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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Recordar

RECORDAR: do latim re-cordis, voltar a passar pelo coração (Extraído do “Livro dos Abraços”, de Eduardo Galeano)

Tenho enorme inveja (e alguma desconfiança) daqueles que possuem lembranças dos primeiros anos de vida. Há quem jura recordar situações de quando tinha dois anos ou menos. São casos extremos, quando o que parece comum são lembranças a partir dos quatro anos.

Sou uma exceção. Para mim é como se minha vida tivesse começado lá pelos sete anos. Antes disso não me lembro de quase nada, apenas alguns flashes. Não fossem fotos e uma fita cassete em que meus pais me gravaram (e também a minha irmã) falando e cantando, acreditaria que esses primeiros anos nunca existiram.

Escrevo sobre isso porque tenho pensado muito na minha avó, que anda bem doente. Tem 90 anos, a cabeça melhor do que a minha (e provavelmente do que a tua), mas o coração, o pulmão, o rim e afins, já não querem mais trabalhar. Longe que estou dela, restam-me as recordações. E justamente é ao lado dela que tenho a que, provavelmente, é a minha primeira – uma das poucas anteriores aos tais sete anos.

Meus pais tinham saído para uma festa (ou algo assim) e ela ficou encarregada de fazer com que os netos dormissem. Minha irmã caiu logo no sono e foi levada para a cama. Ficamos minha avó e eu na sala. Eu não queria dormir e ela concordou, mas me fez prometer que quando ouvíssemos o barulho do carro dos meus pais ela me levaria para a cama e diria que eu já estava dormindo há tempos – eu teria que fingir caso minha mãe fosse checar.

Passamos então a noite vendo um filme – bem possível que era em preto e branco – de uma história que se passava num presídio, havia um trem (tenho a impressão que os presos queriam fugir nesse trem).

Não chegamos ao final, porque meus pais apareceram antes, mas isso não importa nada, porque ficou gravada aquela imagem de minhas perninhas esticadas no sofá ao lado daquela senhora magrinha com pano na cabeça. Naquela época ela já me amava, daquele jeito dela, e eu começava a amá-la, desse meu jeito.

Parece que chegou a hora dela ir dormir. Por sorte já estou bem maior, e guardo lembranças de vários momentos ao seu lado. Só não posso coloca-la a dormir, mas de longe ficarei torcendo para que tenha o privilégio de escolher a hora de fechar os olhos, e que descanse tranquila.

Continuarei aqui, assistindo ao filme, com os olhos marejados, mas contente de ter podido passar bastante tempo do lado dessa avó capaz de feitos incríveis, como atravessar um riacho numa pontezinha feita com madeiras velhas e podres, e com sacolas de compras na mão, para visitar a irmã.

Não podia me levar porque era muito perigoso. E eu ficava em casa triste, torcendo pra ela não cair no rio e esperando ela voltar. E ela, por sorte, sempre voltou.

Ricardo Viel, jornalista, escreve às segundas, de Salamanca, Espanha.

7 comentários:

Sara Eduarda disse...

Lindo texto! Minhas memórias passadas (e recentes) se alvoroçaram, lacrimejaram. Ainda bem que temos saudade, assim podemos exercitar a amorosidade em suaves e singelas recordações.
Quanto mais o tempo passa, a gente vai recordando minúcias... são sinais de que a saudade vai demorar a passar. Toda saudade de alguém especial é assim mesmo, fica, se instala, nos abraça, emociona e faz chorar. Gracias a la vida con recuerdos!

Victor Moriyama disse...

òtimo texto Viel. Já havia pensando em escrever algo mais ou menos nesta linha, das recordações das experiências com os avós, tão importantes na nossa formação. Você o fez com primazia. Parabéns, sensível e calmo.
um grande abraço

Viel disse...

Opa, valeu pela leitura Sara e Victor. Isso das lembranças mexe com a gente mesmo, né? E conforme vamos ganhando anos de vida, mais recordações vamos acumulando; e sinto que chega uma hora que precisamos mesmo mexer nesse baú e ver o que sobrou de tudo aquilo que guardamos.
Grande abraço,
Viel

Moriti disse...

Ótimo mesmo, Viel Emocionou.

Dani Fernandes disse...

Oi Rica, ou Viel, como te chamam os amigos daqui... Nossas avós, uma delas em comum, sempre foram mulheres tão fortes, nos ensinaram tanta coisa, que as recordações parecem ir e vir na memória, puxadas pela saudade, pela maturidade, por situações do dia-a-dia. Também to torcendo pra que ela vá dormir em paz, sem sofrer, como aquela outra, nossa querida, que foi sem mesmo se despedir... Beijo grande e parabéns pelo texto, Dani

Anônimo disse...

Ricardino, não sou boa em palavras e meus olhos neste momento estão cheio de lágrimas e embaçados, como é difícil ter que aceitar essa tal de morte e falar dela naturalmente, mesmo com o coração apertado. O "paninho na cabeça" até doeu aqui, e me veio o cheiro da casinha dela, podem acreditar!
Dói saber que não teremos alguém pra chamar de vó, que não receberemos aqueles carinhos simples e que valiam mais do que qquer $ do mundo. Como a "sacolinha da felicidade" não é mesmo?
Quero ir até lá dar um beijo e dizer para ela descansar ,não sei se vai dar tempo mas tentarei, pelo menos pelo telefone ouvir aquela voz fininha.. rezemos para que ela adormeça assim como a vó Glória e acorde ao lado dos anjos! Parabéns pelo texto primo, fique em paz aí! Saudades! Bjos

Michelle Nunes disse...

Nunca tinha escrito aqui antes, é a Mimi do texto de cima tá? rs.. deve ter percebido! Bjs

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