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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Foco


por Júnia Puglia   ilustração Fernando Vianna*

 A quantidade de informação produzida durante a última campanha eleitoral deu para deixar qualquer um desorientado. Não vou sequer tentar alinhavar tudo o foi dito, publicado, impresso, compartilhado, gravado, bisbilhotado, investigado, inventado, camuflado, enfeitado, exagerado, revelado e ocultado. Ao mesmo tempo em que muita gente se pergunta qual o sentido de tudo isto e se era realmente necessário, temos que lidar com o depois, a ressaca, os ressentimentos e desavenças, as mentiras, as cobranças, o alívio de uns e a frustração de outros.

Acontece que lá, bem no centro do redemoinho, permanecem os temas que exigem ser vistos, abordados e resolvidos. São muitos, mas nem sobre eles vou me deter. Qualquer pessoa que não tenha acabado de desembarcar de Marte os conhece, lá à sua maneira, e, de resto, já tem gente demais alugando nossos ouvidos e miolos com o rescaldo da campanha e do resultado das eleições. Para mal ou para bem, não sou dada a argumentos altruístas e mensagens edificantes. Apenas penso aqui com os meus botões algumas coisas que às vezes tenho vontade de compartilhar.

Tempos atrás, fui a uma festa de casamento nos arredores de Bruxelas. A animação ia já avançando pela fria madrugada. Como criatura diurna que sou, saí em busca de um transporte que me devolvesse ao quarto quente do hotel com sua boa cama, e consegui uma carona com o casal de fotógrafos, já dispensado da tarefa. Ele vietnamita, ela belga. No trajeto de quase uma hora, conversávamos sobre a Bélgica e a secular disputa entre flamengos e valões, que estava novamente em temperatura acima do recomendável. A questão, com viés separatista, envolve poder político e econômico, um lado reclamando que o outro tem privilégios, recebe mais atenção e investimentos e tem maior presença nos mecanismos de poder. Comentávamos, ele e eu, como nos soava absurdo, quase ridículo, que ali houvesse gente brigando por eventuais desequilíbrios na divisão do muito que há para ser desfrutado na Europa central, em termos de dinheiro, oportunidades, conforto e bem estar. Ele, então, disse: a única explicação que encontro para isto é que, quando não há grandes problemas a resolver ou enormes dificuldades a superar, as pessoas as inventam.

Nós aqui não precisamos procurar, nem inventar – como esse papo de país dividido, valhamedeus! E se de enfrentar problemas como motivação para a vida se trata, o nosso cardápio é extenso, e de tédio não morreremos. Expressar a nossa indignação e colocar energia para atacar ou defender candidatos na disputa democrática é apenas o começo. Seria um enorme adianto se, contentes ou contrariados com o quadro político, colocássemos toda essa vibração na busca e na cobrança das soluções de que tanto precisamos. Vambora ajustar o foco?

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Rubens Paiva e seu otimismo contagiante

1964 + 50
Histórias de pessoas de carne e osso – e também de personagens de papel – que viveram na roda viva da ditadura militar. Episódios quinzenais toda quinta-feira.

(Episódio 18)


por Manuel Carvalheiro ilustração Fernando Carvall

Convivi com Rubens Paiva como Engenheiro nas obras da Paiva Construtora em Santos e como seu companheiro na ação Política.

A imagem que guardo do Rubens é de uma pessoa contente com a vida, com tudo que fazia, com a família, com a profissão, com a Ação Política. Dos relatos que tenho lido a seu respeito talvez falte uma referência maior a sua liderança na ação Política do Grupo que girava em seu torno e do qual faziam parte nomes como Almino Afonso e Gasparian. Mais do que um líder, era um coordenador e orientador das prioridades a fazer.

Todas as suas ações tinham como prioridade absoluta a defesa do interesse nacional. Como Engenheiro todos os projetos e obras dos quais participou sempre priorizaram a inovação e a melhor e mais moderna técnica existente.

Sempre teve como parceiros os melhores Arquitetos e Engenheiros, ajudou a introduzir no Brasil o uso do concreto protendido pagando o estágio de dois Engenheiros que foram estudar a técnica na França e ajudou financeiramente o primeiro técnico europeu que trouxe esta técnica para o Brasil.

Os prédios construídos pela sua firma em Santos tiveram inumeras inovações e todos tem na sua entrada obras de arte. Levava para suas atividades políticas e profissionais um otimismo contagiante. O Rubens que tenho na memória é o de alguém sempre otimista e contente com o que fazia.

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Manuel Carvalheiro, engenheiro, especial para o Nota de Rodapé. Fernando Carvall é o homem da arte.

sábado, 25 de outubro de 2014

Dilemas do transe eleitoral

por Daniel Guimarães*

Não sei vocês, mas estou contando as horas pra domingo chegar e acabar logo essa eleição. Não porque conversar sobre política seja ruim, acho o contrário, gostaria é de poder falar de política sempre, mas com menos contaminação da agenda de marketing eleitoral, com mais liberdade e tempo para debater as questões estruturais e conjunturais. Com mais paciência para trocar uma ideia, desde os fantasmas conservadores até a camarada mais radical à esquerda. Mas já que o Thiago foi irresponsável/generoso o suficiente para me convidar a escrever aqui neste espaço, acho que o mais honesto é manter a irresponsabilidade e expor, pelo menos na reta final, a formação do meu pensamento sobre o que a eleição representa. Dilemas sobre formas de atuação política, coletiva ou individualmente, sobre o tipo de sociedade desejável e possível, por exemplo. Aviso desde já que um dos meus objetivos nessas eleições é não perder nenhum amigo ou amiga, nenhum camarada e nenhuma camarada. Independente do que venha a acontecer, será necessário um grande esforço de unidade entre a esquerda para lidar com um Congresso mais conservador e com este verdadeiro transe da direita que parece ter saído das caixas de comentários dos portais, dos murais do Facebook e que chegou às ruas.

Aviso também que esse texto não foi feito pensando nas questões que os conservadores estão atravessando, nem para pensar sobre como a direita se relaciona com as instituições. Estas instituições foram desenhadas à imagem e semelhança dos vencedores desta etapa histórica mala que é o capitalismo. Neste pequeno texto penso a partir do lado esquerdo, em especial o lado esquerdo não institucional. No limite é um texto sobre como eu lido com este dilema, ok. Não irei dissecar a experiência petista no governo federal, nem defender uma proposta que se pretenda hegemônica para lidar com a questão. Estou dando um passo atrás e pensando na posição subjetiva diante do dilema, não em como resolvê-lo.

Acho prudente desde já deixar claro que minha perspectiva utópica de sociedade é uma sociedade sem classes, na qual os trabalhadores e as trabalhadoras tenham a posse dos meios de produção; em que as pessoas possam manifestar seus desejos, que as relações entre diferentes gerações não precisem reproduzir o modelo familiar nuclear ainda hegemônico, que haja equilíbrio nas relações entre gêneros, raças; e que a organização social e política produza formas substitutivas para o Estado, dando conta das tarefas de infraestrutura, segurança, justiça, distribuição da produção, mas sem a centralização e o autoritarismo deste, que acentuam a alienação política dos sujeitos. Com sorte isso nos conduziria a um tipo de cidade, de espaço, de subjetividade menos enclausurada. Talvez nos leve a uma circunstância em que a responsabilidade e a liberdade de decidir quais inibições são importantes para nossa vida em sociedade façam sentido a todos e todas.

O problema é que esta minha utopia talvez nunca venha a existir. Meus pensamentos não são tão poderosos a ponto de transformar e moldar a realidade e realizar a mágica de deslocar as relações estruturais da minha própria psique para o mundo exterior (Freud). Como parêntese, recomendo a leitura do terceiro capítulo de Totem e Tabu (Animismo, magia e onipotência do pensamento), o mito fundador freudiano da civilização – ponto de apoio para o cara pensar uma origem da nossa organização social, comparando-a a “estrutura” neurótica. Cito um trecho como aperitivo:

“A possibilidade de uma magia contagiosa baseada na associação por contiguidade nos mostra, então, que o valor psíquico atribuído ao desejo e à vontade estendeu-se a todos os atos psíquicos que se acham à disposição da vontade. Há uma superestimação geral dos processos anímicos, ou seja, uma atitude para com o mundo que, em vista do que sabemos sobre a relação entre realidade e pensamento, só pode nos parecer uma superestimação deste último. As coisas recuam para segundo plano ante as ideias das coisas; o que se faz a essas tem de suceder àquelas. As relações existentes entre as ideias são pressupostas igualmente entre as coisas. (...) Na época animista, a imagem reflexa do mundo interior torna invisível aquela outra imagem do mundo que acreditamos perceber. (...) O princípio diretor da magia, a técnica do modo de pensar animista, é o da ‘onipotência dos pensamentos’”.

Não bastasse o limite da minha própria capacidade de transformar utopia em realidade, ainda existem muitas outras utopias para ela se relacionar. Ainda bem, diga-se, porque nesta relação as minhas tiranias inconscientes teriam maior chance de serem inibidas. À minha utopia se somam/divergem as utopias dos meus camaradas mais próximos, da organização que pertenço, que por sua vez não é única organização no mundo. Ela também se relaciona com projetos de outros atores, aliados ou inimigos.

Por fim, todas essas utopias passarão necessariamente por um teste de realidade, terão de lidar com as forças que disputam o espaço, os recursos, as demandas objetivas e subjetivas. Nunca teremos certeza sobre o que serão os resultados das nossas ações, portanto desconfio sempre de quem apresenta planos que preveem o que será da sociedade se tomarmos certo tipo de decisão, se nos mantivermos fieis a determinada cartilha; desconfio dos projetos que não incluam no cálculo político as tramas da vida cotidiana – coisas que parecem insuficientes diante do projeto utópico de sociedade, mas que dão cor e sentido a este curto período da vida de uma pessoa: ter mais ou menos conforto, morar em condições melhores ou piores (ou pior, ter ou não um lugar para morar), ter ou não um pedaço de chão para plantar, poder se deslocar no espaço ou ficar restrito ao que a especulação imobiliária determina, poder ou não ter satisfações sexuais próximas dos seus desejos mais profundos, poder ou não fantasiar uma ocupação profissional interessante, poder ou não criar filhos e filhas em condições saudáveis e criativas; ter ou não ter acesso a cuidados de saúde física e psíquica, se alimentar bem ou mal (ou pior, ter ou não ter como se alimentar), ter ou não proteção diante de ataques ou estruturas machistas, ter ou não proteção diante de ataques ou estruturas racistas. A lista é extensa e considero pilar da esquerda esta solidariedade essencial à classe trabalhadora, aos dominados, excluídos. Fazer um exercício de não enxergar o povo como um objeto de experiências políticas, mas um objeto investido do nosso amor e, no limite, sujeito de sua própria existência, a quem não se deve negar o direito de fazer uso das conquistas que a beneficiem, mesmo que não sejam equivalentes ao “fim da história” revolucionário.

Ao mesmo tempo, desconfio de propostas de transformação que não passem pela organização política coletiva, que também vejam o povo como objeto de benefícios pelos quais deveriam ser gratos e transferir seu protagonismo para a vanguarda, para a liderança, para o partido, para um outro que saberá melhor como conduzir as coisas que dizem respeito a todas e todos. Discordo tanto por questões políticas como duvido de sua eficiência. A consistência das conquistas e das transformações passa pela consciência, mais do que pela aceitação. Diante de um ataque conservador contra estas mesmas conquistas, que resposta seria mais forte: a de quem as tem como suas, ou a de quem apenas as recebeu, com uma certa dose de alienação?

Por isso sempre optei pelo caminho da organização independente em coletivos e depois movimentos. Nunca fui filiado a partido e nunca serei. Não por ojeriza, mas por discordância da forma de organização hierárquica. Se pudesse escolher, gostaria que a maior parte da esquerda dedicasse seus esforços e tempo disponível para a construção dessas organizações independentes, porque são elas que terão liberdade de tocar sua luta sem estar subordinada à agenda eleitoral. Aliás, a gênese do Movimento Passe Livre (MPL) é essa. Foi necessário o rompimento de boa parte dos militantes que tocavam a Campanha pelo Passe Livre de Florianópolis (fundada em 2000 e fortemente vinculada a uma corrente de esquerda dentro do PT) para que se transformasse em um instrumento de luta para a juventude. Livre para organizar a si própria de acordo, exclusivamente, com os interesses de seus integrantes e, principalmente, da pauta que justificava sua existência. Obteve grandes vitórias e transformou-se no MPL, que se expandiu Brasil afora.

As eleições nos fazem retomar debates antigos: reforma ou revolução? Estar dentro ou estar fora? Não o repetirei. Para mim não são necessariamente excludentes. Assim com individualmente o Eu do sujeito necessita de certa elaboração até produzir desfechos diferentes para antigas inibições, também o corpo social não parece ser capaz de tolerar mudanças bruscas sem antes uma boa dose de pequenas modificações. Nesse sentido concordo com Freud quando argumenta, em A dissecção da personalidade psíquica, que traços inconscientes das gerações anteriores, a tradição, se reproduzem nas gerações vindouras. “Provavelmente as concepções históricas chamadas de materialistas pecam por subestimar esse fator. Elas o põem de lado com a observação de que as ‘ideologias’ dos homens nada mais são do que produto e superestrutura de suas relações econômicas atuais. Isso é verdade, mas muito provavelmente não é toda a verdade. A humanidade não vive inteiramente no presente; o passado, a tradição da raça e do povo prossegue vivendo nas ideologias do Super-eu, apenas muito lentamente cede às influências do presente, às novas mudanças, e, na medida em que atua através do Super-eu, desempenha um grande papel na vida humana, independentemente das condições econômicas”.

Uma interpretação certeira de um analista pode não fazer efeito algum para um paciente cujo Eu não esteja “pronto”, não tenha trabalhado o suficiente as condições para chegar por si só ao lugar onde o analista imagina estar um dos eixos do sofrimento. Faço aqui um paralelo entre política e psicanálise. A análise esclarecida das organizações mais críticas não será suficiente para superar marcas milenares, ou de pelo menos 500 anos, do psiquismo do povo brasileiro. Há um trabalho de elaboração até o sentido interno alcançar uma nova posição. Busco Noam Chomsky para expressar melhor o que estou tentando dizer, mais especificamente na sua “Teoria da Jaula”. Tomo emprestado de Felipe Corrêa uma boa definição sobre: “A sociedade contemporânea estaria trancafiada dentro de uma jaula. O objetivo daqueles compromissados com a luta pela liberdade, pela igualdade e contra a opressão deveria ser, portanto, aumentar o chão dessa jaula até que as barras se quebrem e que o povo pudesse se ver livre da opressão – da jaula, cerceadora de suas liberdades.” Nas palavras de Chomsky: “Minhas metas de curto prazo são defender e até mesmo reforçar elementos da autoridade do Estado que embora sejam ilegítimos de maneira fundamental, são decisivamente necessários neste momento para impedir os esforços dedicados a atacar os progressos que foram conseguidos na extensão da democracia e dos direitos humanos.”

Na entrevista Reforma e Revolução (que pode ser lida na íntegra aqui), publicada no Brasil no livro Notas Sobre o Anarquismo, Chomsky nos explica melhor o que pensa (a citação é longa, mas valiosa):

 “Os trabalhadores brasileiros tinham algumas escolhas. Uma delas era simplesmente se subordinar a um poder absolutamente brutal. A outra era tentar expandir, em alguma proporção, a estrutura na qual poderiam atuar, e, então, mudar e conseguir algo mais – reconhecendo que estavam numa jaula, o que significa um sistema de opressão. Ora, algum anarquista sério veria um problema sobre qual escolha fazer? Digo, você deveria permanecer sob um sistema de opressão muito mais duro, ao invés de conquistar alguns direitos, utilizando essas vitórias como base para algo além, descobrindo como são possíveis as vitórias, e continuar a partir disso? Eu acho que não. E nem acho que isso seja uma questão. Agora, uma lei sobre o salário mínimo digno é uma lei. Ela passa por alguma organização governamental. Por isso, é errado lutar pelo salário mínimo digno? Eu acho que não. De fato, lutar por esse salário é também um modo de fazer as pessoas entenderem: ‘Olhe, nós podemos vencer. Nós não temos que aceitar o que acontece conosco. Existem formas de agir. Podemos agir juntos e conquistar coisas.’ Isso nos leva à questão das alternativas. Podemos construir alternativas? Sim, se soubermos que é possível fazer alguma coisa. Se as únicas opções disponíveis forem simplesmente seguir as ordens sendo você mesmo, ou tentar distinguir da melhor forma possível num ambiente opressor, você também não estará criando alternativas.” 

Com a boa companhia de Chomsky, defendo que a luta independente pelo fortalecimento da esfera pública, de melhores condições de vida para os debaixo com protagonismo destes, não impede que tenhamos a clareza de que governos como os de um Aécio Neves (representante puro sangue da elite brasileira) não signifiquem o mesmo que o governo petista. Quanto mais próximos da utopia capitalista, pior estaremos. Um caminho bom, para mim, é a completa independência dos movimentos, com a habilidade de se relacionar (pela pressão e negociação por ampliação de direitos) com as instituições. Não é porque somos contra que elas deixarão de existir. Mas já estou saindo do tema. O que estou propondo é deslocar o significado das eleições. Não se trata de um plebiscito pela organização social ideal. Não se trata de uma afirmação de identidade de cada indivíduo. Não é um cheque em branco para ninguém. Para mim é puramente uma escolha entre formas de gerir o capital mais ou menos agressivas para os debaixo, os que realmente ficarão com o ônus desse resultado. Essa menor agressividade petista não significa que seja igualmente dividida entre todas as partes, é verdade, mas não deveríamos temer lidar com a contradição, ela é que nos move, coletiva e individualmente.

E as contradições deste governo não são poucas, para usar de eufemismo. Repressão aos movimentos sociais (ainda há petista que insista na patética tese de que junho de 2013 foi um movimento de direita, tucano, de perseguição ao governo!), aos povos indígenas e aos moradores das favelas, as demissões dos grevistas do IBGE; alianças com representantes do atraso, favorecimento ao agronegócio, à indústria do automóvel, forte inclinação do viés predatório-ambiental de desenvolvimento etc. Ao mesmo tempo foi o projeto de governo que barrou a Alca (imagino o desastre que viveríamos em especial após a crise de 2008), inverteu as relações diplomáticas e econômicas com ênfase na América Latina e África, permitiu a criação da Comissão da Verdade (cujos resultados serão fundamentais para a transformação da violência estrutural de interesse de classe do estado brasileiro), e produziu o pacto social “lulista” para tirar o Brasil do mapa da fome e incluir a parcela mais pobre da sociedade no mercado de consumo, para colocar parte da juventude pobre e negra na universidade, e sem entrar em conflito com o capital (sugestão: Lulismo, carisma pop e cultura anticrítica de Tales AbSaber, pela editora Hedra). Recomendo a leitura do texto de Luciana Oliveira, advogada que participou desde o início dos trabalhos de criação do Bolsa Família, do qual destaco um trecho aparentemente pouco significativo, mas forte demais: “O objetivo era claro, alcançar as famílias pobres, as excluídas por mais de 500 anos, as que nunca haviam sido, de fato, vistas por ninguém, as que nem “existiam” no mundo jurídico porque estavam alijadas até mesmo do processo de identificação de pessoas – muitas delas não tinham sequer certidão de nascimento.” (o texto na íntegra aqui).

Naturalmente não imagino nenhum dos conservadorismos da “era PT” sendo redesenhados de forma progressista em um retorno tucano. Pelo contrário, e não preciso mencionar a linha dura neoliberal do partido da burguesia puro sangue para convencê-los de que até mesmo as “poucas” melhorias de vida estariam sob risco. Retrocesso não é só uma palavra, o significado é real e pesará nas costas dos debaixo.

Diante deste cenário, que se encerra amanhã, alguns setores da esquerda não-petista decidiram por não apoiar a continuidade deste governo, outros decidiram apoiar com mais adesão, outros decidiram apoiar com menor adesão. Estou entre os dois últimos. Confesso que não consigo entrar no Transe Coração Valente, nem ceder parte do meu narcisismo e me identificar com o governo. Considero esta adesão acrítica nociva e permissiva para um projeto que, sem pressão pesada à esquerda, se venderá cada vez mais como algo que não é. Não estamos na utopia, não são esses os nossos sonhos de igualdade política, social e econômica. Adoraria que os militantes do voto se lançassem na militância também no período entre eleições. O perrengue que o PT passou nesta eleição tem relação direta com este abandono. Mas não quero dar ideia errada: se vierem pra luta, que não a burocratizem ou subordinem à agenda eleitoral. O movimento funciona melhor se estiver a serviço da vida.

Compreendo os setores que optam pelo voto nulo (e são diferentes os votos nulos, dos tradicionais anarquistas aos “marineiros”) tanto por não conseguirem aceitar a própria existência deste sistema ou pelos conservadorismos deste governo. Mas adoraria que pensassem em como isso pode parecer insensível diante daqueles que testemunharam melhores condições de vida. Será que isto ajuda a dialogar com a classe e criar relação de confiança? O “excesso” de solidariedade não pode parecer pouco caso? Essa impossibilidade de lidar com pragmatismo não revelaria também um traço sutil, inconsciente, de esperança por um governo não-degenerado, combativo e imune às correlações de força da “política grande”? O pessimismo completo com relação às transformações profundas via instituições é que impulsiona meu pragmatismo.

Não acredito que os não-petistas que torçam, como eu, pela vitória de Dilma, sejam favoráveis às contradições acima exemplificadas, assim como não acredito que “marineiros” de esquerda defenderiam pra valer a política econômica neoliberal do que seria o governo dela caso eleita. Prefiro acreditar que estes dois grupos venham a trabalhar juntos nas lutas pelas pautas populares, as reformas urbana e agrária popular, a democratização dos meios de comunicação, a revisão da Anistia para os torturadores e responsáveis pelos anos de chumbo, as demarcações de terras indígenas, ampliação dos direitos trabalhistas etc. Ficar demasiado preso a posições obsessivamente coerentes pode engessar o indivíduo, tornar o sujeito ativo num ambiente político radical, mas endógeno, hermético, pouco saudável além de tudo.

Aos petistas puro sangue recomendo uma “reciclagem” política. A denegação do fenômeno de junho de 2013 é absolutamente sintomática. Para começar, essa verdadeira miopia faz com que o partido não consiga compreender como aquele processo é fruto das transformações reais que empreendeu (pequenas, do ponto de vista do longo prazo e enormes, do ponto de vista do cotidiano, do tempo presente). Mexeu com a estrutura de classes no país, expôs muitas contradições. Ainda não deu tempo para que surjam novas sínteses, novas referências sobre como viver num Brasil diferente do que estávamos habituados. Meu receio é que diante de um cenário de incertezas, as forças políticas de esquerda radicais ou institucionais não estejam conseguindo oferecer respostas, apontar caminhos. Não desejo o fim do PT, gostaria que os espaços de poder político fossem ocupados por pessoas mais à esquerda. Acho que o PT tem uma responsabilidade imensa de, ao tirar boa parte do país da miséria e da fome, oferecer não apenas a saída das soluções individuais, de consumo, do estilo de vida pequeno burguês pouco generoso. É preciso disputar também os corações da “nova classe média”, com um ideal mais coletivo, menos competitivo, menos aberto para o transe de direita, essa loucura que não é apenas antipetista, mas antiesquerdista, antipopular, violenta e protofascista, extremamente regredida.

Além disso, é fundamental que desta reciclagem saia uma auto-crítica sobre como o partido perdeu (e isso é bom) a hegemonia sobre a esquerda. Aí estão o MPL, os garis do Rio de Janeiro, a luta indígena, os motoristas e cobradores de São Paulo. Junho de 2013 teve como legado a redução das passagens de ônibus em quase 200 cidades brasileiras, num montante de economia para a classe trabalhadora perto do valor de um ano de Bolsa Família, mas também o incentivo a trabalhadores e trabalhadoras a se organizar independente das direções de seus sindicatos, por exemplo. Uma cultura de luta dos debaixo se abriu no país, depois de sei lá quantos anos. Irão ignorar isso e arriscar perder ainda mais terreno aqui no chão?

O dia 26 de outubro de 2014 me faz pensar numa curiosa ironia. Foi num dia 26 de outubro, há dez anos, que o Movimento Passe Livre ocupou a Câmara dos Vereadores de Florianópolis para arrancar a aprovação da Lei do Passe Livre Estudantil (pauta principal do MPL antes de adotarmos a tarifa zero). Diante da ameaça dos vereadores em não votar o projeto, preparamos camisetas com a sugestiva pergunta: “Votação ou Revolução?” O projeto foi aprovado. Meses depois, com uma nova prefeitura conservadora, a Lei do Passe Livre foi derrubada pelos seus aliados no judiciário. Saudades de 26 de outubro de 2004. Que passe logo o 26 de outubro de 2014.

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Daniel Guimarães: Florianopolitano exilado em São Paulo, ex-jornalista em atividade. Anti-editor do site TarifaZero.org e integrante do Movimento Passe Livre. Acompanhante Terapêutico, estudando para ser psicanalista e, principalmente, acima de tudo Rubro Negro. Esse texto é a estreia de sua coluna mensal intitulada EM TRANSE

Desse vermelho

por Aleksander Aguilar*

Não me diga que conheces esta cor.
Se queres vista-a, calce-a, enrola-te em bandeira,
faça fotos, poses e publique-as na rede com essa cor que pretendes,
cobre-te o calvo pelas conveniências que te esgueiras.
Mas não te atrevas a dizer que a conheces.
Porque é sangue, poeira da terra, queimadura do sol, queimadura de gelo, vergonha, digna raiva.
É tudo o que ouvistes contar, e não entendes.
É triste hoje te ver pela rua
com essa estrela que em ti não brilha, decora; essa cor que em ti é fantasia, revolta.
Fiques certo: essa cor que vestes, assim, é quase escárnio.
Essa cor que vestes não é tua.

Primeira coisa: “Voto na Dilma é veto contra o Aécio”, parafraseando o deputado federal Marcelo Freixo (Psol). Um mote que deve ser levado muito a sério na atual conjuntura, mas sem descuidar da reflexão cuidadosa que se exige sobre esta eleição 2014 no Brasil – a mais disputada e interessante dos últimos anos, de forma a amenizar os perigos do maniqueísmo construído na narrativa desse pleito e a falta de juízo crítico diante das estripulias, digamos assim, do Partido dos Trabalhadores (PT).

“Tá serto”, PT. Votaremos em vocês outra vez, mas entenda este voto-veto como um marco, definitivo, porque também é preciso humildade para o reconhecimento e autocrítica para a ação. A esquerda do país, mesmo a de discernimento e principalmente a deslumbrada, fisiológica ou acrítica, considera que o senador Aécio Neves (PSDB) na condução do Estado hoje representaria um dos maiores retrocessos da história da república brasileira, e por isso, pese a existência e o fundamento da campanha pelo voto nulo, há uma aliança tácita entre alguns, e barulhenta entre muitos, para apoiar mais um mandato petista, em que se cria uma atmosfera de terror maniqueísta, supostamente justificada, novamente, pela urgência eleitoral, que tergiversa nossa conjuntura. No entanto, a realidade deve ser, inadiavelmente, pontuada de forma assertiva e clara.

Felizmente entre os críticos esse apoio não se dá sem polêmicas ou desconfianças, algo que se entende observando três grandes traços do pleito e da dinâmica política do país que se arrasta há anos sobre os quais podemos apontar:

1- O crescimento da direita e da bancada ruralista no congresso nacional no primeiro turno – a chamada Frente Parlamentar da Agroindústria, como aponta o professor Nildo Ourique, da UFSC, tem hoje 257 deputados e senadores, metade do parlamento, e está comprometida com as estruturas atrasadas da propriedade da terra e do latifúndio. Um quadro conservador que fez relevo e expressa os extraordinários benefícios que esse setor obteve nos governos petistas, notoriamente amarrado a suas contradições. Ao ponto de uma das principais lideranças desse grupo, a senadora Katia Abreu (PMDB), figura notória da direita do país, ter declarado apoio a Dilma, além, claro, do apoio de outros personagens esdrúxulos da política brasileira, como Fernando Collor, ex-presidente por impeachment, que nunca deveria ter saído do ostracismo, mas que o PT acolhe sob a empáfia retórica do aclamado pragmatismo político.

2- O discurso entre o bem e o mal – o maniqueísmo com que foi construída a narrativa do processo eleitoral, supostamente representado, respectivamente, pelo PT e pelo PSDB, que ignora, convenientemente, as bizarras contradições políticas, principalmente petistas, e a difusão ideológica que caracteriza os partidos políticos brasileiros atualmente, encarcerados, com gosto ou não, pela pressão da governabilidade. Essa é uma reflexão fundamental para evitar o voto acrítico em Dilma, impulsionado pela retórica dos militantes, ou dependentes, do partido que propositalmente deixam de lembrar que o atual modelo não consegue fugir da equação que associa qualidade de vida e crescimento econômico segundo a lógica do capital.

3- Os atuais desafios do PT e da esquerda – ganhando ou perdendo estas eleições, o PT terá que se reavaliar. Durante vários anos os governos do PT tiveram índices elevados de popularidade, e houve acomodação do partido. Depois das “jornadas de junho de 2013”, o quadro se alterou, deixando várias perguntas em aberto e tensão no debate eleitoral. Se ganhar, o partido será pressionado a não mais se contentar com sua ortodoxia econômica com alguma preocupação social, e deverá avaliar seus compromissos com a classe trabalhadora, deverá se esforçar mais para sair do modelo de capitalismo de mercado. Se perder, haverá uma interessante e pesada avaliação do seu papel, e erros, na experiência democrática brasileira com importante repercussões na reorganização das forças políticas de esquerda do país.

OS PROJETOS EM DISPUTA  – Mesmo considerando essas generalizações, pode-se ainda afirmar que há, guardadas suas grandes e inegáveis semelhanças, dois projetos brasileiros em disputa: um social-desenvolvementista, baseado em alguma preocupação com inclusão social e distribuição de renda; e outro neoliberal, baseado em ajuste fiscal, redução do papel do Estado e radicalização do tripé macroeconômico liberal (meta de inflação, superávit fiscal e câmbio flutuante).

O primeiro projeto é incompatível em larga medida com o modelo macroeconômico exercido pelo PT, que é, essencialmente, o mesmo desde o governo Fernando Henrique Cardoso. De modo que o PT, aferrado a sua tese de gradualismo, usa, em uma forma especifica, o mesmo slogan de governos autoritários do passado do Brasil de “ transformação lenta e gradual”, agora, porém, em lugar do objetivo de democratizar as instituições nacionais sem afetar a ordem nem apontar culpados, busca avançar em políticas públicas que favoreçam os mais pobres, mas mantendo e ampliando o poder do capital.

O Partido dos Trabalhadores em 12 anos de governo sequer tentou mudar os marcos institucionais e constitucionais dos governos neoliberais que o antecederam – a exemplo do que fizeram outras nações latino-americanas com governos progressistas – e se contentou em fazer o que chama de “governo do possível”. Mesmo com a retórica progressista, o PT nunca prescindiu do capital transnacional que lhe dá suporte e acesso a mercados, e em troca o Estado facilita créditos e recursos a grandes empresas em detrimento de investimento social, algo que Frei Betto chamou de “processo exportador-extorsivo”. Esses recursos são de ordem energética, agrária e financeira e caracteriza a contradição desse modelo neodesenvolvementista que, ao fim e ao cabo, anula as diferenças estruturais entre esquerda e direita, fazendo com que o chamado processo pós-neoliberal, em tese em curso, aceite a hegemonia capitalista. Mas o segundo projeto, representado por Neves, é ainda pior, porque a economia funcionará atendendo ainda mais os interesses do capitalismo financeiro, diminuindo, por exemplo, o papel dos bancos públicos no funcionamento da infraestrutura social em favor de bancos privados. O condicionamento fiscal que se dará para atender promessas de redução da meta de inflação restringirá o gasto público em políticas sociais, gerando desemprego e recessão, aumentando as desigualdades. E as desigualdades são o centro nevrálgico dos problemas de um Brasil que não precisa focar em fazer mais riquezas, senão distribuir a existente, radicalmente.

CAMINHOS DA JUSTIÇA SOCIAL – Para realmente mover-se em direção a um futuro focado na libertação dos nossos povos e na conquista de uma sociedade pós-capitalista verdadeiramente emancipada, dois pressupostos básicos sãos necessários: separar crescimento de igualdade e reinventar a democracia. O primeiro exige superar o estruturalismo econômico, ir além dos instrumentos econômicos tradicionais que, por vezes, quando combinados com vontade política, permitem redução de assimetrias. A luta por igualdade não pode depender de crescimento econômico, porque crescer hoje significa aumentar também o uso de energias poluidoras, como petróleo e carvão, que está concretamente extinguindo o planeta. O crescimento não é infinito porque os recursos e o planeta são finitos. O crescimento, sem ser pensando criticamente, produz e reproduz pobreza. De forma que a transição social é inseparável da transição ecológica.

As desigualdades aumentaram em todo o mundo nos últimos 30 anos com a hegemonia neoliberal, e esse tipo de capitalismo destruiu a capacidade humana de viver como iguais, e força-nos a viver como consumidores. O neoliberalismo destrói nossas liberdades e nos deixa refém de um sistema financeiro que capta a renda produzido pelo trabalho. Igualdade já não pode ser entendida apenas como uma questão de distribuição de riquezas, mas como uma filosofia de ação social, como afirma o intelectual francês Pierre Rosanvallon.

O segundo pensa a democracia, como regime, que tem progredido em todo o mundo, mas degradando-se como forma de vida em sociedade. Ou seja, cresce o sufrágio universal e a liberdade liberal, mas se retrai a ideia de bem-viver comum. A democracia liberal foi capturada pelo poder econômico e distanciou-se da cidadania. A democracia está descolada das aspirações da sociedade e, no caso do Brasil, o sistema eleitoral vigente impõem um presidencialismo de coalizão que gera alianças de interesses fisiológicos, e degradação ideológica, portanto descolada de real emancipação social, em nome da governabilidade. A reforma política, assim, é um tema essencial desta eleição brasileira porque nos dá uma chance, mesmo que institucional, de “democratizar a democracia”, que deveria passar não apenas por tópicos eleitorais, mas por aumento da participação cidadã na gestão pública, garantia do acesso público à informação, extinção do Senado, reavaliação do sentido de representação e discussão da relação justiça versus controle democrático.

UM CRITÉRIO CLARO – Entre o jogo das semelhanças/diferenças, o projeto de política externa é o que deixa mais claro marcações entre Dilma Roussef e Aécio Neves. Enquanto a maioria dos analistas internacionais sérios defendem a continuidade da integração latino-americana que o Brasil promoveu na última década, o programa de Aécio fala em “flexibilizar o Mercosul”, ou seja, atacar uma das mais importantes iniciativas de integração na América do Sul, e que não se limita ao comércio.

O PSDB, defendendo a velha lógica da integração apenas pela via comercial, quer se alinhar com a Aliança do Pacífico, de países com governos atualmente de orientação conservadora, e regressar ao alinhamento assujeitado às potências tradicionais como Estados Unidos, Japão e União Europeia, que não deixa margem para o questionamento da arquitetura internacional, que deve fortalecer os relacionamentos Sul-Sul. O Brasil precisa aprofundar o seu compromisso político e econômico com a região e sua presença no Sul Global e não ignorar as relações Norte-Sul, relacionar-se com esses países como igual.

Já o PT pretende avançar na projeção internacional “ativa e altiva”, como definiu certa vez o ministro Celso Amorim, e isso se expressa na promoção de uma identidade terceiro-mundista, mas com participação entre grandes atores emergentes, como o BRICS, a defesa do multipolarismo, a reforma do multilateralismo, a ênfase na Unasul e na Celac – opções contra as quais o PSDB e seus seguidores se manifesta reiteradamente.

AVANÇAR É SUPERAR  –De modo que há hoje no Brasil, mais do que nunca, uma disputa entre elites, com a diferença que no PT, por conta do seu DNA, ainda há quem queira continuar expandindo salários reais, direitos sociais e bens públicos, enquanto que o PSDB considera que o “peso” democrático gera irracionalidades econômicas que acabam prejudicando o cidadão.

Um dos grandes traços problemáticos é que governo viável, segundo o que as lideranças petistas e seus seguidores não cansam de repetir e executar, só se dá quando assentado nessa ladainha monotemática que celebra o “pragmatismo”, e a “governabilidade”, relevando, propositalmente, sua indisposição para que o parâmetro da universalização da cidadania que, a melhor juízo, tentam promover, não fosse apenas o do cidadão-consumidor, que acaba introduzindo na sociedade valores de mercantilização de diversas dimensões da vida e da natureza e, em última análise, reforçando o conservadorismo. Concretamente é isso o que ocorre hoje, em lugar de projetar alternativas ao capitalismo, em largo prazo e, em curto prazo, ao menos combinar certas medidas inegavelmente assistencialistas em vigência – necessárias porque urgentes – com processos de formação e organização políticas que evitassem a acusação de má-fé com a criação de redutos eleitorais que reforçam esse ciclo vicioso.

Na lógica histórica da esquerda latino-americana nunca se materializou a ideia de superação etapista do capitalismo. Essa suposta realidade de hoje exige muito cuidado para impedir que os avanços, tímidos mas reais, sejam revertidos pela restauração conservadora e para que a desesperança não se imponha definitiva e irreversivelmente. O PT, como governo, tem mais uma oportunidade de fazer valer o seu vermelho, mas o desafio também abrange outros partidos e movimentos sociais, no jogo da pressão, e comprometidos com a ampliação da nossa imaginação emancipatória.

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Aleksander Aguilar é jornalista, doutorando em Ciência Política e Relações Internacionais, candidato a escritor, e viajante à Ítaca, especial para o Nota de Rodapé

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Os motoristas e a família negra de carroceiros

por Cidinha da Silva*

A eleição de 2014 me teletransportou para a de 1989 por motivos pessoais e pelo que vi nas ruas. No primeiro plano, me senti compelida a apresentar minha alma e armas petistas, mais do que dilmísticas apenas. Além de garantir direitos e conquistas fundamentais via reeleição da Presidenta Dilma, não admito que queiram me coagir com falácias e discursos marqueteiros de "mudança", contrários aos princípios e valores que me orientam. Assim, os mandatários de sempre tentaram pongar nas manifestações de junho 2013, mas deram com os burros n'água.

Tenho um lado, sempre tive. Esses discursos ufanistas e acríticos de "união de todos" (venham de quem vierem) nunca ecoaram em meus ouvidos. A mim não é possível o argumento semi-ingênuo de que a diferença entre Aécio e Dilma, é que o primeiro é mais sorridente e um pouco mais liberal. Não, não é possível. Aécio é a velha raposa mimada que nunca arrumou a própria cama, foi alimentada com os melhores iogurtes, filé mignon, ovas de peixe e muita coisa inominável nas baladas, protegido por carteira falsificada de policial civil. Não suporto disputa política sem argumentos. Eu os tinha, os tenho e me vi motivada a colocá-los para jogo.

No plano da ação coletiva, eu e tantos milhões de pessoas quisemos sair às ruas e engrossamos fileiras do batalhão que experienciou mudanças positivas concretas no país desde que o governo dos trabalhadores foi eleito. Mudanças pelas quais muita gente morreu, foi torturada, desapareceu, enlouqueceu e nós, de diferentes gerações, também lutamos, sobrevivemos e cá estamos vivendo num país menos desigual e vislumbramos o aprofundamento das mudanças necessárias, a principal delas, a concretização de uma política de estado de combate ao racismo. Quisemos mostrar que sonhamos, mas temos juízo!

Quem é pobre e nasceu em 1989, provavelmente está concluindo a universidade pelo PROUNI, pelas cotas raciais, em 2014. Teve pais preocupados em não perder o emprego, em comprar quantidades significativas (dentro do orçamento limitado) dos produtos que estivessem em oferta no supermercado. Hoje, a preocupação deles é com o desempenho dos filhos no vestibular. Preocupam-se também em voltar a estudar porque querem acompanhar os filhos universitários, querem continuar a aprender e o cotidiano da universidade tornou-se papo frequente das famílias isentas de declaração de imposto de renda.

Diferente de 1989, vejo em 2014 um mosaico de pessoas negras defendendo conquistas sociais, das quais são beneficiárias diretas. Não só as que estão nas universidades, cada vez mais, compostas por trabalhadoras-estudantes, mas também aquelas que estão defendendo as conquistas desfrutadas pelos filhos e netos. É tão bonito vê-los conscientes de que este país é deles, lhes pertence, lhes deve uma vida melhor e os primeiros passos nessa direção estão sendo dados.

As pessoas que estão em cena, desempenhando papel protagonista, são gente como o motorista negro que abandona o ônibus no trânsito engarrafado pela manifestação política pró-Dilma no Recife velho, escala as janelas do coletivo até o teto, veste uma bandeira vermelha sobre o uniforme da empresa de transporte urbano e grita: eu faço faculdade pelo PROUNI! E a multidão aplaude o super-homem. Na Cinelândia, outro motorista faz o mesmo. Na Faria Lima, em São Paulo, o terceiro motorista negro entro em ação. Enquanto observa a passeata do PSDB transcorrendo em um dos centros comerciais mais ricos e ostentatórios da América Latina, cruza os braços sobre o volante e perscruta as centenas de pessoas. Vê um jornalista tomando notas e puxa conversa com ele: boa noite jovem jornalista! Ainda não, amigo, responde o rapaz, sou estagiário. É isso mesmo, já está se preparando. Mas me diga uma coisa, jovem, tá vendo algum preto aí nessa passeata? Quase nenhum! E pobre, gente com cara de pobre, roupa de pobre, tá vendo? Quase nada também, dois ou três. Pois eles estão ali, moço (aponta com os lábios para o ponto de ônibus lotado), estão ali detonados pela exploração diária, esperando essa porcaria de ônibus enquanto os patrões desfilam de terno, chamam a Presidenta de vaca e dão vivas à polícia me mata a juventude negra na periferia das cidades. As patroas? Olha lá, ostentam joias cercadas por guarda-costas e carregam aqueles cachorrinhos-quase-gente no colo. É ridículo! Só falta a espuma do banho de champanhe para fechar a festa.

Mais à frente, ainda em São Paulo, no Largo da Batata, passa um carrão daqueles que não sei o nome com uma placa enorme "Fora Dilma!" Ao lado dele, uma carroça puxada por um cavalo esquálido carrega três pessoas negras, uma mulher, um homem e uma criança. São magros, não parecem ter muita comida disponível, mas não têm a cara da fome. Vestem-se de maneira simples, mas as roupas estão inteiras, devem ser catadores de material reciclável. São portadores de uma tristeza curtida, como couro velho que de tanto apanhar fica maleável à dor. Estão cansados, foram 115 anos da Lei Áurea ao Programa Bolsa-Família, mais dez anos para chegar à PEC das Domésticas, em 2013. Na parte de trás da carroça, bem discreto, vejo um adesivo, "Dilma 13!" A esperança deles me contagia. Seremos maioria política e eu que já vi tanta mudança, viverei para ver essa.

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escritora, Cidinha da Silva mantém a coluna semanal Dublê de Ogum.

Uma eleição de "grandes" e "pequenos"

por Vinicius B. Vicenzi*

Grande é o Brasil, pequenas as suas regiões e estados. Grande é o amor, pequeno é o ódio. Grande é um povo, pequeno seus indivíduos. Grande é a solidariedade e pequena a mesquinharia.

Essa eleição, em seu segundo turno, tem se mostrado numa disputa que poderíamos resumir entre posturas de adultos e posturas de crianças. E isso nada tem a ver com a idade de cada um.

A política é, porém, lembremos desde já, um assunto de gente grande.

De nada adianta posturas de vitimizações em indivíduos já bastante crescidos. Política é a continuação da guerra por outros meios, já sabemos desde o século XVIII. E a vítima é um "falso grande", um grande que não se quer fazer responsável de suas responsabilidades e então culpa o outro.

Culpar o outro, os políticos por "tudo o que está aí" só mostra uma postura inadequada com as suas próprias responsabilidades. Somos todos responsáveis, todos, e não só um partido ou seus líderes. "Papai" Lula e "Mamãe" Dilma não podem ser culpabilizados pelas atitudes que nós, já crescidos (espera-se ao menos), tenhamos em nossas corresponsabilidades políticas. Ou assumimos de verdade com a nossa postura esse país ou falaremos dele como se "nosso" não fosse. Os políticos, sim, nos representam. Até em suas corrupções. "Pequenos tentam esconder seus "pequenos" erros, dissimulando. "Grandes" assumem.

De um lado, então, vemos uma horda de adultos que parecem não ter amadurecido, se mostram ainda adolescentes mimados porque seus brinquedos mais preciosos (viagens de avião, shopping centers, carros e tantos outros bens de consumo) não são mais privilégios de poucos e, assim, imbuídos de status. Nem mesmo o diploma universitário lhes outorga mais essa diferenciação. O resultado, agora sabemos, é um ódio descomunal ao partido que tornou os brinquedos disponíveis a um número maior de pessoas. De outro lado, porém, vemos outros adultos, tentando convencer os outros, seus iguais, com argumentos mais razoáveis, com menos ódio e mais amor e solidariedade com outros irmãos que passaram a ser mais iguais, mais "adultos", portanto.

Posturas como a que manda a presidenta tomar naquele lugar, ou frases como "ei, Ebola, leva a Dilma embora" só nos mostram o quanto a visão pró-Aécio é majoritariamente uma visão infantil do mundo, na qual problemas estruturais como a corrupção somem à medida que eu desapareço com a causa do Mal: as outras pessoas. A corrupção ou a violência não acabam com o extermínio dos corruptos ou dos bandidos, é bom que se diga. A visão infantil, imediatista, acredita que sim. Mas os "mais velhos" precisam sempre relembrar aos "mais novos": nascem sempre outros, ressurgem. A corrupção não nasceu há doze anos nesse país. E não se resolverá em quatro anos, independente de quem vença. Um "grande" sabe disso, tem a exata dimensão disso e não se deixa enganar pelo falso moralismo como se um pirulito fosse.

Não é à toa também que o Facebook do PSDB tenha postado um "joguinho" no qual a Dilma pode ser "vencida" por um "Godzilla cubano" ou pelo "Jurássico PAC". É uma mentalidade juvenil a que move a maioria dos apoiadores da candidatura tucana. De resto, uma certa tendência nacional de um ideário de juventude eterna, propagado por meios de comunicação. Sermos o país com maior número de cirurgias estéticas não é um fato muito distante desse culto à juventude, da eterna beleza.

A questão que se coloca, porém, é que "pequenos" não governam. "Pequenos" são tutelados, precisam de uma autoridade hierarquicamente superior para lhes mostrar o caminho. É isso o que está em jogo. O imaginário de retorno à ditadura, portanto, não é, assim, surpreendente de se ver nos pró-aecistas.

Já "grandes" governam. "Grandes" debatem de igual para igual sobre os rumos do país. "Grandes" são adultos, preocupados com uma vida adulta que lhes cobra ações a cada dia, a cada mês, a cada novo salário.

Nessa eleição de segundo turno se decide, portanto, que postura estamos adotando para com o país, sejam os candidatos, seja cada um de nós, eleitores. Estamos nos comportando como "grandes", responsáveis por nossos atos e cientes da complexidade do mundo? Ou estamos nos comportando como "pequenos", chorando por aquilo que este governo tem nos privado e, possivelmente, nos privará? Somos "grandes" tentando pensar com as nossas próprias cabeças, lendo aqui e acolá para formar uma opinião mais madura ou somos "pequenos" reproduzindo o que "papai-Estadão", "mamãe-Veja" ou "titia-Globo" dizem do país?

A eleição é essa: escolheremos como grandes ou como pequenos? A postura de cada um dos dois lados parece mostrar bem quem é "grande" e digno de governar e quem é "pequeno" e precisa ser governado.

O ideário fascista tem um pé nos jovens, o ideário democrático um pé nos adultos. Confundir um lado com outro é próprio de crianças, em formação. Em adultos, o erro é inaceitável. E a única explicação: o ódio típico dos mimados e pirracentos.

Dia 26 saberemos se este é um país de "pequenos", o eterno país do futuro ou um país de "grandes", o país que finalmente assumiu o seu presente, o seu destino e suas contradições.

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Vinicius B. Vicenzi, Doutorando em Filosofia na Universidade do Porto (Portugal), especial para o Nota de Rodapé

Dois lados da mesma moeda: antipetismo e antijunhismo

por Moriti Neto*

Não é à toa a circulação intensa do antipetismo nestas eleições, virtual e fisicamente. Os comentários de ódio não são poucos. Frases simplistas, que vão desde “vamos tirar o PT do governo” até “esses nordestinos (motivados pelo PT) não sabem votar”. As afirmativas-evasivas clamam por necessidade de alternância no poder, dizem que as administrações de Lula e Dilma dividem o país dando migalhas ao nordeste e que os petistas são responsáveis pela instalação do esquema mais corrupto da história do governo federal. Tudo com falta de embasamento que beira à irresponsabilidade.

O que se vê hoje aos montes nas redes sociais é construído pela mídia tradicional faz quase 12 anos. E não precisa de argumentos, apenas de discurso raso, estreito e odiento. Trabalho longo e que, ao contrário do que imaginaram os petistas mais otimistas quando da reeleição de Lula e da eleição de Dilma, já fez grande estrago na política brasileira. Independentemente de quem ganhar a eleição presidencial, a aversão à prática da política se alastrou pelo Brasil. E, óbvio, acabou por atingir de cheio o PT, legenda que melhor sabia fazê-la.

A população está cada vez mais distante da participação nas decisões sobre a realidade nacional via partidos políticos e sindicatos – a representação cai de qualidade, trabalhadores buscam movimentos mais horizontais. Como consequência, não se formam novas lideranças capazes de articular canais múltiplos entre a sociedade e o governo. Também não se dá o amplo trabalho de base. Eão abertos os fluxos para a atuação de oportunistas. Junto às comunidades, os vácuos são ocupados por igrejas. Em vez da politização, é instaurado um “deixa nas mãos de deus”.

O problema maior é que isso está longe de se encerrar no antipetismo. A questão escancara uma ferida infeccionada pelas bactérias do discurso fácil, da superficialidade nas ideias, da falta de compromisso, exposta nos frágeis programas de governo apresentados no pleito deste ano (o de Dilma incluído).

 O vazio desses itens é similar a pedir alternância de poder sem debater a qualidade da mudança, a exemplo dos aecistas, que pedem a saída de Dilma e quase nunca expõe uma só ideia do candidato tucano. É similar a encarnar a acusação de que os petistas são os mais corruptos de todos os tempos sem ponderar que o PSDB figura em primeiro lugar na lista de partidos com mandatários envolvidos em esquemas de mau uso dos recursos públicos no país (é o Tribunal Superior Eleitoral quem diz, fundado em uma lista de políticos barrados pela Lei da Ficha Limpa). É similar, por fim, a dizer que Lula e Dilma dividiram o Brasil distribuindo “esmolas aos pobres”, sem considerar que a divisão da nação é historicamente provocada pela desigualdade, ação deliberada da elite econômica.

 Como disse antes, essa deseducação política não brotou do chão. Ela foi sistematicamente construída por manchetes sensacionalistas, tendenciosas e tantas vezes mentirosas desde 2003, quando Lula assumiu a Presidência da República. Sob o manto da imparcialidade e de fiscal da sociedade (não, pessoal, isso não existe), as seis famílias que controlam as maiores empresas de comunicação do país buscam destruir o PT para defender interesses político-econômicos, já que seus donos não são somente porta-vozes da elite, mas a própria elite.

A guerra contra o petismo, portanto, é uma variação da luta de classes. As empresas marcam uma posição socioeconômica. Não querem recuar milímetros dos privilégios que têm. Para isso, é necessário enfrentar o PT, que nem fez um governo de reformas e distribuição de renda radical, mas é um partido com origem no trabalho e sempre será encarado pela elite como o “novo rico”, ou seja, é governo, tem aceitação no círculo por um tempo, mas não é da “estirpe”.

 E se o voto do patrão não é petista, temos ainda que muitos empregados discursam e votam com o patrão, caso de diversos que trabalham nas redações da mídia corporativa e criticam duramente o PT. Curioso é que quantidade razoável desses profissionais bate contra o voto dos pobres em Dilma e esquece que os mais carentes economicamente têm direito legítimo de defender os interesses de classe, a exemplo das políticas sociais. Interesses, aliás, até mais legítimos do que os de outras parcelas da sociedade, como (quem diria?) jornalistas que votam ansiosos por manter os empregos e abrem mão da liberdade intelectual.

Não, esse não é um texto petista, visto que o PT, viciado que ficou pelas estruturas do poder, também produziu maniqueísmos nos últimos anos, coisa evidenciada desde junho de 2013. Foi a partir das manifestações daquele mês e até os protestos contra a Copa do Mundo, que o partido e boa parte da militância estimularam discursos e ações de intolerância contra manifestantes, inclusive, em dados momentos, com o uso das linhas de transmissão (de novo, quem diria?) da mídia tradicional.

Os ativistas eram execrados, ou por vandalismo, ou por “se aliarem à direita com o objetivo de destruir o governo”. Governo defendido, às vezes, como algo quase divino e intocável.

Petistas de gabarito intelectual atacavam indiscriminadamente manifestantes: eram todos “coxinhas”. Com as inteligências nubladas, havia só o “golpe conservador” nas ruas, como se não existissem pautas de esquerda na maior parte de junho (reivindicação pela redução do preço das passagens de ônibus, mais qualidade no transporte coletivo, auditoria das empresas do setor, garantia do direito à moradia, desmilitarização da polícia). Entre os muitos que generalizavam, nem uma participação nas manifestações. Depois, veio o apoio à criminalização dos movimentos de rua e às sequentes investigações policiais fraudulentas, além de decisões judiciais aberrantes, executadas para dispersar os protestos.

Dessa forma, conforme crescia o desencanto com o partido em uma parte progressista da população, o PT, primeiro, parou no tempo, travou no momento histórico de 2013. Em seguida, usou o palavrório ameaçador de “retorno da direita” e ajudou a empurrar movimentos à esquerda dele para a criminalização, ainda que não diretamente pelas mãos da polícia e da Justiça, ao menos perante a opinião pública.

A perda política veio com o despencar da popularidade de Dilma e no resultado das urnas, pois, mesmo que a presidenta se reeleja, a inabilidade do governo tornou dificílima uma eleição praticamente ganha, se olharmos para pouco mais de 1 ano antes da disputa.

Dois lados da mesma moeda e, final das contas, está dado o processo de despolitização fundado no ódio. Os veículos de comunicação tradicionais incentivaram o rancor pela política para ocupar espaços via conservadorismo. Conseguiram, haja vista a bancada mais reacionária eleita para o Congresso Nacional desde a ditadura civil-militar. O PT, de outro lado, ignorou pautas progressistas e colaborou para difundir o que algumas de suas lideranças criticam veementemente: a criminalização da política. Triste. Estas eleições poderiam ter sido, de longe, as mais avançadas da história do Brasil. Poderiam.

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Moriti Neto, jornalista e colunista do Nota de Rodapé onde mantém a coluna Escarafunchar

No DNA

por Júnia Puglia  ilustração Fernando Vianna*

Eram pelo menos quinze horas de estrada. Na rodoviária do Plano Piloto, eu embarcava no ônibus que me deixaria em Ribeirão Preto, Campinas ou São Paulo, às vezes Rio ou mesmo Porto Alegre, do outro lado do mundo. Neste último caso, como não havia uma linha direta regular, o jeito era ir até a capital paulista, descer no Glicério e tomar outro ônibus, para mais umas vinte horas de chão até o destino final. Assim cheguei a Buenos Aires e Assunção. Mas eu não reclamava de nada, qual o quê? Aos vinte anos, a energia é infinita. Ah, e nessa época, para mim o Brasil rumo norte ainda era uma total abstração.

Mal o ônibus arrancava, eu me enfiava na cabine do motorista, sempre que nela houvesse uma poltrona adicional, privativa de funcionários da empresa, e perguntava: posso viajar aqui? Foram muitas noites comendo asfalto naquela vitrine invertida, de olho na estrada, ouvindo as modas de viola que faziam companhia ao motorista solitário, em sua dura tarefa de não dormir e nos entregar inteiros muitos quilômetros à frente. Viajar sozinha jamais me incomodou, bem ao contrário. E, talvez pelo espanto que causava meu atrevimento de me aboletar por minha conta na poltrona da cabine, nunca nenhum motorista, aliás, ninguém, me disse qualquer inconveniência, ou tentou uma aproximação abusiva.

Numa dessas, saí de Araraquara rumo a Ribeirão Preto, para de lá embarcar até Brasília, às dez da noite. Não existia essa história de reservar passagem, nem compra antecipada. Quando cheguei ao guichê da companhia, em Ribeirão, fui informada de que o ônibus que eu pretendia tomar estava lotado. Bateu o desespero. Engoli o pânico e perguntei qual seria a opção, pois passar a noite sozinha, naquela rodoviária (mais de trinta anos atrás, nem te conto como era), me parecia aventura demais, veja só. Você pode ir para o trevo da Anhanguera, de táxi, fazer parar e tentar embarcar no ônibus que vem de Campinas, sugeriu o funcionário. Topei na hora, e consegui, totalmente alheia aos riscos, e talvez por isso protegida deles. Mais uma cabine para a minha coleção.

As luzes de Catalão e Araguari nas madrugadas me sugeriam a enormidade do mundo à minha espera. E eu o ia perseguindo, nas paradas tristes e sujas dos cafundós de Minas e Goiás, cruzando o cerrado de árvores encarquilhadas, que o pasto e a soja já engoliram faz tempo. Quando não conseguia viajar na cabine, eu ia junto com os outros passageiros, e rapidinho rolava um papo. Assim percebi que muita gente adora ouvir a narrativa da própria vida, especialmente quando contada à “vítima” da poltrona ao lado, uma total desconhecida. Sempre com ênfase nas dores e injustiças, mas também nos causos engraçados. Para quem estamos vendo aquela única vez, a nossa versão sempre será a única, verdadeira e definitiva. O curioso é eu mesma nunca ter embarcado nessa viagem, ficava só ouvindo.

Quilômetro vai, quilômetro vem, a vizinha, que devia ter uns vinte e cinco anos, me contou que se casaria no fim de semana, com o amor da sua vida, que ele havia terminado o noivado com uma amiga dela poucas semanas antes, a tempo de se livrar do compromisso herdado numa pequena comunidade rural e ir ao encontro da paixão, que ferveu quando olhares se encontraram numa festa religiosa. Uma grande história, e eu nem respirava, com medo de perder algum detalhe. Ficamos amigas de infância, naquelas poucas horas de noite fechada sobre rodas, nos despedimos como velhas conhecidas, ela me convidando para a festança, e pronto acabou.

As viagens de ônibus ficaram para trás. Os aviões e, de vez em quando, os deslizantes trens do tal de primeiro mundo, são totalmente outra coisa. E eu também, mas com o DNA da BR infiltrado.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Egoísmo à direita e à esquerda

por Celso Vicenzi*

Há dois tipos básicos de egoístas: o de Direita e o de Esquerda.

O egoísta de Direita não suporta a igualdade, quer sentir-se superior. É um cidadão que obteve muitos privilégios ao longo da vida, mas acha que tudo que conquistou é mérito.

O egoísta de Direita costuma dar o nome de “meritocracia” à falta de oportunidades iguais na sociedade.

Para o egoísta de Direita, quanto mais pobres, melhor. Assim, ele pode pagar menores salários, ter mão de obra farta e barata, e sentir-se vitorioso diante de quem pouco tem.

Para o egoísta de Direita, pobre não vence na vida porque é vagabundo e não quer trabalhar, embora trabalhe desde muito cedo e ajude a enriquecer muitos daqueles que mais se utilizam de sua mão de obra.

O egoísta de Direita acredita que as melhores coisas da sociedade não são para repartir entre todos, mas destinadas apenas a um grupo qualificado, a nata da sociedade.

Para o egoísta de Direita, pobre não precisa de muita instrução, afinal, quem precisa estudar muito para ocupar empregos de baixa qualificação? O egoísta de Direita acha absurdo investir meio por cento do PIB em Bolsa Família e beneficiar 50 milhões de brasileiros. Mas é favorável ao Bolsa Empresário, que abocanha generosas fatias do orçamento da União, Estados e Municípios, com isenção de impostos por vários anos na construção de indústrias, doação de terras para erguer fábricas, empréstimos a juros e taxas subsidiadas, cancelamento de dívidas que nunca são pagas, contratos superfaturados e realização de obras públicas que beneficiam empreendimentos privados – entre outras benesses muito comuns em todo o país.

O egoísta de Direita não gosta de dividir espaço com o povo. Prefere ser tratado com regalias, como se fosse um predestinado a viver em opulência. Para o egoísta de Direita, não há racismo no Brasil, o feminismo é movimento de mulheres feias e mal amadas, e o homossexualismo é uma doença que precisa ser tratada... na porrada!

O egoísta de Esquerda é diferente. É a favor dos pobres, da luta de classes. Organiza os trabalhadores contra a exploração. Sai em defesa dos mais fracos. Está presente nos movimentos sociais, nos sindicatos, nos espaços políticos onde, acredita, a luta pode avançar. O egoísta de Esquerda tem fortes convicções políticas, combate o capitalismo e acredita numa sociedade sem classes.

Mas, no entanto, o egoísta de Esquerda, quando estão em jogo questões ideológicas, não costuma ser muito solidário com o povo. Quando confrontado a decidir, em momentos decisivos da história, costuma ajudar a luta dos egoístas de Direita. Prefere lavar as mãos, indiferente ao que isso poderá significar para milhões de pessoas. Prefere ficar em paz com a sua consciência.

Alguns egoístas de Esquerda, no entanto, vão além e costumam fazer um percurso de médio e longo prazo até tornarem-se autênticos egoístas de Direita. Vários intelectuais, jornalistas e, especialmente, comentaristas de veículos tradicionais da mídia, que emprestam seus conhecimentos para, sob os mais disfarçados argumentos, deter todos os avanços sociais, no passado já estiveram ao lado dos mais pobres, dos mais fracos – e alguns até militaram em partidos de Esquerda.

O egoísta de Esquerda diz que no segundo turno das eleições vai votar em branco ou nulo porque nenhuma das candidaturas aponta para avanços na sociedade. Para o egoísta de Esquerda, tanto faz Aécio ou Dilma.

Para o egoísta de Esquerda, se não for exatamente um governo do seu jeito, ele permanece insensível, mesmo consciente de que hoje há milhões de brasileiros que comem onde antes havia milhões passando fome.

Para o egoísta de Esquerda, melhorar de vida, no sistema capitalista, não tem nenhum sentido. Não importa se antes o cidadão pagava aluguel e hoje tem casa própria, se pode investir em um pouco mais de conforto ou se o filho de um trabalhador de salário mínimo agora pode sonhar com uma universidade e uma profissão em que poderá ganhar melhor e quebrar o ciclo de pobreza que se perpetuava há gerações em sua família.

Para o egoísta de Esquerda, Aécio ou Dilma, tanto faz, é tudo igual. Reconhece que as forças políticas representadas por Dilma são um pouco melhor, mas não o suficiente para contribuir com o seu voto, solidariamente, para que tantos brasileiros que deixaram a pobreza para lá não retornem tão brevemente. O egoísta de Esquerda, no seu egocentrismo, não consegue ser solidário com milhões que hoje, apesar dos pesares, podem esboçar um sorriso por ter conquistado mais dignidade.

O egoísta de Esquerda, tão politizado, estranhamente pouco se importa se haverá um governo com uma política externa mais solidária com a América Latina e países menos desenvolvidos ou outro mais atrelado com os Estados Unidos e às forças mais reacionárias do capital internacional. Para o egoísta de Esquerda, as suas convicções ideológicas são mais importantes do que as esperanças de milhões de brasileiros. Pouco interessa ao egoísta de Esquerda o quanto foi duro e difícil conseguir o pouco – que para quem nunca tinha nada representa muito – de avanço na sociedade brasileira. Porque, afinal, para os egoístas de Esquerda e de Direita, não importa o quanto a realidade concreta tenha mudado para a imensa maioria do povo brasileiro. Ambos, por razões opostas, estarão juntos para ajudar a derrotar o que foi tão difícil de conquistar. Mesmo com todos os erros, mesmo com todos os desacertos.

O egoísta de Direita, numa eventual vitória da Direita, irá comemorar muito, ao mesmo tempo em que irá destilar todo o seu ódio, preconceito, discriminação e arrogância pelos próximos anos – que podem durar muitos, muitos anos.

Já o egoísta de Esquerda, em paz com a sua consciência, voltará tranquilo para a sua residência, para o bar, para o sindicato, para a sua corrente política, onde o aguarda uma certeza histórica de que a revolução, se um dia vier, terá que ser à sua imagem e semelhança. Embora, até lá, tudo indique que milhões de brasileiros voltarão a não ter casa, a não ter oportunidades de estudo, a não ter uma boa formação, a ficarem desempregados e terem salários arrochados novamente por uma Direita que sempre soube se unir nos momentos fundamentais da história.

Ao contrário de parte da Esquerda, que sempre desenvolveu uma enorme capacidade de fazer exatamente o que a Direita quer.

Neste momento crucial da história do Brasil, decidir por não decidir pode levar a consequências graves e imprevisíveis. Nunca se sabe onde está o “ponto de retorno”. Pode-se trilhar um caminho sem volta e condenar gerações a pagarem o preço. Omitir-se, diante do que está posto, caracteriza, no mínimo, egoísmo ideológico.


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Celso Vicenzi, jornalista, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina, com atuação em rádio, TV, jornal, revista e assessoria de imprensa. Prêmio Esso de Ciência e Tecnologia. Autor de “Gol é Orgasmo”, com ilustrações de Paulo Caruso, editora Unisul. Escreve humor no tuíter @celso_vicenzi. “Tantos anos como autodidata me transformaram nisso que hoje sou: um autoignorante!”. Mantém no NR a coluna Letras e Caracteres.

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Tempo de luta

por Nina Madsen*

O vento faz a curva e me sopra a saia, que seguro ligeiro para não passar por nenhum desnecessário constrangimento. Os cabelos emaranhados me entram na boca e nos olhos, que já ardem pela poeira levantada. Resisto ao impulso de praguejar e reconheço aquela presença forte que não pede passagem, anunciando tempos de luta.

Subo as escadas, passo pelo comitê eleitoral do candidato que não foi eleito. Fechado. Na foto, já sendo arrancada, ele aparece ao lado do outro candidato, que também não foi eleito. Sentada na soleira da porta fechada, uma senhorinha que todos os dias pede uma ajuda pelo amor de deus. A outra, mais jovem, negra também e mãe de um bebê de colo, hoje não estava.

Sigo. Atravesso a rua e vou subindo a galeria. Dia de feira, o rapa não vem. Blusas, bolsas, jaquetas, sapatos, desodorante e perfume, brinquedos, bijuteria, seu nome inscrito no arroz, eletrônicos, livros usados, frutas, açaí, quentinha pro almoço e o que mais se quiser comprar. O engraxate de expressão leve e resignada veste um paletó que é o dobro do seu tamanho e posso sentir a dignidade que habita o gesto de colocá-lo todos os dias, faça o calor que fizer.

Passa por mim uma jovem estudante correndo atrás de um rapaz a quem tenta abordar para convencê-lo a comprar chaveiros para ajudar a “salvar a família”. O rapaz nem olha, segue andando em seu passo acelerado. E ela acompanha e fala sem parar, imbuída daquela absurda missão. Dobro a esquina e me deparo com aquele corpo magro, muito magro, e praticamente nu. A pele amendoada, os cabelos amarelos em desalinho. Os olhos em desalinho, a alma em desalinho. Ela vaga por ali às vezes. E quando não aparece, me pergunto aflita se seguirá viva. Ela percebe meu olhar, ergue o queixo e passa as mãos pelos cabelos. Dignamente.

Entro no prédio – bom dia, dotôra. Me olho no espelho e me vejo tão branquinha, com essa minha cara de bem nascida, que imediatamente troco o não sou dotôra por um sorridente bom dia. Por aqui, dotôra, afinal. Suspiro. Entro no elevador. A subida é longa e lenta e sempre assenta em mim o peso da contradição cotidiana que carrego comigo, existindo dotôra naquele espaço de não-dotôres.

E começo a lida. Que não costuma trazer boas notícias, devo dizer. A vida em uma organização não governamental feminista no Brasil nunca foi exatamente fácil, mas, segundo me contam, já esteve mais farta de possibilidades de avanços. Elas hoje são escassas. Quando aparecem, nos agarramos com força. E enquanto não, a força é a de resistência para conter os absurdos multiplicantes que nosso sistema político tem conseguido produzir.

À beira desse segundo turno, é nesse espaço que situo meu voto. O espaço da (in)dignidade humana, das desigualdades e das contradições. O espaço tão reduzido para os avanços pelos quais lutamos. Não, não é o Brasil dos ovos de ouro. É certo que é um país diferente do que era 12 anos atrás. Melhor, apesar de tudo. Não melhor o suficiente, não melhor como poderia ser ou como gostaríamos que fosse. Mas melhor, com algumas escolhas acertadas que fazem muita diferença. Com outras tantas escolhas equivocadas, é verdade, que também fazem muita diferença e que embolam o meio de campo de um jeito complicado. A escolha desse segundo turno não me resulta difícil, é Dilma, sem dúvida. É uma escolha coerente com o esforço de conter retrocesso atrás de retrocesso. Mas é uma escolha que não me contempla inteiramente. Não responde às mudanças que gostaria de ver anunciadas e assumidas em compromisso.

Pelo menos daqui de onde vejo, muitas das mudanças de que também precisamos não vêm sendo anunciadas nos milionários programas do horário eleitoral gratuito e obrigatório. Por força de um sistema político escangalhado, de um conservadorismo crescente e fortalecido, elas não podem ser propagandeadas em campanha de candidato ou candidata que queira ser eleito. Pra se ganhar, tem que se jogar o jogo. Apertar a mão de quem não se deve. Silenciar o grito de quem não pode se calar. Pra ganhar, temos que perder muito (o que é, para mim, bastante devastador, tenho que admitir).

Meu voto em Dilma nesse domingo é um voto no contraditório que ainda identifico nesse governo. Um voto nos ideais ainda vivos e pulsantes de um partido sim de esquerda, um voto na voz crítica de seus militantes. Um voto nas frestas e nos poros por onde ainda podemos passar. Porque precisamos passar. Acima de tudo, acredito que o que irá decidir os próximos quatro anos no Brasil será a nossa capacidade de seguirmos organizadas, atentas e fortes, resistindo e insistindo. De estarmos prontas, sem medos que nos silenciem, sem amarras que nos impeçam o passo. Porque os ventos não sossegam: é tempo de luta.

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Nina Madsen escreve por gosto e necessidade desde que se lembra. Formada em Letras, caminhou pelos campos da educação até que se fez feminista e socióloga, por azar ou sorte. Integra o colegiado de gestão do Centro Feminista de Estudos e Assessoria, o CFEMEA, e colabora com a Universidade Livre Feminista. Aventura-se pelo avesso do mundo quinzenalmente, na coluna Crônicas do desmundo. *Desmundo aqui faz referência ao romance de Ana Miranda, uma lindeza literária que nos conduz pelas fronteiras entre o real e o onírico.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

O macho branco, heterossexual, rico e mandão se manifesta em pelo na corrida presidencial

por Cidinha da Silva*

As habilidades comunicacionais do candidato Aécio Neves constituem areia movediça que traga muitos desavisados. O discurso é escorregadio e generalista, alicerçado no apelo fácil à panaceia do governo de integração nacional, aquele que serviu a Juscelino, a Tancredo, a Sarney, a Collor e a Itamar. O que elimina os conflitos e se apresenta como salvador da pátria, pacificador e unificador.

"Ninguém é dono desse Brasil", ele apregoa, na tentativa de mobilizar o telespectador para suas fileiras. "Precisamos de gente séria, honrada... Eu vou fundar a nova escola brasileira!" Aécio procura frases de efeito e agrega assuntos desconexos - o que o Brasil precisa e o que ele, o salvador da pátria pretende fazer. É o discurso apelativo do macho-dono-da-verdade.

Aécio começa sempre como bom moço, professoral, paladino da justiça, dos bons costumes, da moral, da ética. Veste a mesma roupagem dos bem-nascidos como ele. À medida que o debate esquenta e aparecem as evidências da compra de votos para aprovar a reeleição de FHC, da privataria tucana, do desvio de dinheiro público nas obras do metrô e trens de São Paulo, do nepotismo no governo mineiro, cai a pele de cordeiro e emergem os olhos sagazes e o pelo lustroso de velha raposa.

A todas as acusações, às provas incontestes, devidamente arquivadas, Aécio chama de mentiras e responde simplesmente que, "se as pessoas estão soltas é porque não foram condenadas". Ele omite o quanto e como sua trupe operou para que as pessoas de seu partido, o PSDB, e outras sob sua proteção e mando não fossem investigadas.

"A senhora prevaricou!" Ele grita para a Presidenta Dilma Rousseff, lançando mão de palavra técnica que, no imaginário popular recebeu conotação sexual, sabe-se lá porque cargas d'água. Logo, aquele público pouco escolarizado que o assiste, chamado por FHC de ignorante, pode imaginar, a partir da acusação de Aécio, que a acusada está envolvida em temas sexuais duvidosos. A escolha da palavra não é mera tecnicalidade, ele sabe onde quer chegar e que ponto do eleitorado, principalmente do setor machista, quer atingir.

Aécio mente, des-ca-ra-da-men-te e, assim como acabei de fazer no texto escrito, com o objetivo de chamar a atenção dos leitores que me acompanham, separa as palavras em sílabas, enquanto fala, para chamar a atenção de seus ouvintes. É um recurso que funciona muitas vezes, embora ele o utilize em demasia, tornando-o enfadonho.

Seu discurso está alicerçado em bravatas. Ele assegura, por exemplo, que o PT votou contra a redemocratização do país. Na verdade, refere-se à debandada de Tancredo e seus seguidores para a eleição no Colégio Eleitoral, enquanto o PT se manteve firme, partidário das eleições diretas. Lembro-me do último comício pelas Diretas em MG, na praça Rio Branco (praça da rodoviária) em Belo Horizonte, quando, para frustração geral da audiência, lá, no último comício pelas Diretas, ouvimos Tancredo anunciar a inexorabilidade da eleição no Colégio Eleitoral. Depois, foi só acompanhar pelos jornais a campanha e articulação do PMDB pela eleição de Tancredo.

Aécio mente ao dizer que Lula e Dilma foram contra a construção de escolas técnicas no Brasil, é só observar os números: no governo Sarney foram construídas treze escolas técnicas; no governo Collor, três; no governo Itamar, vinte e sete; no governo FHC, onze; no governo Lula (em 8 anos), 355, isso mesmo, trezentas e cinquenta e cinco; por fim, no governo Dilma, 208, isso mesmo, duzentas e oito. Mas, o netinho do vovô acha que ao manipular a palavra pode fazer o mesmo com os dados e com a opinião pública. Ledo engano! Rude ilusão.

Dois assuntos o tiram do sério, além dos questionamentos a seus desmandos administrativos e política de compadrio, as drogas (lícitas e ilícitas) e a boataria de que é usuário, bem como os aeroportos construídos com dinheiro público em fazendas de familiares seus, localizadas em pequenas cidades do interior de Minas e suspeitos (os aeroportos) de fazerem parte de uma rota internacional de tráfico de drogas. O transtorno obsessivo arrebenta seus nervos, ferida, a velha raposa ataca. Curiosa é a forma do ataque-defesa: "a senhora (dirigindo-se à Presidenta Dilma) está desrespeitando Minas Gerais com as mentiras acharcadas nas redes anonimamente. A senhora tem permitido ao Brasil ver o mais baixo nível de campanha presidencial." Do que falávamos mesmo? Conversávamos sobre o uso de drogas lícitas e ilícitas, sobre a construção de aeroportos privados com dinheiro público levada a cabo por um indivíduo, por acaso, mineiro, candidato à Presidência da República! O que isso tem a ver com Minas Gerais? Por que devemos nos submeter ao hábito despótico de um adolescente mimado de substituir parte, ou seja, um mineiro no exercício da função pública, acusado de corrupção, nepotismo, má administração, desmandos e censura à imprensa, entre outras acusações, pelo todo, o estado de Minas Gerais?

Aecim não responde, ele está acima da necessidade de respostas e justificativas, seu todo-poder não comporta explicações. Ele continua a performance arrogante: "quando vou à sua cidade, Porto Alegre, quando vou à minha Belo Horizonte...", determina a cidade de Dilma no sul do país, buscando afastá-la do Curral Del Rey, a Belo Horizonte de nascimento de Dilma. É sabido que a Presidenta saiu de lá para viver na clandestinidade, perseguida pela ditadura civil-militar que Aécio chama significativamente de "revolução", como de resto, toda a direita. É Aécio, o mineiro-mor, o mais mineiro dos mineiros, o dono da sesmaria, que se arvora a outorgar (ou não) o atestado de pertencimento político ou afetivo a Minas Gerais. Mais adequado seria que Aécio dissesse "o meu Rio de Janeiro", cidade-base de onde governava Minas.

Ele não desiste, é teimoso, quer vencer a interlocutora e a audiência pelo cansaço, pela repetição de uma ideia à exaustão: "vamos deixar os mineiros em paz, candidata (referindo-se às admoestações que Dilma impinge a ele, um reles mineiro, que se acha "o mineiro"). Os mineiros sabem o que fazem. Vamos discutir o Brasil, Candidata"... Minas Gerais e seus políticos, como rebentos e netos da política de cabresto estariam acima do Brasil e de qualquer inquirição. Aecim inventou o planeta-Minas, ou não, talvez ele trate apenas de galvanizar o tal sentimento de mineiridade, conclamando os cidadãos (já que ele só enxerga as mulheres de maneira subalternizada) a posturas xenófobas contra Dilma, uma "de dentro" que ele, o todo-poderoso, alcunha como alguém "de fora". Incansável no objetivo de convencer os ouvintes de uma ideia (característica fundamental dos que dominam a oratória), Aecim lança mão da ironia mordaz e pode desconsertar um interlocutor que não goze do mesmo jogo de cintura: "quem ligar a televisão desavisadamente vai achar que a senhora quer disputar o governo de Minas ou a prefeitura de Belo Horizonte. Talvez a senhora queira, desempregada a partir de primeiro de janeiro, ser candidata ao governo de Minas, aí a senhora terá tempo para discutir Minas Gerais." Enquanto isso, deixe meu curral em paz.

Quando confrontado com função de censora da imprensa mineira atribuída à sua irmã, durante todo o governo, pressionando jornalistas, jornais e revistas, para que não criticassem o governador, tampouco expusessem os bastidores dos negócios de governo, Aécio utiliza outras frases de efeito para tentar jogar a audiência contra sua oponente: " a senhora está mentindo para o Brasil! Minha irmã Andréa, de quem tenho muito orgulho (vejam como ele é um maninho amoroso), assumiu o cargo de voluntariado, cargo que as esposas dos governantes geralmente ocupam." É uma frase carregada de sentidos. Tem-se a informação de domínio público que Aécio vivia agitada vida de solteiro, que, durante a posse, como governador, foi acompanhado pela filha, então adolescente. Por que? Porque exercia o sagrado direito concedido aos homens heterossexuais de viver sua sexualidade em plenitude com diferentes mulheres, mas, na hora das coisas sérias, convoque-se a filha, convoque-se a família, o lado A dos "homens de bem." Não esqueçamos do componente de comiseração que um homem solteiro provoca, pois, coitadinho, não tem uma mulher para cuidar dele. Sorte de Aécio que tem a irmã, uma super cuidadora. Mas, o mais capcioso da frase explicativa dirigida à Presidenta é deixar subentendido que: 1 - função de mulher é ser primeira dama; 2 - a irmã dele exerce uma função típica de mulher, ao contrário da Presidenta que exerce uma função destinada aos homens, destinada a Aécios.

Em tom laudatório, professoral e pretensamente definitivo, Aecim se recompõe: "vamos tentar novamente falar de futuro em homenagem e respeito ao telespectador que nos ouve agora. Vamos elevar o nível do debate, candidata". Então, na primeira de três vezes que se seguirão, Aecim dirige-se aos motoristas de automóveis que provavelmente estão ouvindo o debate presidencial que ocorre às seis da tarde pelo rádio do carro. Para ele, inexiste a maioria dos trabalhadores brasileiros e da população que naquele momento está apertada no transporte público, nos trens, ônibus, metrôs. Essas pessoas, nos governos Lula e Dilma puderam comprar celulares de última geração, tablets, smartphones e usam esses aparelhos enquanto se deslocam para casa e para o trabalho. Mas, ele não as menciona porque elas não existem para o PSDB, são apenas votos, logo, não são lembradas, tampouco citadas de maneira natural, como os usuários de carros, helicópteros, jatinhos e aeroportos privados.

Outra vez, perguntado sobre a Lei Seca criada em 2012 para coibir a circulação de motoristas embriagados ou sob efeito de drogas, Aécio se desequilibra. Para quem não sabe, ele foi parado em blitz da Lei Seca no Rio de Janeiro e recusou-se a fazer o teste do bafômetro. A resposta dada tenta inverter o vetor da acusação: "candidata, tenha a coragem de fazer a pergunta direta, a senhora traz para esse debate, talvez pelo desespero, um tema que tem que ser colocado com absoluta clareza..." Só no planeta de Aécio, provavelmente, alguém que esteja "desesperado" tem racionalidade para propor temas que devem "ser discutidos com absoluta clareza." Esse tipo de prática é, ao contrário, de quem tem lucidez, de quem pensa e não tem os neurônios comprometidos por essa ou aquela substância química. Aecim continua: "eu tive um episódio em que parei numa Lei Seca porque minha carteira estava vencida e ali, naquele momento, inadvertidamente não fiz o exame, me desculpei, me arrependi disso. A senhora não se arrepende de nada que fez em seu governo, diz enfático, é importante que nós olhemos pra frente, vamos falar do Brasil, vamos falar de coisas sérias, não é possível que a senhora abaixe tanto a campanha. Quando a senhora ofende a mim e a minha família, ofende todos os brasileiros que querem mudança."

Aécio tenta conquistar a empatia do eleitor fazendo-se de frágil e flexível na esfera pessoal, vejam, ele erra, é humano, pede desculpas, ainda mais, arrepende-se dos erros cometidos. O arrependimento é artifício cristão pescado para evidenciar suposta pequeneza humana e mobilizar os corações fraternos e solidários. E Dilma, ao contrário, seria irascível, implacável, características masculinas detidas por ela, mulher fora do lugar que ocupa um lugar de homem, lugar de Aécio. Ela não se arrepende de nada feito em seu governo. Mas, desde quando a arena política é lugar religioso de arrependimento? O campo da ação política é espaço de compromissos e responsabilidades, de assumir acertos e erros. Falávamos da vida pessoal de Aécio, de suas infrações de trânsito, de sua negativa para fazer o teste do bafômetro e, em resposta, ele saca da cartola uma associação religiosa de não-arrependimento por supostos erros no jeito de governar da adversária. Depois da estratégia deliberada de confundir o eleitor, o candidato pede que falem de "coisas sérias." É provável que ele ache que flagrá-lo numa blitz da Lei Seca não é coisa séria, pois ele pode tudo como Thor Batista e outros meninos mimados país afora.

Por fim, Aecim recorta e descontextualiza a fala de sua interlocutora. Ela não acredita que haja alguém acima da corrupção e acredita que todas as pessoas possam cometer corrupção. As frases são suficientemente explicativas, em síntese, ninguém está acima da lei, todas as pessoas que exercem função pública são passíveis de cometer erros e, responsáveis por eles, devem ser investigadas, julgadas e punidas, caso seja comprovada culpa. Ele sabe disso, mas manipula as palavras e tenta ludibriar o público com uma tirada generosa (sic): "eu vou dar à senhora a oportunidade de desculpar-se com os brasileiros por aquelas afirmações." O rapaz do Rio, digo, de Minas, quer vender a imagem de magnânimo, daquele que oferece à sua opositora a chance de ser humilde, de desculpar-se. Mas, desculpar-se pelo que, mesmo? Aécio dá a entender que as pessoas que escrutinam sua vida particular, descobrem e publicam seus podres estão invadindo fronteiras de um castelo inexpugnável. Ele acha que está acima da corrupção, tem caráter inquebrantável e honradez que só um Aécio pode ter.

Está errado, menino mimado! O feminismo nos ensinou que o pessoal é político. Que os homens "de bem”, como o professor uspiano que no início dos anos 80 espancava a mulher em casa e depois seguia lépido para a filosofança na maior universidade da América Latina, como Dado Dolabella, como políticos diversos, não podem agredir mulheres, torturá-las e matá-las, como fez Pimenta Neves, como se isso fosse normal e aceitável, porque são homens brancos e detentores de prestígio social, seja pelo dinheiro, pela intelectualidade ou pela exposição na mídia (produção da mídia), para além da brancura. O feminismo e a coragem das mulheres que denunciaram nos ensinaram isso.

Algum assessor precisa avisar a Aécio que, caso tivesse tido comportamento decente diante do mal estar de Dilma, pós debate no SBT, ao invés de ironizar sua fragilidade física temporária, teria conquistado votos e boa vontade de indecisos para sua candidatura. O problema é que essa performance ele não treinou, tampouco tem elementos para executá-la, buscados de algum reservatório perdido de valores humanos. Ele é apenas uma velha raposa, pronta a destroçar a presa se ela titubeia.

Mas, nós, mulheres, sabemos o lugar onde homens como Aécio querem nos colocar ao nos dar ordens, ao nos chamar de levianas, ao empinar o dedo mandão enquanto falam conosco. O machismo, o racismo e a homofobia apoiam Aécio, estão a seu lado: Olavo de Carvalho, Malafaia, Lobão, Feliciano, Alexandre Frota, Dado Dolabella, Bolsonaro, Pastor Everaldo, Fidélix, Carlinhos Cachoeira, Aloysio Nunes, abençoados por Marina e estranhamente referendados por Luís Mott. Às mulheres, à exceção de Sandra de Sá, ele não engana. Ou não, já que “vale tudo, só não vale dançar homem com homem, nem mulher com mulher, o resto, tudo vale!” Contudo, em que pesem os mistérios humanos, as contradições, oportunismos, síndrome do escravizado e idiossincrasias, perdeu, playboy! Perdeu!

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escritora, Cidinha da Silva mantém a coluna semanal Dublê de Ogum.

domingo, 19 de outubro de 2014

Clippagem amiga do NR para o debate eleitoral

por Thiago Domenici

Faço aqui uma seleção de textos que considero interessantes para o debate em torno das eleições. São avaliações de pessoas de vários espectros ideológicos e políticos, sobretudo, mais à esquerda, por força das características desse blog e desse editor. O que está aí considero poder ajudar a clarear as ideias sobre o cenário conjuntural do primeiro e segundo turno das eleições. Sobretudo agora, nesse clima de polarização PT-PSDB onde vemos uma avalanche de informações.
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Thiago Domenici, jornalista, editor e coordenador do NR.
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