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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

terça-feira, 14 de abril de 2015

Sete dias entre a vida e a morte

por Fernando Evangelista*

Quando acordei no hospital, depois de sete dias em coma, não conseguia me lembrar do que havia acontecido.
Não recordava do chute, nem do impacto da bola contra a minha cabeça, nem da cabeça batendo no chão de cimento. Era maio de 1987.

Eu cursava o sexto ano do ensino fundamental e, como boa parte dos adolescentes, achava o colégio uma perda de tempo e de imaginação. Suportáveis mesmo só as duas aulas de educação física em sequência, porque o professor era boa gente e ensinava esportes ao ar livre. Com três diplomas universitários – educação física, teologia e filosofia – ele unia essas formações na aula de futebol, exclusiva para meninos. As meninas faziam atividades na quadra ao lado.

“Vamos treinar cobrança de pênalti”, orientou o professor. “Antes de chutar, cada um dos senhores pegará um papel dentro deste copo plástico e vai ler bem alto, o mais alto possível, a palavra sorteada. Dentro do pote, vocês vão encontrar os sete pecados capitais, entre outras coisas. Ficou claro?”

Pecados capitais? Não, a molecada estava confusa, mas deixou por isso mesmo e eu fui para o meu lugar cativo, o gol. Eis uma lei futebolística imutável: Todo perna de pau que se preze, a não ser que seja o dono da pelota, será escalado para o gol. Ou fica na zaga dando bico pra frente.

 “Você” – continuou o professor, apontando o dedo pra mim, “deve defender cada uma destas bolas-palavras com gana e seriedade”.

Alguns anos depois, quando assisti ao filme Sociedade dos Poetas Mortos, tive certeza de que o meu professor inspirou a criação do sensível e sábio John Keating, interpretado por Robin Williams. Como no filme, os garotos tiravam os papeizinhos, gritavam o que estava escrito e chutavam as bolas em direção ao gol. Entre um chute e outro, o mestre declamava trechos de um livro do Ferreira Gullar, seu poeta favorito.

 Papel, palavra, chute, defesa, poesia. Modéstia à parte, defendi tudo. “Avareza”, gritava alguém antes de chutar. E eu defendia a avareza. Defendi também a inveja, a gula, a preguiça, a luxúria e a inveja. Os pecados estavam misturados entre os capitais e os outros, que os meninos supunham menos graves. Uma por uma das cobranças – no canto direito, no esquerdo, no alto, no ângulo – eu pegava. O vento desviava para longe os chutes indefensáveis.

O último tiro coube ao Rômulo, o brutamonte. Seu apelido era Escadinha, em referência a um famoso bandido daquele tempo. Como já tinha repetido dezenas de vezes cada um dos sete pecados capitais, o professor deu a ordem, sem sortear a palavra. “Vai, Rômulo, chuta a vida”.

Rômulo Escadinha era um sujeito revoltado com a vida. Ele tomou uma distância exagerada, pegou de bico na bola e ela voou como uma pitomba no meio do gol, diretamente contra a minha cabeça. Meu reflexo falhou e os braços permaneceram imóveis ao lado da cintura.

A bola bateu um pouco acima da testa e voltou na direção do meio-campo. Ela, a bola, não entrou – fato que considero importante registrar. Desabei para trás, provavelmente já desmaiado. Minha cabeça chocou-se contra o chão de cimento. Fiquei sete dias em coma e nunca mais me recuperei. Desisti do futebol e me apaixonei por Ferreira Gullar.

Com força, a bola da vida bateu em mim e continua batendo, insistentemente. Por mais que tente, não consigo segurá-la ou compreendê-la. Ela me confunde e escapa e então volta, sem aviso, sem cerimônia e sem manual de instruções.

* * * * * * 

Fernando Evangelista é jornalista. Escreve às terças-feiras no Nota de Rodapé. Esta crônica, publicada aqui ano passado, foi reescrita e fará parte do livro o Piano de Casablanca (editora Insular), a ser lançado em maio.

Um comentário:

Cristina Avila disse...

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