.

.
30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Um álbum precioso

Fruto de uma expedição norte-americana, o álbum Native Brazilian Music reuniu a nata do samba carioca. Uma história perdida no baú que o NR recupera e, de quebra, te convida a escutar. 

Maestro da tradicional Orquestra da Filadélfia, o estadunidense Leopold Stokowski (1882–1977) entrou para a história cultural de seu país como um grande diretor musical. Responsável pela trilha sonora para o cinema da inovadora e clássica animação Fantasia’, da Disney, de 1940, também criou diversos conjuntos musicais, entre eles a All-American Youth Orchestra, com quem veio a América do Sul entre 1940 e 1941. A visita fez parte da “Política de Boa Vizinhança”, instituída pelos EUA com os países latino-americanos.

Stokowski esteve no Rio de Janeiro a bordo do S.S. Uruguay, navio equipado com um estúdio completo, preparado pela extinta gravadora Columbia para registrar a música folclórica de países latino-americanos. O objetivo era, posteriormente, celebrar um congresso folclórico pan-americano, o que não chegou a ser realizado.

Antes do embarque, o maestro contatou Heitor Villa-Lobos, apresentando a ele a ideia de registrar os expoentes da música brasileira, que vivia uma era de transição do caráter folclórico-rural para o popular-urbano. Villa-Lobos chamou seus amigos Cartola, Donga e Zé Espinguela, que entendiam – e muito – do riscado, para reunir a nata, os melhores e mais representativos músicos populares do Rio de Janeiro da época.

Em uma grande cerimônia, subiram ao S.S. Uruguay, em agosto de 1940, nomes como Pixinguinha, Donga e João da Baiana, a Santíssima Trindade do Samba – maiores representantes da primeira geração de sambistas do Rio. Também estiveram lá Cartola, ao lado de sua Estação Primeira e um coro de pastoras de Mangueira; Zé da Zilda, um dos primeiros sambistas “de morro”, provenientes das Escolas de Samba, a fazer sucesso “no asfalto”; Jararaca e Ratinho, mestres da embolada; Luiz Americano, saxofonista e chorão, um dos pioneiros no uso do instrumento na música popular brasileira; e Zé Espinguela, macumbeiro, figura de suma importância para o meio cultural da época.

Outros solistas presentes foram Janir Martins, da Rádio Nacional, o cantor Mauro César, que acompanhou o Conjunto Regional de Donga, além de um quarteto masculino do Orfeão Villa-Lobos. Os músicos presentes eram aqueles que costumavam acompanhar os melhores sambistas da época nas gravações e nas apresentações realizadas por toda a Guanabara. Relatos da época dão conta que outros nomes de valor, como Paulo da Portela, Augusto Calheiros e o violonista Laurindo de Almeida estiveram presentes naquela sessão de gravação. Ataulfo Alves e Carlos Cachaça – que jamais faltou ao trabalho – também foram convidados, mas não puderam comparecer.

O registro histórico era uma grande coletânea de ritmos populares brasileiros (samba, choro, partido alto, toada, embolada, macumba, candomblé e cântico ameríndio), interpretada pelos próprios autores, acompanhados pelos melhores músicos de então. Foi a primeira gravação de Cartola, aos 31 anos de idade, e a única de Zé Espinguela, cantando alguns pontos de macumba. Também trouxe Pixinguinha tocando magistralmente flauta, seu primeiro instrumento, depois substituído pelo saxofone, e João da Baiana tocando, à sua maneira, seu pandeiro. Tudo ali era primoroso, de fato aquela era a melhor e mais representativa música popular brasileira.

Calote: gravaram,
mas não pagaram


Ao final das gravações, o maestro agradeceu com um aperto de mão a cada um dos músicos e zarpou aos EUA. As promessas feitas a Villa-Lobos de remuneração e cessão de cópias das gravações foram ignoradas. Alguns músicos foram pagos, tempos depois, com quantias irrisórias. Cartola, por exemplo, relata que ganhou 1.500 réis, o equivalente a três maços de cigarro baratos. Além do calote norte-americano, os músicos não puderam ouvir o disco, já que ele foi lançado somente nos EUA.

Das 40 músicas gravadas, a Columbia lançou somente 16 delas, reunidas no álbum “Native Brazilian Music”, que continha dois volumes, cada um com quatro discos (contendo uma música de cada lado) de 78 rotações por minuto. O texto de apresentação dizia:

“Aqui neste álbum da Columbia Discos você tem a autêntica música do Brasil... Magnificamente tocada por músicos nativos... Selecionados e gravados sob a supervisão pessoal de Leopold Stokowski. Estas expressivas gravações foram feitas durante a excursão pela América do Sul do maestro Stokowski com a All American Orchestra. Em vários pontos da Excursão, o doutor Stokowski ouviu o folclore nativo e a música popular interpretados por músicos dos nossos bons vizinhos. Para a gravação, escolheu o que concluiu ser o melhor e o mais típico”.

Nomes das músicas, dos intérpretes e dos compositores foram escritos com a grafia errada, o que demonstrou o pouco cuidado no preparo do disco. O “Grupo do Pai Alufá” (Zé Espinguela), por exemplo, virou “Grupo do Rae Alufá”. Além disso, as descrições das músicas deixavam a desejar. Pouca gente deu valor ao disco nos EUA. Lá, ninguém queria saber da nossa “música folclórica”. Cá, muitos queriam, mas não podiam, pois o disco estava lá.

Por longas décadas esses registros foram muito raros. O pesquisador Lúcio Rangel foi um dos poucos a ter a sorte de adquirir um exemplar, por acaso, em Nova York. Resolveu, então, doar para o Museu da Imagem e do Som (MIS), por achar o melhor destino para tal tesouro. Deveria ser, mas não era: o álbum, tempos depois, simplesmente sumiu, foi roubado.

Em 1987, então, no ano do centenário de Villa-Lobos, o Museu Villa-Lobos relançou, em uma edição limitada, as dezesseis gravações do Native Brazilian Music. Produzido por Suetônio Valença, Marcelo Rodolfo e Jairo Severiano, e com texto do musicólogo Ary Vasconcelos, o relançamento foi feito a partir de discos 78 rpm doados pelo colecionador Flávio Silva, e não por meio das matrizes originais (o que seria o ideal).

Sendo um produto especial, de tiragem baixa (3 mil cópias), a edição brasileira do disco logo esgotou-se. Mais uma vez, poucos podiam escutar a beleza contida naquele registro. Poucos sabiam a respeito do emblemático álbum.

No início dos anos 2000, a pesquisadora musical estadunidense Daniella Thompson iniciou em sua terra natal uma busca sobre o paradeiro das matrizes originais do álbum. Eis que ela não apenas localizou-as nos porões da Sony, detentora do catálogo da Columbia, como descobriu que existe um outro volume, com oito músicas, que jamais foi lançado.

Travou-se, então, uma luta para relançar, em CD, tanto o álbum original quanto o volume jamais lançado. Até agora não houve nenhum avanço neste sentido, mas a Internet fez com que, pouco a pouco, este disco chegasse aos ouvidos de uma nova geração de sambistas e admiradores da boa música brasileira.

A partir do momento em que uma alma caridosa a partir do LP lançado em 1987 disponibilizou para downloads as músicas que por tantas décadas não puderam ser ouvidas, tudo mudou. Hoje, com alguma busca e poucos cliques, você confere a beleza da flauta de Pixinguinha, do pandeiro de João da Bahiana, o seminal registo de Cartola como cantor, entre outras riquezas musicais que o disco contém.

André Carvalho, jornalista, mantém a coluna mensal Batucando, sobre samba, a ser publicada sempre na terceira quarta-feira do mês. Ilustração de Kelvin Koubik, artista visual e músico de Porto Alegre, especial para o texto

Escute e saiba mais
sobre as 16 pérolas
1 - Macumba de Oxóssi (Donga - José Espinguela) com Zé Espinguela e Grupo do Pai Alufá
[Um ponto de macumba para Oxóssi]
2 - Macumba de Iansã (Donga - José Espinguela) com Zé Espinguela e Grupo do Pai Alufá
[Um ponto de macumba para Iansã. Estes registros foram os únicos feitos Zé Espinguela em sua vida]
3 - Ranchinho Desfeito (Donga - De Castro e Souza - David Nasser) com Mauro César
[Samba-canção interpretada por Mauro César, com o Conjunto Regional de Donga e solos de flauta de Pixinguinha]
4 - Caboclo do Mato (Getúlio Marinho da Silva “Amor”) com João da Bahiana, Janir Martins e Jararaca
[Corima que traz João da Bahiana no solo e Janir Martins e Jararaca nos refrões, com improvisos de flauta feitos pelo gênio Pixinguinha. O registro traz o excepcional pandeiro do solista]
5 - Seu Mané Luiz (Donga) com Zé da Zilda e Janir Martins
[Zé da Zilda canta em dueto este divertido samba com Janir Martins. No acompanhamento, mais uma vez, o regional de Donga, com Pixinguinha à flauta]
6 - Bambo do Bambu (Donga) com Jararaca e Ratinho
[Embolada “trava-língua” de Donga, interpretada por Jararaca e Ratinho, acompanhados pelo violonista Laurindo de Almeida e conjunto regional]
7 - Sapo no Saco (Jararaca) com Jararaca e Ratinho
[Mais uma embolada, desta vez de autoria do próprio Jararaca. Com Laurindo de Almeida e conjunto regional]
8 - Que Quere Que Quê (João da Bahiana - Donga - Pixinguinha) com João da Bahiana e Janir Martins
[Macumba carnavalesca de autoria atribuída à Santíssima Trindade do Samba (embora especule-se que seja apenas de João da Bahiana). O pandeiro de João da Bahiana e a flauta de Pixinguinha, mais uma vez, roubam a cena]
9 - Zé Barbino (Pixinguinha - Jararaca) com Pixinguinha e Jararaca
[Maracatu com metais e percussão, é um registro raro de Pixinguinha cantando]
10 - Tocando pra você (Luiz Americano) com Luiz Americano
[Choro de clarineta acompanhado por um conjunto regional que traz João da Bahiana ao pandeiro]
11 - Passarinho bateu asas (Donga) com Zé da Zilda
[Com o Conjunto Regional de Donga, solos de flauta de Pixinguinha e acompanhamento vocal feminino]
12 - Pelo Telefone (Donga - Mauro de Almeida) com Zé da Zilda
[Com o Conjunto Regional de Donga, solos de flauta de Pixinguinha e acompanhamento vocal feminino. “Pelo Telefone” é um dos sambas mais emblemáticos (foi primeira música registrada como ‘samba’ no Brasil) da história da música popular brasileira]
13 - Quem me vê sorrir (Cartola/Carlos Cachaça) com Cartola e Coro da Mangueira
[Cartola fez aí sua estreia como intérprete, aos 31 anos de idade. Na gravação, é acompanhado por Aluísio Dias, um de seus mestres na Mangueira, ao violão, pela bateria da Estação Primeira e por um coro de “pastoras”]
14 - Teiru/Nozani-Ná (música folclórica, adaptada por Heitor Villa-Lobos) com Quarteto do Coral Orfeão Villa-Lobos
[Dois cantos ameríndios. “Teiru” é um canto fúnebre para a morte de um cacique, recolhido por Roquete Pinto, em 1912. “Nozani-Ná” está catalogada nas “Canções Típicas Brasileiras” (1919), de Villa-Lobos]
15 - Cantiga de Festa (Donga - José Espinguela), com Zé Espinguela e Grupo do Pai Alufá
[Corima contendo solo masculino e coro feminino, batucada e palmas]
16 - Canidé Ioune (música folclórica, adaptada por Heitor Villa-Lobos)  [Quarteto do Coral Orfeão Villa-Lobos. Este canto ameríndio foi recolhido pelo viajante Jean de Léry em 1553]

Um comentário:

denise fuccioli disse...

Ótimo texto, de grande utilidade pública. Santa Internet, que nos livra da ignorância daqueles que ainda não entenderam o sentido de 'compartilhar'.
Parabéns, André Carvalho

ass. Denise Fuccioli

Postar um comentário

Ofensas e a falta de identificação do leitor serão excluídos.

Web Analytics