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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sábado, 5 de dezembro de 2009

Macondo parece com cada cidade da América Latina



Por estes dias recebo um email do amigo Felipe Peroni, El Pimpe, 
falando que acabara de ler Cem Anos de Solidão. Discordava daquilo que
eu defendia, de que Macondo parece um pouco com cada cidade da América
 Latina, contemplando que a história tem muito mais a ver com a
 Colômbia.
Depois, ao explicar coisas do Rio de Janeiro para uma estrangeira –
Igreja da Candelária, Ônibus 174, a poluída lagoa, o porquê de não 
poder pisar em certas partes -, Pimpe notou que era verdade, que as 
histórias da América Latina se repetiam. “Histórias de intervenções 
humanas com a força do capital, episódios de violência realmente 
pesados, em que a vida não vale nada, a solidão coletiva...”, encerra
 Pimpe, me dando razão, em termos.
De fato, há muito da história da Colômbia em Cem Anos de 
Solidão e em todas as obras de Gabo, obviamente, algo que podemos tratar em uma próxima ocasião. Por ora, atenho-me, por uma questão de espaço, às
 semelhanças. A espinha dorsal dessas semelhanças é dada por Eduardo 
Galeano em “O século do vento”. 



“Somos argentinos: reis da improvisação, ególatras, ingênuos, trágicos 
como nórdicos, apaixonados e inseguros. Perón não pode haver sido
 argentino, mas também Borges o foi, “argentinados” ambos em sua
 contradição, exilados dentro e fora, com ódios antigos sobre os ombros 
e a fatalidade do destino guiando seus passos. Argentinos como Che e
 como Gardel, como os soldados correntinos das “Fucklands”. (...) 
Argentina doeu e dói, mas também sonha, e é sonhada agora mesmo, nesta
 e em outras casas, ao redor, acima, abaixo, nesta máquina de escrever. 
Argentina se reescreve sozinha, em cada um dos que não querem dar-se 
por vencidos” Trecho da apresentação de LANATA, Jorge. Argentinos – 500 anos entre o céu e o inferno
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Queria a Argentina fazer sua expansão para o interior. A Marcha para o 
Sul, no entanto, era atrapalhada por um obstáculo que estava no
 caminho. Os índios, insolentes e pouco inteligentes, vagabundos mesmo, 
não queriam deixar passar a marcha do progresso. Coube ao general
 Julio Argentino Roca a tarefa de tirar do caminho esses povos inaptos
 ao trabalho. Em troca do extermínio de quase todos os povos indígenas
 argentinos, Roca ganhou o direito de ser o 14º presidente do país, 
cargo no qual terminou de conduzir sua tarefa missionária.

A idade da banana, iniciada na década de 20 na Colômbia, logo tratou 
de mostrar aos trabalhadores da selva todos os seus problemas.
 Cansados de morte e de maltrato, formaram sindicatos e fizeram greve. 
É quando a United Fruit chama para um jantar o chefe civil e militar
 da região. Já satisfeito, o general Carlos Cortés Vargas promete 
acabar com o movimento de Aracataca. Depois de matar ou mandar matar 
dezenas de trabalhadores, o general é chamado a Bogotá: o presidente 
tem um novo chefe para a Polícia Nacional.
 (Resumo de histórias apresentadas por Eduardo Galeano em Memória do 
Fogo – Volume 3)


Correm os protestos do fim de 2001 na Argentina. A população, cansada
 de enganação, vai às ruas, e logo começa uma forte repressão. O
 presidente Fernando de La Rúa, de dentro da Casa Rosada, confirma sua
 fama de autista e é mantido desinformado de todos os fatos que ocorrem 
ali, em frente à sua residência. Jorge Palacios, El Fino, está de 
folga neste dia, mas é um cumpridor de seus deveres e logo vai à Praça
 de Maio. Mata ao menos cinco pessoas. Isso alguns anos após ter
 encoberto provas do maior atentado da história argentina: o ataque a
 AMIA, um edifício de judeus, deixou mais de oitenta mortos. Oito anos 
depois do ocorrido na Praça de Maio, é chamado por Maurício Macri,
 prefeito de Buenos Aires: vai ganhar o comando da Polícia
 Metropolitana. Por pressão dos grupos de direitos humanos, no entanto,
 El Fino, admirador da ditadura, não consegue tomar posse. Em seu lugar
 entra o sócio Osvaldo Chamorro, que cai meses depois acusado de, com 
ajuda de Palacios, espionar a presidente, o ex-presidente, deputados e
 até o próprio chefe.


Joaquin Calle Ramirez é um menino de 14 anos de Medellín, Colômbia,
 quando ocorre a tragédia que marcaria sua vida. Uma explosão ocorrida 
na favela onde vive com a família, Villatina, faz com que ele perca 
pais, mães e irmãos. Órfão, sem auxílio do Estado, Joaquin começa a
 roubar. Depois de alguns poucos anos, será mais um dos que engrossam 
as fileiras paramilitares colombianas.


Sandro Barbosa do Nascimento é apenas um menino do subúrbio do Rio de
 Janeiro quando vê sua mãe sendo morta. Órfão, sem auxílio do Estado,
 Sandro vai à Candelária, onde começa a fazer pequenos roubos. Alguns 
anos depois, vê a morte de vários amigos na Chacina da Candelária. 
Mais algum tempo e é o protagonista da tragédia do Ônibus 174, que 
virou um bom documentário e um péssimo filme romantizado.


No início de século 20, e já avançado o mesmo, é considerado 
comunista, safado e subversivo todo presidente latino-americano que
 queira cobrar impostos das empresas dos Estados Unidos. Seleciono aqui
 um caso citado por Galeano que, por uma e outra coincidência, parece
 interessante citar. José Santos Zelaya, presidente da Nicarágua, 
decide em 1909 cobrar impostos da Rosario and Light Mines, expropria
 as terras da Igreja e decreta a Lei do Divórcio. Os marines logo fazem
 uma de suas intervenções no país que rapidamente viria a ser 
“protetorado dos Estados Unidos”. Zelaya não é mais presidente. Em seu 
lugar vem o contador da empresa Rosario and Light Mines.

Um século depois, Manuel Zelaya, presidente de Honduras, eleva 
fortemente o salário mínimo, o que impacta as contas da United Fruit 
Company, que neste ano perderá 0,000000000001% de seus lucros graças à medida do governo. Zelaya, por haver notado que o modelo neoliberal
 estava matando o país, segundo mais pobre do hemisfério, e por
 aproximar-se dos bolivarianos, é tido como subversivo. O final, todo
 mundo sabe.


Patrício Guzmán (documentário A Batalha do Chile) conseguiu, quase espontaneamente, uma das mais perfeitas cenas da história do cinema mundial. Às vésperas da derrubada de Salvador Allende, uma chilena indignada afirma que o presidente trata de transformar o país em um ninho comunista. Suas
 expressões são fortes e sua fala sintetiza como nunca o pensamento da
 elite do país: não querem igualdade entre pobres e ricos.


Um outro documentário, porcamente concluído e jamais exibido, também 
teve em suas captações uma representante-sintetizadora da elite. 
Durante alguns segundos, uma mulher branca e rica de Santa Cruz de la
 Sierra, Bolívia, vocifera que Evo Morales é retrógrado e quer 
transformar a todos em iguais. Quando as câmeras já estão desligadas, 
puxa uma atendente de uma lanchonete em frente ao lugar onde estava o
 presidente e grita: “olhem, essa é uma índia de merda, mas está
 conosco”.


O México de Lázaro Cárdenas, um dos presidentes americanos que
 passaram à história como populistas, sofre o boicote internacional 
devido à ousadia de cobrar impostos das Sete Irmãs, as empresas
 petrolíferas que ditaram os rumos mundiais em boa parte do século 20.
 Em meio à falta de peças de reposição, os trabalhadores mexicanos 
criam peças, reaproveitam materiais, extraem novas ideias. A 
necessidade é o motor da história.


Em Roboré funciona a oficina de reparos daquele que outrora foi
 conhecido como Trem da Morte. Menos de uma dezena de trabalhadores
 cuidam da saúde das antigas locomotivas que percorrem em mais de 20 
horas o trajeto de 400 quilômetros entre a fronteira do Brasil e Santa
 Cruz de la Sierra, Bolívia. Na oficina, não hesitam em reaproveitarem
 peças, criarem novas a partir de pedaços de metal, extraírem novas 
ideias. A necessidade é o motor da história desta empresa, privatizada 
há pouco mais de uma década e hoje dona de vagões furados que derramam carga pelo caminho e de locomotivas que mais param do que andam. Dos trabalhadores da oficina, hoje ficam apenas os que concordaram com ganhar menos e não fazer greve.

João Peres é jornalista e colunista do Nota de Rodapé

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