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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Gato na lebre

Como a metonímia devasta a culinária.

O seu Manoel era um tipo popular que monopolizava a venda de sanduíches, salgadinhos e frituras colesterosas variadas na redação do jornal Estado de S.Paulo, no início da década de 90. Naquela época as redações tinham um toque de bazar persa. As moças vendiam toda sorte de roupas e apetrechos clandestinamente nos banheiros para complementar o salário. Seu Manoel, que fazia parte dessa fauna, circulava entre as mesas arrastando uma cesta de vime igual às de piqueniques de cinema da década de 50, com duas tampas móveis articuladas no centro.
Quando achava uma mesa desocupada, de algum jornalista recém passaralhado, estendia a toalha quadriculada. Mas um amargo dia, para seu Manoel, apareceu um falante concorrente argentino oferecendo no seu melodioso portunhol sanduíches incrementados, com folhas verdes, frios, vários tipos de presunto, acomodados em baguete com gergelim, ainda quentinha e crocante. O portenho amealhou toda a freguesia.
Ai uma lâmpada incandescente de 100 watts acendeu na cabeça do quase falido seu Manoel. Ele teve seu estalo criativo e passou a fazer um novo sanduíche que anunciava à freguesia, aos gritos pregoeiros, ser de “baguete na frança”, o popular pãozinho francês que ele achava com mais facilidade.
Embora possa parecer não ter relação alguma, mais ou menos nessa época um navio nigeriano, acossado pela guarda costeira, desovou no litoral carioca milhares de latas de maconha que, segundo os afoitos usuários, era da melhor qualidade. Não demorou muito e todos os traficantes desonestos da praça começaram a oferecer a erva “da lata”, apesar da inegável procedência paraguaia.
Desde então, talvez por ranhetice da minha idade, passei a implicar com coisas feitas na. São coisas compostas onde o atributo fica mais importante que o principal, como um rabo que balança o cachorro. Os abusos da metonímia, essa figura de linguagem que toma o continente pelo conteúdo, são devastadores na culinária.
Churrasco na laje, por exemplo. O trunfo é ser na laje, onde a cerveja fica quente, a pinga barata rola solta, o sol chapado frita os miolos, as cadeiras são desconfortáveis engradados vazios. Já a carne propriamente dita é qualquer coisa, de qualidade e procedência misteriosa.

O terraço gourmet
é uma contrafação
do churrasco na
laje primordial

Não tem nem a desculpa de ser uma festa de inauguração, ou a tradicional festa da cumeeira, de um puxado vertical num bairro popular, construído a duras penas pelo dono. Não, é uma laje já encardida, com vista para outros sobradinhos igualmente rústicos e pitorescos, da dependência que nunca foi terminada e acabou virando um local reincidente, supostamente exótico e autêntico, onde o churrasco ficaria mais saboroso. Se o dono ganhar na loteria e cobrir a laje esfumaça-se o charme do churrasco. Se o prêmio for bem grande pode mudar-se de bairro e comprar um apartamento com essa contrafação chique que é o terraço gourmet.
Em seguida na minha lista vem o açaí na tigela: não há prova sensata que a tigela modifique o gosto ou o valor nutritivo do açaí, mas os surfistas, naturebas e quejandos, parecem achar inapropriado comer a substância em recipientes que não sejam a tigela, muito menos numa embalagem descartável. Servidas em barracos na praia, as tigelas passam longe de uma boa ensaboada, é claro.
Outra implicância: coisa puxada na outra coisa. Comidas que agregam alguma coisa puxada , tipo filét com legumes puxados na manteiga, peixe com arroz puxado na alcaparra etc. Isso acontece especialmente naqueles restaurantes que o maître destampa teatralmente o prato e diz voilà! com inconfundível sotaque não-sudoestino.
O pior de tudo, disparado, são as coisas na telha. Inclusive a telha em geral é estilizada, já fabricada numa forma adaptada que não serve nem para telha propriamente dita para proteger da chuva nem para recipiente de comida. Esse apetrecho de barro cozido, por natureza própria, tem uma textura porosa que vai ficando progressivamente encardido. Fui vítima de um filé à parmegiana na telha, lá no pitoresco Embu das artes, perto da capital paulista, no qual o queijo foi substituído por purê de batata, sob a premissa de que o importante era exoticamente ser servido na telha. Esse receptáculo é tão inapropriado que uma vez quebrado seus cacos ensebados não servem nem para o tradicional uso de raspagem de calosidades.

O escondidinho
pode ser uma
entranha de bode
inominável

Por alguma razão insondável que nunca descobri, a principal vítima dessa bizarrice é o peixe. O animal, servido inteiro com casca gordurosa, é tão desgostoso visualmente quanto difícil de extirpar as espinhas. O efeito colateral – que arruinou minha estadia em Guarapari, essa aprazível colônia mineira em mares capixabas – foi uma diarréia constrangedora. Não há como lavar telhas para reuso. A saúde pública deveria proibir essa prática. Não caio mais nessa esparrela. Da próxima vez pedirei um peixe de telha feito no pirex.
E as coisas escondidinhas? No caso do feijão de corda, pode ter certeza que o que está amoitado é uma entranha envergonhada e inominável de bode. No escondidinho de carne seca as batatas, macaxeiras e outras substâncias exóticas costumam sobrepujar dezenas de vezes o volume da parte protéica propriamente dita. De modo geral, essas novidades bizarras merecem com toda justiça e propriedade a caracterização de serem feitas nas coxas.
Coisas delivery também são populares nos cardápios modernos e práticos, embora o método de entrega não melhore nem piore a comida (a menos que ela chegue ao destinatário já fria e borrachenta). As pizzas e comida chinesa delivery são fatos da vida, não há como polemizar. O problema léxico é que proliferaram os reclames de pizzas na entrega delivery. Não custa nada um freguês desinformado, sentado no restaurante, pedir pelo cardápio uma pizza delivery. Me lembra o jornalista Raimundo Pereira pedindo com toda seriedade a sobremesa com menos banana e mais split.
Mas minha maior birra é com o lugar vagabundo mas de comida supostamente ótima. É a comida na espelunca pitoresca. Muita gente tende a valorizar a precariedade do local como se esse atributo contribuísse para o charme da refeição. Quanto maior a dificuldade de acesso mais se valoriza a empreitada, embora a iguaria seja, para rimar, uma porcaria.
É como se tivesse um guia de restaurantes e bares onde o item dificuldade de acesso, sacrifício, desconforto e perigo da vizinhança contassem muitas estrelas. Tem sempre uma pessoa de índole alternativa que comenta: o lugar é péssimo mas a comida é divina. Nesses restaurantes maneiros a principal virtude é não estar no circuito dos turistas – como se turistas apreciassem coisas ruins. Isso é um grande programa para gente masoquista, imagino.
Finalmente, quem nunca ouviu comentário de que tal lugar era ótimo e aconchegante mas depois que lavaram e reformaram ficou ruim? Esse foi o destino que os paulistanos devem se lembrar do bar das batidas localizado perto do largo de Pinheiros, apelidado de cu do padre, por ficar atrás da igreja. Depois de uma reforma que limpou a imundície que cobria os queijos gorgonzola pendurados no teto e cobriu as paredes de azulejos, o estabelecimento entrou no parafuso da decadência.

Flávio de Carvalho Serpa
é jornalista, especial para o seção Cronetas do NR

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