres João Antônio e Lima Barreto.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Uma presidenta a caminho do Campo da Pólvora

Dilma parece dirigir tranquilamente rumo a uma explosão. Alckmin e Eduardo Cunha têm algumas toneladas de dinamite para emprestar. Estamos vivendo uma situação pré-revolta?

por João Peres*

Poucas imagens definem tão bem um governo. Poucos governos são tão infelizes em seu autorretrato. Em 11 de junho de 2014, Dilma Rousseff foi a Salvador. Era um evento de grande força. Depois de anos e anos de enrolação entre prefeitura e governo da Bahia, o metrô da capital entrava em operação graças aos recursos enviados pela administração federal. Uma data perfeita: às vésperas do começo do Mundial, um retorno efetivo dos investimentos provocados pelo evento da Fifa. Uma agenda positiva a poucos meses de eleições que se avizinhavam difíceis em todos os níveis.

Os assessores de Dilma planejaram uma foto tradicional para o momento: coloca-se a presidenta dentro da cabine de operação de um trem, ela sorri, acena e vai embora, com missão cumprida. Nenhum assessor ou ministro, porém, parece ter notado uma piada de caráter tragicômico – ou, se notou, não contou. O fotógrafo Roberto Stuckert Filho, integrante do clã que há décadas registra os poderosos de Brasília, flagrou a presidenta a caminho do Campo da Pólvora. A culpa não é dele, obviamente. Mas ninguém por ali parece se ter dado conta de que o nome da estação a que se dirigiria aquela composição era esta infeliz coincidência do destino. “Em teste”, “Viva Salvador”, “Metrô”: qualquer nome escrito no letreiro serviria. Até “Bonde do ACM” estaria melhor. Havia meia dúzia de nomes de outras paradas que poderiam ter sido usados. Não, não foram: Dilma comandou um trem que rumava para um lugar, digamos, explosivo.

Pesquisar fotos da presidenta para uso em reportagens sempre foi difícil. No período Lula havia sempre dezenas e dezenas de opções. Com Dilma, não. Predominam as imagens carrancudas, reveladoras de um corpo endurecido, sem grande capacidade de expressão. Quando não se vai por esse caminho, a seleção oficial de imagens prioriza as que ela aparece no corpo a corpo, em fotos posadas ao lado de populares ou de uma claque que claramente não está à vontade com a cena.

Durante as eleições, a equipe de campanha tentou fazer de Dilma o seu oposto: não havia nos álbuns de imagens uma foto que não mostrasse um largo sorriso. Era uma candidata eternamente sorridente numa campanha em que havia poucos motivos para isso. Quem procurava por retratos simbólicos da gravidade do momento tinha de apelar a agências de notícias, ainda que, por vezes, estas pecassem por fazer o caminho exatamente contrário ao da versão oficial.

E eis que um belo dia, no programa eleitoral na televisão, surgiu a foto de Dilma na inauguração do metrô de Salvador. A repetição de um erro simbólico revela o que todos já sabemos, ou seja, que a assessoria de comunicação do entorno da presidenta é distraída, para dizer o mínimo. Olhada em perspectiva, aquela imagem intensifica seu caráter tragicômico. A presidenta exibe seu sorriso amarelo, alheia a seu entorno, na sua antinatural alegria. Junto com ela está a maquinista. Não está ali Aloizio Mercadante, o ministro-chefe da Casa Civil, afeito a aparições públicas forçadas por sua cada vez menos implícita pretensão de ser candidato ao Planalto em 2018. Não estão ali seus ministros das Cidades, do Planejamento, da Fazenda. A presidenta está sozinha enquanto toma o rumo da explosão.

Não parece que se passaram apenas oito meses desde que foi feita. A fotometáfora produzida ao acaso pela equipe presidencial não poderia ser mais adequada a nosso presente. Dilma dirige um trem que vai para o Campo da Pólvora sem que tenha sido informada por seus assessores. Está ali, dirigindo alegremente, sem notar que caminha à santíssima merda. Quem está do lado de fora abana as mãos, dá tchauzinhos, torce para que os explosivos estejam bem longe do ponto de partida para que se salvem.

O problema é a impressão de que estamos todos dentro daquela cabine. Ou quase todos, porque os mais espertos sempre se salvarão. Dilma, com o devido respeito, não cabe nesse último grupo. Como todos sabemos, faltam-lhe comunicação, habilidade política, rapidez administrativa, confiança nos outros e uma série de outros quesitos que fazem do presidente um estadista. Dela nem pedimos tanto. Não era possível esperar nada além de um aperfeiçoamento do período anterior.

Caro eleitor de Aécio Neves, terás mais ajuste fiscal do que querias. A pesquisa Datafolha divulgada no último fim de semana apenas quantifica o que já se sabia: quando o candidato vencedor implementa a agenda do candidato derrotado, causa um estrago imenso. Nela, a taxa dos que consideram o governo Dilma ótimo ou bom despenca de 42% para 23%, e os que o enxergam como ruim ou péssimo vão de 23% para 44%. Sim, uma exata inversão de curvas. A maior queda se observou entre os cidadãos com escolaridade e renda mais baixas, desmentindo pela enésima vez a tese de Fernando Henrique Cardoso de que os “grotões” são mal informados e acéfalos. A presidenta perdeu força também no Nordeste e no interior, regiões que lhe foram extremamente favoráveis na disputa eleitora.

A plataforma de corte de direitos trabalhistas, aumento de impostos e redução de investimentos fez, como era fácil prever, com que a população reforçasse a ideia de que entre o discurso e a prática nada existe. 46% dizem que Dilma falou mais mentiras do que verdades durante as eleições, 47% a consideram desonesta (contra 39% que pensam o contrário) e 54% dizem que é falsa, um crescimento de 41 pontos de 2012 para cá.

As explicações encontradas pelo entorno presidencial para a queda drástica na aprovação vão do ridículo ao bizarro. "Já convivemos com períodos de baixa aprovação nesses últimos 12 anos e mostramos que, com trabalho, somos capazes de recuperar", disse o ministro Miguel Rossetto, da Secretaria-Geral da Presidência, esse cargo que parece ter sido criado para transmitir explicações implausíveis.

Mais infeliz é o argumento de que faltou comunicação para deixar claro ao povo que os ajustes feitos agora são necessários para manter a trajetória de criação de postos de trabalho e aumento de renda. Claro, faz todo sentido: todos vamos entender que um pouco a mais de desemprego e um pouco a menos de dinheiro são bons, especialmente para garantir que o mercado financeiro aumente seus lucros mediante o aumento da taxa básica de juros e o desestímulo ao investimento produtivo.

Dilma não dá sinais de que tenha capacidade para reverter o divórcio que está ajudando a promover entre a população e o mundo da política institucional. É bem verdade que essa separação começou muito, muito antes que ela surgisse em cena, mas o cruzamento de uma série de fatores históricos e conjunturais pode fazer com que seja agraciada com o direito de jogar a pá de cal numa relação desgastada. A água de Geraldo Alckmin e a Câmara de Eduardo Cunha se somarão à herança mal resolvida das manifestações de 2013 e ao inesperado desgaste da imagem presidencial, catapultado em novembro e catalisado em janeiro.

Se a sondagem divulgada pela Folha de S. Paulo guarda espaço para uma surpresa, esta reside no fato de que Alckmin e Fernando Haddad também sofreram um enorme desgaste. Cada um por seus motivos, voltam todos a mergulhar na vala em que estiveram metidos em junho e julho de 2013. Vejamos os resultados: Dilma foi reeleita de forma sofrível graças à ajuda de uma militância que trabalhou aguerrida e calada, e aos esforços de alguns quadros políticos graúdos; Haddad perde a cada dia mais apoiadores e sofre resistências dentro de seu partido, não sabendo nem mesmo se concorre a um novo mandato em 2016; Alckmin ganhou mais um mandato de governador com os dois pés nas costas.

A conclusão que se tira disso é a óbvia: o tucano, ou as forças que ele representa, sairá deste buraco do mesmo jeito que entrou. Dilma, Haddad e o PT, não. A incapacidade de autocrítica continua como regra entre o comando petista, mesmo depois que as eleições do ano passado mostraram um partido em decadência após um período de crescimento vertiginoso garantido por um líder político único. Passado o turbilhão, as correntes que demandavam uma refundação foram escanteadas, vencidas por aquelas que consideram que o mais importante é ajeitar-se na máquina do poder e garantir um lucro individual em detrimento de uma história de lutas e avanços.

O PT, ou os quadros que mandam no PT, continuam a fingir que não são meros emergentes no meio dos quatrocentões. Hoje são chamados para as altas rodas porque bancam o baile e as bebidas. Amanhã, afastados do poder emanado do dinheiro, voltarão a frequentar o rala-coxa e o batidão, onde receberão olhares reprovadores de quem se sente traído.

“Falando francamente: muitos de nós estão mais preocupados em manter – e se manter – nessas estruturas de poder do que em fazer a militância partidária que estava na origem do PT.” Luiz Inácio Lula da Silva parece ser o único líder político que reúne os predicados necessários para algum resgate da crebilidade das instituições. Durante o discurso pelos 35 anos de seu partido, celebrados em Belo Horizonte no último sábado, ele começou mal. Apostou na retomada do Fla-Flu eleitoral, aquele que diz que a oposição não tem moral algum para criticar um partido que transformou o país. Valeu-se da ideia de que os derrotados nas urnas estão buscando abertamente a via da instabilidade, o que é verdade, mas não é suficiente: a via da instabilidade é mantida aberta por um governo que em três meses contraria todo o discurso que o elegeu, que permite o fisiologismo e a corrupção, que perde o poder da criatividade.

Lula voltou a deixar claro que entende, ao menos nas linhas gerais, o que está acontecendo: seu partido perdeu contato com a sociedade, eliminou as pontes que o garantiam o papel da inovação, frustrou admiradores novos e antigos. “Há muito mais preocupação em vencer eleições, em manter e reproduzir mandatos, do que em vitalizar o partido. As direções, tanto as regionais quanto a nacional, ficaram prisioneiras dessa lógica. Tornaram-se burocráticas, pouco representativas da nossa base social, ou então apresentam uma representação meramente artificial de setores sociais.”

Se os números do Datafolha estiverem corretos, e os dados da realidade nos permitem dizer que são verossímeis, temos uma repetição de junho de 2013 em termos de desgaste do sistema político. Por enquanto, um junho sem ruas. Vivemos uma situação pré-revolta? Se tivermos uma revolta, como será? Certamente não será a sonhada pela esquerda, aquela que conduz a uma situação protorrevolucionária capaz de finalmente assentar bases para a construção de um novo Estado – por consequência, de um novo sistema político. A famosa “voz rouca das ruas”, capturada há quase dois anos por força da mídia tradicional, transforma-se na expressão mais bruta de nosso sistema educacional político inexistente. Na hora H, sem água, sem emprego, com inflação, a imensa maioria da população não terá como expressar o que deseja que mude, por qual caminho, com quais forças. Junte-se a isso uma vontade louca de golpe branco e está feita a besteira.

“Que saiam todos”, dirão, e a resposta do outro lado será uma reconfiguração que permita deixar tudo como antes, com a diferença de que o emergente terá sido expulso do clube dos quatrocentões. Lula poderia mudar essa realidade. Em inúmeras oportunidades falou sobre a necessidade de refundação do PT. Mas reverter essa situação depende de uma característica que nunca foi a sua principal: a ruptura. As informações de bastidores têm dado conta de que o ex-presidente foi excluído dos debates governamentais pela sucessora. Se for assim, abrem-se muitas alternativas. Lula pode trabalhar por dentro para miná-la, o que leva ao risco de que acabem todos tragados. Pode romper publicamente, tentando levar consigo o PT. Ou pode assistir de camarote. Seja com Dilma, seja com o PT, seja com os demais partidos, ele terá de mostrar ousadia para não entrar no trem que leva ao Campo da Pólvora.

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João Peres é jornalista e um dos editores do Nota de Rodapé 

Quando a execução sumária é legitimada como gol de placa no campeonato de extermínio da população negra, jovem e masculina

por Cidinha da Silva*

Doze meninos e homens negros executados pela polícia baiana com tiros na nuca. Havia marcas de tortura como braços quebrados e olhos afundados, mas poderia ser obra da polícia paulista, alagoana, carioca, pernambucana. São práticas disseminadas pelo país. O mais novo tinha quinze anos, o mais velho vinte e sete.

Uma chacina não é só mais uma chacina, não deveria ser. Chacina praticada pelo braço armado do Estado é a falência total da política de segurança pública e dos valores republicanos, violação de direitos humanos.

A novidade desta foi o discurso público do governador recém-eleito caracterizando-a como operação exitosa da polícia que mata preventivamente. Foi mais longe o chefe maior da polícia, em manhã inspirada pela crônica policial que banaliza e desrespeita a vida de pessoas que pagam impostos e o salário da polícia que mata - quando deveria protegê-las. O mandatário definiu a chacina como um gol dos policiais artilheiros, que decidem (matar) em segundos e mais acertam do que erram.

Testemunhas amedrontadas do Cabula, bairro do assassinato coletivo, por sua vez, disseram que os doze meninos e homens estavam desarmados, não houve confronto, eles foram rendidos e espancados antes de serem conduzidos a um campo de barro, cercado por matagal e lá, executados.

Como o governador é de partido de esquerda, houve gente declarando saudade dos tempos truculentos de ACM. Brincadeira de mau gosto tão cruel quanto a metáfora futebolística de Rui Costa.

O governador metido a cronista respondeu irônico à pergunta feita em entrevista coletiva sobre o possível susto que a violência da operação poderia causar aos turistas paulistas, habitués do carnaval baiano. Atacou a segurança pública do estado sudestino, dando a entender que turista paulista está acostumado com a violência, pois São Paulo apresenta recorde de roubos a caixas bancários. Como sabemos que a polícia executora alegou que os doze rapazes chacinados iriam praticar assalto a bancos, não seria leviano inferir do contexto que os baianos-negros foram mortos (preventivamente) para proteger os turistas-branco-paulistas. É público também que são os turistas brancos de São Paulo que inundam o carnaval baiano em busca do decantado exotismo da Bahia negra. O intertexto racista do discurso governamental é tão macabro quanto a aplicação de pena de morte aos jovens negros.

O secretário de Segurança Pública de São Paulo não deixou por menos e chamou o governador baiano de grosseiro e ignorante (a troca de farpas lembrou uma briga de fotonovela). Revelou que o índice de criminalidade da Bahia é quatro vezes pior do que o de São Paulo (aspecto da ignorância). Concluiu que as declarações do mandatário nordestino desrespeitavam o carinho que os paulistas têm pelos baianos e a importância que o turismo tem para a Bahia (aspecto da grosseria). Pronto! A supremacia geopolítica de São Paulo encerrou o papo. Até a tréplica, lógico, quando o coronel-moderninho das metáforas futebolísticas responderá ao coronel-robocop da metrópole que despreza nordestinos.

E os doze moços mortos, cadê? Sumiram no discurso volátil e popularesco dos assassinatos justificados pelo combate à criminalidade.

E as famílias das vítimas? Ninguém as escuta, ampara, indeniza. São vítimas do artilheiro-matador num jogo pavoroso, comprado, no qual o perdedor já está definido antes do cara ou coroa do juiz. Uma voz isolada tem nome, sobrenome e endereço, uma senhora, não um jovem irmão ou primo de vítima que pode ser a próxima vítima. A avó de Natanael de Jesus Costa (17) grita na porta do hospital que o neto fora levar pizza à casa da namorada, próximo ao campo de barro, palco da encenação do combate na noite do crime. O menino sumiu de casa e reapareceu na lista de corpos a serem reconhecidos no IML.

E o grosso da população dos bairros pobres e miseráveis o que faz? Repete como papagaio o discurso de legitimação da morte ouvido nos programas sensacionalistas da TV-caça-bandidos. Julgam que ao aliarem-se aos mais fortes, aos donos das armas, receberão proteção, pois são trabalhadores e os outros são bandidos. Que nada. Ninguém, ninguém é cidadão! E o gosto do sangue das vítimas só chegará à boca e aos olhos dos apoiadores das chacinas quando os tiros ceifarem a vida dos meninos criados por suas famílias e pela comunidade, aqueles que viram crescer e que buscavam pizzas para a namorada, ou foram vencidos pela dependência química, ou pela pressão ostensiva e de ostentação do tráfico. Sempre meninos queridos, que se transformarão em corpos estendidos no chão.

Nenhuma dessas doze mortes se justifica, seja qual for a ficha criminal de quem a tinha, e ainda menos atesta o sucesso de uma operação policial. Uma operação que resulta em doze mortos é arbitrária e ilegal. É catastrófica. O policiamento ostensivo deve preservar a vida e não eliminá-la escusada por tecnicalidades explicativas.

A sobrevivência de jovens negros está em jogo diante da construção racista do suspeito preferencial. Isso já é inadmissível, mais temerário ainda é que um governante venha a público legitimar a matança como gols de placa que eternizam policiais-artilheiros nos bairros populares e desprotegidos que não podem e não devem ser oficializados como estádios de futebol, nos quais se pratica tiro ao alvo negro e jovem, como quer o boleiro-governador.

Foto: Morgana Damásio em manifestação de 2014 contra o genocídio da população negra, promovida pela corajosa e destemida campanha REAJA OU SERÁ MORT@!, na cidade do Salvador, Bahia.

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escritora, Cidinha da Silva mantém a coluna semanal Dublê de Ogum. Foto: Morgana Damásio em manifestação de 2014 contra o genocídio da população negra, promovida pela corajosa e destemida campanha REAJA OU SERÁ MORT@!, na cidade do Salvador, Bahia.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Não como antes


por Júnia Puglia   ilustração Fernando Vianna

Há poucos dias, o calendário trouxe de volta a homenagem a Iemanjá, divindade do candomblé, apropriada por outras religiões e adaptada à cultura brasileira, na lambança sincrética que nos caracteriza. Quase nada disto chegou a mim, infelizmente, pois nos ambientes evangélicos sempre houve um desprezo - frequentemente, desrespeito - pelas outras religiões. Do ponto de vista da compreensão da nossa identidade e cultura, uma grande e lamentável perda, que só se agravou nas últimas décadas, marcadas pelo aprofundamento da ignorância e intolerância deliberadas.

É uma linda figura, a da rainha das águas, cantada e celebrada em poemas, orações e canções. Se me fosse possível crer, estaria fervorosamente esperando que ela interviesse no quesito de sua especialidade.

Anos atrás, conheci uma pessoa da elite brasileira, filha de uma daquela centena de famílias "donas" do país. Educada por preceptora alemã quando menina, na adolescência foi matriculada num dos colégios que preparavam as moças das famílias proeminentes para se casar com homens que valessem a pena, sendo capazes de comandar a criadagem e entreter os convidados em francês. Essas coisas fui entendendo aos poucos, mas o que me chamou a atenção, logo nos primeiros contatos, foi como ela lidava com o dinheiro, ou melhor, não lidava. Ele sempre fizera parte da sua vida, nascera com ela, de maneira que ela o via como algo natural e disponível, sobre o qual não havia o que pensar ou com que se preocupar. Ignorava o valor monetário das coisas, o preço das mercadorias não lhe interessava, apenas adquiria o que lhe convinha ou desejava e pagava as despesas cotidianas, sem qualquer tipo de cálculo ou registro.

Enquanto a elite vivia como se o dinheiro não existisse, o Brasil inteiro vivia como se a água não existisse, de tão farta, barata e disponível que era, com a exceção histórica do semiárido nordestino, sempre tão conveniente para confirmar as desigualdades e forjar políticas públicas calcadas no paternalismo e na corrupção. Cinco anos atrás, era impensável, para a grande maioria de nós, que ela pudesse acabar, desaparecer. Desenvolvemos hábitos irresponsáveis, desde a dona de casa que lavava a calçada e o quintal de mangueira em punho, passando por sistemas de abastecimento desleixados e incompetentes, e chegando aos governantes, desprovidos da capacidade de planejar ou de reagir aos indícios da escassez. Merece um destaque especial a exploração cinicamente predatória feita pela indústria e grandes empreendimentos. A escassez que se alastra não veio por meio de alguma mágica aquática conspiratória, por muito que se tente fazer crer que sim.

Se ela acabar mesmo, será o fim de tudo. Não vai haver petróleo, soja ou diamante que dê jeito, ou que nos console. Porém, iluminando um pouco o tom do registro, talvez seja esta a oportunidade para uma reflexão coletiva profunda sobre o quanto o individualismo, a ganância e o descaso com o bem comum nos empurraram para este lugar de perplexidade com a constatação de que somos perfeitamente capazes de nos autodestruir com relativa facilidade. Ou ainda, por outro lado, de que podemos também encontrar soluções - na expectativa de que existam, não por iniciativas individuais, nem por decretos ou por milagres. Mas sabendo, desde já, que nunca mais será como antes.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Tic-tac-tac

Passados os 50 anos do golpe militar a coluna 1964+50 segue firme em 2015, mas agora com novo título: VIVOS. Afinal, mortos e desaparecidos estão vivos na nossa memória e na nossa história. 


Nome: Gildo Macedo Lacerda
Nascimento: 8 de julho de 1949
Cidade natal: Ituiutaba - MG
Morte: 28 de outubro de 1973
Cidade final: Recife, PE
Causa da morte: tortura
Versão da ditadura: troca de tiros entre militantes

por Fernanda Pompeu  ilustrações Fernando Carvall

A ficha acima é fria como todas as fichas, sejam elas de nascimento, casamento, emprego, pedido de bolsa de estudo. Fichas são como aquelas pulseiras usadas nos hospitais. Nome do paciente e de sua mãe. Dependendo da idade, o aviso-alerta PERIGO DE QUEDA. Ou seja, as fichas também nos humilham. Feitas para particularizar, tiram nossa identidade. Pois parecem comprimir a história de uma longa vida num sujeito que tende a cair.

Mas, é claro, as fichas não são todas iguais. Essa do Gildo Macedo Lacerda diz algo de um garoto morto aos vinte quatro anos sob tortura. Morrer sob tortura significa morrer sofrendo de forma violenta. Não em consequência de uma cirrose hepática, de um câncer generalizado, ou em decorrência de uma batida de carro, desastre de avião, mordida de cobra. Morrer sob tortura significa que alguém matou você. Também no caso do Gildo - e de muitos outros e outras - o corpo foi desaparecido. Leia-se ocultado da família e dos amigos. Cortejo fúnebre que nunca foi visto pela caixa da padaria, pelo jornaleiro da esquina, pelo fantasma do Farol da Barra, pelo ascensorista do Elevador Lacerda, pelo país.

Qualquer ficha que traz a data da morte é uma espécie de congelamento. Significa que a partir daquele dia e hora, tudo na pessoa vira passado. Sem futuro. Mas isso não quer dizer que a gente não possa imaginar. Não possa trafegar no universo do se. Se Gildo não tivesse sido morto teria visto a filha nascer e crescer, teria se tornado avô. Não faço ideia em quem ele teria votado nas eleições de 2014. Mas isso tem importância?

O que interessa é que ele estaria com sessenta e seis anos e poderia se sentar à mesa e contar muitas histórias. Tristes, divertidas, edificantes ou irônicas. Certamente ele narraria muitas vezes a sua prisão, o medo que sentiu por ele e por sua mulher grávida que também foi presa. Contaria da violência sofrida, mas também do sonho, da juventude, do projeto de um Brasil melhor, mais justo. Com certeza, ele teria ouvintes. Gente nova que arregalaria olhos assustados para o país dos anos da ditadura.

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Fernanda Pompeu é escritora e redatora. Fernando Carvall é o homem da arte.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Musashi e Spider

por Cidinha da Silva

Mais uma luta do Spider, o campeão volta ao tatame e os meninos ressentidos entram em ação. Às vezes penso que o Santo Antônio deles é um ídolo do esporte, tratado (e torturado) como familiar ambiguamente amado.

O Santo é amarrado, posto de cabeça para baixo, afogado em penicos, toda a sorte de malvadezas para que cumpra o dever de conseguir casamento para a dona da imagem.

Com os esportistas, no plano simbólico, é a mesma coisa. Ai do atleta que não corresponder aos instintos, às táticas (neste caso de luta) ou, simplesmente, aos desejos dos fãs. A resposta é tortura verbal certa. Uns poucos são sinceros, assumem que se tornam rancorosos com ídolos que os decepcionam.

É um perigo ser ídolo. Gente sempre se decepcionará com quem não atende suas individualistas expectativas. Dessa forma se sentiu decepcionado o poetamigo que se aproximou de mais um artista e concluiu: “quanto mais conheço artistas na intimidade, mais quero ficar perto dos meus amigos ‘peão de obra’.” E como ressoou sua declaração! Muita gente aplaudiu e concordou. Ainda bem que houve outro poeta, artista como eu, como o poetamigo, como os artistas que o frustram por quererem ser algo diferente do comum, que se opôs à voz unificada e argumentou que “tem-se uma ideia muito errada do artista, considerado quase um Deus, por muita gente. Eu, por exemplo, artista da palavra que sou, não faço a menor questão de agradar ou de ser simpático. Isso tem muito de subserviência (ao público, à imprensa, ao status quo). Quem quiser que leia minha literatura que não é feita para fazer amigos. É para inquietar e para o meu prazer, só isso. Sim! Sou apenas escritor.”

Corria frouxo o remi-remi de fã frustrado com ídolo que o desaponta até que alguém critica uma tática de luta do Spider que teria aberto a guarda, humilhando assim o adversário. O interlocutor discorda e menciona a luta entre Musashi e Seijuro, na qual o primeiro teria aberto a guarda para desestabilizar o segundo e quando este investiu confiante, aquele, já prevendo o golpe, o teria liquidado, como acontece tantas vezes também na Capoeira Angola.

A conversa então ficou interessante, onde é que Musashi lutou com Seijuro? No livro que li e que diante do solo arrasado da batalha de Sekigahara o narrador poetizava: “E depois de tudo, céu e terra aí estão, como se nada tivesse acontecido. A esta altura, a vida e as ações de um homem têm o peso de uma folha seca no meio da ventania...”, não foi. Mas também não pode haver dois Musashis, meu herói é único. Onde teria ocorrido esta batalha que não li?

Musashi é o romance épico que mais me arrebatou até ontem. Quando faltavam umas 100 páginas para terminar a leitura, eu que lia 20, 30 páginas por dia, passei a ler duas (achando que estava rápido demais). Para as últimas 10 páginas devo ter levado uns 10 dias e quando, finalmente, fechei o livro, não pude acreditar. Como? Otsu foi vencida pelo destino reservado às jovens virgens do período Keicho, foi arrastada pela velha Obaba para cuidar dela até a morte e assim Obaba matou meu sonho romântico de que Otsu vivesse a prometida história de amor com Musashi?

Finda a leitura, deixei o livro bem à vista (não consegui devolvê-lo à estante) e olhava para ele todo dia como se assim pudesse convencer Yoshikawa a enviar para a editora capítulos psicografados da história para que ela não terminasse, para que vivesse e me mantivesse acordada por mil e uma noites. Os deuses de Musashi ouviram minhas preces, organizaram em resposta uma nova luta do Spider e, graças ao burburinho em torno dela, descobri que existe o volume azul, onde acontece a batalha de Musashi e Seijuro.

Eu não assisto suas lutas Spider, não sou devota de você, nem de Santo Antônio, mas continuo admirando os sentimentos bons que você desperta na gente achatada que o enxerga como vingador altivo, leal e de bem com a vida. Admiro a família negra que você constituiu. E te devo mais essa, malungo. Musashi só voltou para mim porque devotos do UFC estavam malhando o Judas. Valeu, Spider! Boa sorte no tatame e fora dele.

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escritora, Cidinha da Silva mantém a coluna semanal Dublê de Ogum.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Outros paus

por Celso Vicenzi*

O pau do momento, nas tribos, nas praias, nas rodas sociais, até em casas de família – quem diria! – é o pau de selfie. Juro que não queria meter a minha colher de pau no assunto, mas não pude resistir. Afinal, em mãos de anônimos ou famosos, o tal disputa pau a pau com outras sensações do atual verão. Não sei se o veremos em outras estações, mas, atualmente, é um pau muito disputado. Por homens e mulheres – sem preconceito! Verdade que precisa ter um pouco de cara de pau para armar essa vara em pleno espaço público. Mas, mesmo correndo o risco de levar pau, em comentários ao vivo ou em rede, o sujeito toca o pau e segue em frente.

Outros paus, no entanto, já fizeram sucesso em terras brasileiras e além-mar. Na época em que aqui aportaram, os portugueses logo se interessaram pelo pau nativo. Calma! Não era exatamente o pau dos índios, que viviam pelados. A cobiça maior, além das índias, naturalmente, era pelo pau-brasil (Caesalpinia echinata), uma árvore originária da Mata Atlântica que foi largamente usada, principalmente, para tingir tecidos e fabricar a tinta para escrever e ilustrar as páginas de manuscritos. Nos primeiros 30 anos após a chegada da frota de Cabral, cortaram a árvore a dar com pau! E levaram tudo para Portugal. Essa exploração do pau brasileiro se estendeu ainda por três séculos, levando a árvore quase à extinção.

Em matéria de tamanho, o pau de selfie – por maior que seja o ego de quem o segura – é muito pequeno comparado ao pau-brasil, que chega a atingir 30 metros de altura e 1,5 metro de envergadura. Tão importante em nossa história que o nome do país deve-se exatamente a esse pau. Vermelho-púrpura. Lindo!

Não sei exatamente quantos paus valia, na época, cada árvore. Sei que Portugal e muitos portugueses enriqueceram. Só para ter uma ideia, uma única nau, em 1511, levou para a Europa 150 mil quilos de pau-de-tinta, um dos muitos nomes dessa árvore também conhecida por pau-rosado, pau-de-pernambuco, ibirapitanga, ibirapiranga, ibirapita, muirapiranga, orabutã e brasileto. O carregamento rendeu cerca de 2.500 ducados – ou 70 quilos de ouro. Coisa para o sujeito chutar o pau da barraca e viver feliz pelo resto de seus dias. Dinheiro suficiente para dar-se ao luxo de pagar um pintor para fazer um, digamos, self portrait.

Outro pau que ainda faz sucesso, mas foi mais festejado no passado, é o pau de fita. Uma dança folclórica trazida ao Brasil por portugueses e espanhóis, e também presente em países do México à Argentina. Um pau é fincado no chão e os participantes dançam segurando fitas coloridas que vão sendo entrelaçadas, em zigue-zague, até que o movimento, de tão encurtado, não seja mais possível. Daí, faz-se o movimento contrário, destrançando as fitas.

Nas festas juninas tem outro pau que faz muito sucesso: o pau de sebo, também denominado de cocanha ou mastro de cocanha. O costume vem do Egito e, nesse caso, o pau não é somente metafórico. É mesmo um falo, em homenagem ao deus da fertilidade, o pagão Baal. Mais tarde, a Igreja Católica cristianizou a tradição, que chegou aos nossos dias nos festejos de São João. A brincadeira consiste em tentar alcançar um prêmio no alto do mastro untado com uma substância gordurosa. O pau-de-sebo (Sapium sebiferum) é o nome de uma árvore da família das euforbiáceas, nativa da China, que foi aclimatada em solo brasileiro.

Nosso país tem ainda um outro pau bem conhecido, só que este é uma referência triste e trágica em nossa história. O pau de arara é o nome dado ao transporte de passageiros na carroceria improvisada de caminhões, ainda presente em muitos lugares pobres do país. Milhares de nordestinos, principalmente, se deslocaram por vastas regiões do Brasil usando esse meio de transporte, por vontade ou necessidade, como cantou Luiz Gonzaga, ao contar a saga de quem tentava resistir à seca e só iria abandonar suas terras, no Cariri, “no último pau de arara” (letra de Venâncio/Corumbá/J. Guimarães).

Pau de arara é também um método de tortura que foi muito utilizado pelo regime militar após o golpe de 1964. Consiste numa barra atravessada entre os punhos amarrados e a dobra dos joelhos da vítima, que fica pendurada e, com o passar do tempo, sofre dores terríveis que, se não bastassem, eram combinadas com eletrochoques, espancamentos e afogamento.

Era uma época em que boa parte da juventude brasileira enfrentava um inimigo que torturava e matava. Havia menos individualismo e mais sonhos de mudança, embora já fosse uma geração que desfrutava da sociedade de consumo, o que, desde então, só vem se acentuando. Mas essa idolatria narcísica não começou somente agora. Vivemos, há mais de uma geração, um culto exagerado à juventude, uma necessidade de se manter sempre “jovem”, de não querer envelhecer, de buscar a melhor imagem de si.

O que, em muitos casos, se resume em muitos sorrisos – nem todos sinceros – que ficarão registrados, em milhares de cenas compartilhadas, graças a um pau de selfie.

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Celso Vicenzi, jornalista, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina, com atuação em rádio, TV, jornal, revista e assessoria de imprensa. Prêmio Esso de Ciência e Tecnologia. Autor de “Gol é Orgasmo”, com ilustrações de Paulo Caruso, editora Unisul. Escreve humor no tuíter @celso_vicenzi. “Tantos anos como autodidata me transformaram nisso que hoje sou: um autoignorante!”. Mantém no NR a coluna Letras e Caracteres.
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