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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

O que vem de dentro

por Júnia Puglia   ilustração Fernando Vianna*

Quando eu nasci, constatou-se que eu era menina e branca. Com o passar do tempo, perceberam que eu era canhota. Fui solteira até os vinte e oito anos, e desde então sou casada. Estes são alguns dos dados básicos que me definem e me situam.

As definições, e com elas os rótulos, nos acompanham a vida toda. A maior parte delas se refere a ser “uma coisa ou outra”, a ocupar um lugar numa divisão binária, entre duas posições pré-determinadas, entendidas como opostas e mutuamente exclusivas. Estas identificações, quase sempre prontas e aplicadas com toda naturalidade, organizam, simplificam e supostamente facilitam a vida e a nossa relação com o mundo e com as pessoas, pois nos dispensam de pensar. Facilitam coisa nenhuma.

Anos atrás, assisti a uma palestra que me empurrou para a desmontagem dessa casinha tão encaixadinha dos lugares e das identidades, que já vinha bem balançada. Lohana Berkins, travesti argentina, ativista dos direitos equitativos em seu país, participava de uma série de eventos na Universidade Columbia, em Nova York, onde se abordava a necessidade de questionar e combater os fundamentalismos – políticos, religiosos e demais. A certa altura de sua inesquecível conferência, Lohana mencionou o fato de ser frequentemente cobrada sobre se definir como homem (pela genitália masculina intocada) ou mulher (pela identidade que assumiu). Sua resposta me caiu como um raio: “não me defino como mulher nem como homem; eu sou, e quero ser, o que sou”. De maneira inequívoca, tomou para si a tarefa de ser, atropelando as categorias pré-determinadas. Em outras palavras: por que, e quem disse que, todos temos que assumir aquilo que recebemos nas caixinhas que nos foram atribuídas?

Quanto mais eu observo e me informo a respeito, mais me convenço de que até agora mal levantamos a ponta do edredon que encobre a sexualidade humana. Ela é infinitamente maior e mais complexa do que o papel reprodutivo – como tanta gente já percebeu – e vai muito além do que está escrito no corpo. O binarismo, que reinou por milênios, está começando a perder o sentido. Sabe por que?

Porque estamos caminhando no rumo de entender muito melhor as inumeráveis nuanças que a vida pode adquirir, sobre as quais sabemos tão pouco. Estamos percebendo a impossibilidade de controlar o que cada pessoa é, bem como a força que tem o que vem de dentro, em contraposição ao que vem pronto de fora. Como somos despreparados e desentendidos do assunto, aquilo que escapa do binário nos desespera, transformando a diferença em drama e, frequentemente, tragédia. O mais fácil e rápido é gritar, espernear, brandir princípios morais e religiosos, exigindo que todo mundo deixe de frescura, de complicar e embaralhar o jogo, e se encaixe de uma vez.

E não estou falando só de ser homem ou mulher, heterossexual ou homossexual. Até agora, esteve mais ou menos claro o que era ser branco ou negro, certo ou errado, pobre ou rico, nacional ou estrangeiro, nativa ou migrante, de esquerda ou de direita, melhor ou pior, culto ou ignorante, solteira ou casada, cristã ou muçulmano ou budista ou do candomblé, com valores atribuídos a cada termo. Quando nos demos conta, todos esses limites se borravam, abrindo muitas outras possibilidades.

Não é nada fácil entender o que se passa, porque é muito complicado mesmo. Mas, pensando bem, talvez nem seja preciso sofrer por causa disto, pois acho que existe um caminho que sempre dá certo: o da boa e velha dupla solidariedade e empatia, aquela capacidade de olhar para quem está ao nosso lado e considerar que, partindo da condição humana inerente a todos nós, todas as diferenças são possíveis, pois, sejam elas quais forem, não passaremos nunca de ser, todos, todas, o arco-íris inteiro, singelamente humanos.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

Um comentário:

Anônimo disse...

muito bem pensado, escrito e comunicado. É so percebermos a riqueza de opções que temos. Maravilha! E se permitir o exercício da liberdade! Me emocionou a lucidez da Lohana Berkins. É isto ai! Nada de engulir o que não queremos e não somos. Bjs.,minha sempre mestra.

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