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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Cacofonia

Acho que o que realmente nos diferencia dos outros animais é a expressão verbal. Não tenho dúvida de que os bichos têm sentimentos, sensibilidade, inteligência, raciocínio. Observando o nosso finado Chico, um gato desses de raça incerta, preto como carvão, que nos adotou há alguns anos, pude constatar claramente suas manhas, seus pedidos, suas formas de nos transmitir o que queria e sentia. E sei que todo mundo tem suas histórias sobre aquele bicho que “só falta falar”.

Expressar-nos por palavras, primeiro faladas, muito depois, escritas, tornou-se tão importante para os humanos, que não podemos imaginar nossa vida sem elas. Quase tudo o que somos, fazemos e sentimos se expressa através delas. Que o digam essas mal traçadas linhas.

Uma vez, fomos passar uns dias num sítio, em Cunha, um lugar perto de São Paulo. Era inverno e fazia um frio danado. Numa determinada manhã, todos saíram pra andar pela serra, e eu fiquei sozinha em casa, preparando o almoço. Estava totalmente imersa na minha tarefa e nos meus pensamentos, quando percebi que estava vivendo uma experiência rara. Como não havia ninguém por perto, tudo o que eu ouvia eram ruídos ambientais: passarinhos, vento, água corrente do riacho próximo, galinhas, cachorros. Nenhuma voz, música ou risada. Não havia TV ligada nem o ruído de carros, mesmo distantes.

Fiquei encantada. Conectei-me ao que estava acontecendo, ciente de que era uma raridade mesmo. Deixei-me levar, enquanto lavava tomates e temperava pedaços de frango. Acho que quase consegui parar meus pensamentos, absorvendo o silêncio de vozes e ruídos de gente.

No outro extremo, fica a Rua do Curuzu, em Salvador, onde já estive muitas vezes. Pra mim, é o lugar que melhor representa a cacofonia dos humanos. A qualquer hora da noite ou do dia, tem música tocando alto em alguma casa – geralmente em várias ao mesmo tempo. As pessoas nunca se dão ao trabalho de ir até onde estão as outras, caso queiram perguntar ou dizer alguma coisa. Todo mundo grita, da rua para dentro de casa, e vice-versa, e de uma casa pra outra. Se alguém está do lado de cá da rua, grita para a pessoa que assoma a alguma janela do outro lado, iniciando um papo animado e muito natural. É um vozerio permanente, misturado com o barulho dos carros que sobem a ladeira e as TVs sempre ligadas.

E São Paulo, que ruge, não pelas vozes humanas, mas pelas coisas inventadas e construídas por nós. Rios de carros e ônibus, enxames de motos, e o metrô revirando as tripas da cidade, tudo carregado de gente. Lá, não são as palavras nem as vozes humanas que criam o caos, pois elas são abafadas pelos barulhos da cidade, que encobrem tudo como uma grossa manta de lã. De vez em quando, ela é retirada por algum feriado, e então as pessoas podem se ouvir um pouco.

Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo no NR.

8 comentários:

Anônimo disse...

Só cacofonia ? Palavra muito gentil para conceituar a berração que grassa por aí. Acho que a próxima geração será composta de surdos. E o barulho do apartamento vizinho ao meu .que rsolveu quebrar a parede justamente encostada na minha !!!! Haja serras, martelos e não sei mais quais bichos gritsantes a berrar nos meus ouvidos.
Continue com suas palavras gentís.
Bjs da Mummy Dircim

Fernanda Pompeu disse...

Muito bom! Silêncio e som.

Shirley disse...

ai ai, podia ter mais uns dois parágrafos... vê, o vício nas palavras é presente demais. no fundo, pensando bem, acho que vc exorta-nos a refletir sobre os silêncios internos e a necessidade cada vez mais preemente dos externos também. vivemos num mundo onde já nem notamos o tanto de sons que escutamos diariamente. um bom papo prum happy hour... :)

Carlos Augusto Medeiros disse...

Muito dialético seu texto. Adorei.

Carla Perdiz disse...

Gostei de te imaginar num sítio lavando tomates e temperando um frango, curtindo os sons do silêncio, esperando a família voltar...

Anônimo disse...

Esse texto reforça uma crença que tenho: o som do silêncio é uma dádiva dos deuses que poucos conseguem suportar. Márcia Ester

Anônimo disse...

Adoro música, mas também o silêncio. Bendito silêncio!!! Experimento isso quando lavo louça ou passo roupa (doméstica, né?). Isso também é meditar, esvaziar os ouvidos e a mente cuidando da casa.
Beijocas,
Myriam

Anônimo disse...

Na cidade barulhenta, não me escuto. Minha mente começa a gritar, tentando (e não conseguindo) competir com os ruídos externos, que se parecem com um grande bloco cinza de fumaça pesada, massa violenta. Dor de cabeça e grande confusão.
Descanso quando há silêncio ou sons suaves. Minha mente se aquieta, fala baixinho, dá pra escutar sustenidos, bemóis, cheiros, sabores, cores. Dá pra criar próprios sons. Dá até pra ouvir a intuição.
beijos!
Anita

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