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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Tempo tempo

Hoje eu descobri que o meu ipad pode ter um editor de texto. Eu, que achei que ele era só um lindo brinquedinho, fiquei ainda mais seduzida por este acessório que me acompanha há poucos meses, mas já ocupa um lugar importante entre meus badulaques preferidos.

Não posso deixar de pensar em quando iniciei minha vida de escritório, quase quarenta anos atrás, e na primeira vez que vi um terminal de computador, na biblioteca da universidade, meu primeiro emprego formal. Era um terminal "cego", pois não tinha monitor de imagem, só um teclado acoplado a uma impressora matricial. Pelo menos, é assim na minha memória.

E no primeiro aparelho de fax, no telex que se usava intensivamente para a comunicação internacional escrita, coisas que a geração atual simplesmente nunca viu.

Quando conto para a turma de trinta anos que a gente datilografava cartas em cinco vias coloridas, separadas por folhas de papel carbono, e que cada letra errada implicava uma complexa operação corretiva, me soa como se pertencesse a uma outra realidade, outro tempo. Dia desses, uma moça que ouvia o relato me perguntou se havia ar condicionado no escritório, "naquele tempo". Sim, havia aqueles caixotes embutidos na parede, que roncavam como um avião prestes a decolar.

Era um tempo em que as decisões podiam ser tomadas com prazo de dias, pois nenhuma resposta formal precisava ser dada instantaneamente, se não havia como transmiti-la na hora. O fax e, principalmente, o email, mudaram para sempre a nossa relação com o tempo.

Não que eu lamente a evolução tecnológica, muito ao contrário. Mas que ela nos trouxe uma pressão descomunal sobre o que entendíamos como urgências e emergências, não há dúvida. Atualmente, cada hora de um dia meu de trabalho normal significa em média cinquenta mensagens pra responder, algumas implicando providências complexas e, principalmente, imediatas, urgentes. Nas reuniões, nos aeroportos, até na fila do cinema, tem gente checando seu email de trabalho, pois, em muitos casos, quem manda a mensagem (leia-se "chefe") não admite esperar mais que quinze minutos pela resposta. É pra isso que nos "dão" esses malditos telefones conectados à internet.

Mas tem outra coisa que mudou muito nas instituições. A gente trabalhava pra caramba, mas, como a relação com o tempo era outra, havia o café na copa pra colocar a conversa em dia, o almoço em casa, as crianças que às vezes vinham pro escritório por algum problema na escola ou no apoio doméstico, e era uma festa.

Principalmente, as equipes eram coesas e mais focadas em objetivos comuns. O que vejo hoje é um mata-mata, uma competição individual entre pessoas da mesma equipe, um esforço pra ser o "primeiro da turma" que me deixa assim, meio nostálgica, coisa que absolutamente não sou. Ou não era.

O texto acima foi escrito há algumas semanas. De lá pra cá, muita coisa mudou. Faz quase dois meses que me aposentei da carreira institucional, algo que eu desejei e planejei há muito tempo e em detalhes. Eu só não previ as manifestações de apreço e afeto que recebi de colegas, chefes e grandes chefes, e que me comoveram profundamente.

Por enquanto, parece que estou de férias, por pelo menos duas razões: não preciso ler nem muito menos responder centenas de emails por dia, e uma hora não é mais uma hora. São sessenta minutos inteiros pra eu decidir como usar. Um luxo! Quem disse que o tempo não é relativo?

Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo no NR.

8 comentários:

Georgia Bello disse...

Bom dia Junia Puglia! Aqui estou eu ansiosa, aguardando o tempo de chegar sexta-feira. Enfim, esse tempo chegou!

"Tempo tempo tempo tempo
E quando eu tiver saído
Para fora do teu círculo
Tempo tempo tempo tempo
Não serei nem terás sido
Tempo tempo tempo tempo
Ainda assim acredito
Ser possível reunirmo-nos
Tempo tempo tempo tempo
Num outro nível de vínculo
Tempo tempo tempo tempo
Portanto peço-te aquilo
E te ofereço elogios"
Maria Bethania

Anônimo disse...

lendo sua crônica sobre o tempo, relembro, com muita saudade, as poesias e artigos profundos que o pai escrevia sobre o tempo. Ele se preocupava muito com esse tema e parece que você percebeu o mesmo problema : tempo não é tempo: é o segundo que passou e não volta mais, já aconteceu.
Vamos em frente.Você tem muito a oferecer aos seus leitores. Palmas para a Júnia.
MUMMY DIRCIM

Fernanda Pompeu disse...

Outro dia li que os contemporâneos se dividem entre migrantes e nativos da internet. Eu e você, com mais de cinquenta, somos da turma dos migrantes. Estamos plenamente no mundo digital, mas passamos a infância e juventude no universo analógico. Em outras palavras, nosso presente é digital, mas nossa memória profunda é analógica. Doloroso e excitante, não é?

Anônimo disse...

Muito bem sacado, Fernanda. Como boas migrantes, seremos sempre "estrangeiras". Júnia

Shirley disse...

Como sempre, reflexões da Junia que passam a fazer parte de nossas próprias reflexões. Tenho todas essas memórias e questiono muito o uso que as pessoas fazem de seus "brinquedinhos" eletrônicos. Acho tudo meio estranho. O mundo dos nativos me parece um caminho sem volta e sem medida. De tempo, inclusive. Sou uma migrante, mas por enquanto, mantenho tudo sobre meu estrito controle. Não me deixo seduzir facilmente. Sinto saudade sim dos meus analógicos, embora o digital tenha muito a oferecer. Enfim, nossas contradições e paradoxos...

Claudia disse...

Delícia de texto! Sou da turma dos 30 e poucos (ou muitos), mas me lembro perfeitamente daqueles formulários coloridos que iam cada um para seu escaninho correto. E da máquina de datilografia e do santo Corretivo líquido. Saudades. bjs Sua Eterna Súdita Claudia

Pilar disse...

Qué lindo Júnia! Me lo llevo para la próxima reunión de equipo. Beso grande, Pilar

Nina Puglia disse...

Máquinas de escrever eram a coisa mais divertida.
Eu não podia ver uma que ficava horas datilografando aleatoriedades quando ia ao escritório "por algum problema na escola ou no apoio doméstico", né? hehehe

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