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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Medida certa?



por Alexandre Luzzi   ilustração Ligia Morresi*

A “VALORIZAÇÃO” DO CORPO E O MAL-ESTAR NA ATUALIDADE

Na mitologia grega, Procusto, filho de Netuno, era um salteador sanguinário que obrigava os viajantes, depois de pilhá-los, a deitar sobre um sinistro leito de ferro nunca do tamanho do corpo dos infelizes: se eles fossem mais curtos que o leito, estirava-os com cordas e roldanas; se ultrapassassem as medidas, cortava-lhes a parte que sobrava. Todos, sem exceção, deveriam se ajustar à sua cama.

Procusto era alguém que ajustava o corpo das pessoas a certas medidas ideais, sempre a partir de um único padrão. Do ponto de vista simbólico, Procusto pode ser considerado um normalizador, o patrono de todo imperativo que impõe normas e um guia de conduta, reduzindo a experiência humana a relações de causa e efeito nunca livres de interesses (qualquer programa de televisão com o título desse texto é mera coincidência).

Ao tomar conhecimento da narrativa mítica, não pude deixar de associá-la com o papel do profissional de Educação Física (EF) dentro do dispositivo da saúde e sua relação com o corpo e a sociedade.

Segundo Flávio Soares Alves, da Faculdade de Educação Física e Esportes da USP, “o profissional de Educação Física passa a ser agente ativo de uma ideologia do ser saudável, passando por cima da diversidade dos corpos, em função da reprodução de uma lógica excludente, que dita padrões estéticos de beleza e saúde.”

Não podemos esquecer que o homem, por meio de seu corpo, assimila e se apropria dos valores e normas sociais, num processo de incorporação. É sobre o corpo, em sua qualidade sensível, que incidem as formas de controle e dominação que ressultam no processo de “anestesiamento” de seu campo intensivo (corpo afetivo e pulsional).

Esse fenômeno é muito fácil de ser observado na religião (controle da sexualidade), no capitalismo (transformação da força criativa em força produtiva) e agora de uma forma mais sutil, mas não menos agressiva, no dispositivo da saúde.

Com o corpo sendo submetido cada vez mais ao controle, à segmentação e a manipulação em função da norma e de um ideal a ser alcançado, a saúde sustenta-se sob um discurso que reduz o corpo à sua dimensão anatomofisiológica, ou seja, a saúde se opõe ao estado de doença. O educador físico, servindo-se deste discurso monta seu dispositivo de saúde para convencer seus clientes de que a saúde que ajuda a promover traz controle e segurança sobre a vida. Com isso, sugere garantir a juventude e a beleza daqueles que apostam na eficiência deste dispositivo forjado.

É por meio dessa produção simbólica de valores, associada ao poder da indústria midiática, que uma série de imagens-ícone são produzidas, deliberadamente, aprisionando a subjetividade pelo medo à exclusão e o desejo à hegemonia.

Afinal, se os famosos se submetem a todo tipo de sacrifício em nome da medida certa, respaldados por um discurso de “verdade científica”, para nós, meros mortais, restam poucas dúvidas de que esse é o caminho certo.

Alves destaca ainda que “os padrões impostos por certas imagens fazem com que nos voltemos contra nós mesmos, revoltados com nossa própria inadequação. Tal descompasso é desconfortante e nos força a uma retratação que, muitas vezes, corre na contramão de nossos próprios desejos”.

O corpo passa a ser vivido como um lugar permanentemente de risco, um lugar que pode a qualquer momento nos ameaçar. Diante desses problemas questiono sobre o papel do profissional de Educação Física e sua participação na condução desse sistema de representações na qual se articulam o corpo, a saúde e o movimento.

A superposição deliberada e maliciosa entre corpo e organismo, ou seja, a redução do corpo a aspectos meramente biológicos, carrega toda uma problemática que vem acompanhando a Educação Física desde o seu surgimento: sua despolitização. Uma disciplina orientada por um ideário neoliberal (o movimento ressignificado a partir de conceitos como produtividade e funcionalidade), com pouca consciência das relações de poder na produção de valores que norteiam sua prática, afastada da subjetividade de quem ensina e de quem pratica, produzindo dessa forma o mau encontro.

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*Professor de Educação Física, capoeirista, Alexandre Luzzi coordena o espaço Tai Ken e mantém a coluna mensal Corpo a Corpo. Ligia Morresi, designer e ilustradora, especial para o texto

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