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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Corumbiara: massacre ou batalha?


Ocorrido há vinte anos, o conflito agrário entre sem-terra e policiais em Corumbiara, que resultou em 12 mortos, abriu a disputa entre grupos de reforma agrária pelo significado dos fatos

por João Peres*

A joia da coroa está em disputa. Os anéis, as mãos, os dedos: tudo foi colocado sobre a mesa. E não há vencedor. Ocorrido há 20 anos, o chamado “massacre de Corumbiara” é uma história em aberto. A luta pelo significado das 12 mortes registradas na tentativa de reintegração de posse da fazenda Santa Elina, no sul de Rondônia, em 9 de agosto de 1995, parece não ter data para chegar ao final.

Sem o apoio de grupos institucionalizados de reforma agrária, centenas de famílias ocuparam, em 14 de julho daquele ano, a gigantesca área de 18 mil hectares, uma de muitas criadas durante a ditadura por meio de editais de concessões de terras. Os líderes da articulação estavam rompidos com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), mas tinham credibilidade por vitórias obtidas na região, que tem um dos solos mais férteis do estado. Muitos se sentiram atraídos pela possibilidade – 2,3 mil pessoas, no cálculo dos posseiros. E os fazendeiros decidiram que não podiam sofrer nova derrota.

Os fatos que seguem são simples de entender. O Judiciário determinou a reintegração de posse imediata. O comandante do 3º Batalhão da Polícia Militar, José Ventura Pereira, postergou o cumprimento do mandado, ciente de que poderia haver uma tragédia. Contudo, entre a madrugada e a manhã de 9 de agosto, pressionado, deu início à dramática operação.

Imagem: Gerardo Lazzari 
Antenor Duarte do Valle, vizinho da área ocupada, é o personagem mais intrigante da história. Beneficiário de 43 mil hectares doados pelo regime autoritário, multiplicou fortuna e poder ao mostrar que, também na democracia, poderia manter sob seu comando Judiciário, Legislativo e Executivo. Contra ele há denúncias acumuladas de exploração de trabalho escravo desde 1986 e, entre 2004 e 2009, figurou na chamada “lista suja” de empregadores flagrados nessa condição pelo Ministério do Trabalho. Construiu fortuna à sombra, sem pretensão de aparecer nas colunas sociais, e não lutou pela narrativa pública do que ocorreu na Santa Elina.

De maneira diferente atuaram os líderes da ocupação, que se empolgaram nas semanas seguintes aos fatos. Apesar do desfecho trágico, agora estavam animados por despertar a atenção de instituições distintas ideologicamente. Num primeiro momento, orbitaram em torno de grupos reformistas, em especial da Central Única dos Trabalhadores (CUT). Ainda em 1995, foram seduzidos pela Liga Operária, uma organização de atuação urbana baseada em Belo Horizonte (MG).

Após o trágico episódio, fundaram o Movimento Camponês Corumbiara (MCC) e passaram a ter como foco principal o assentamento criado em Theobroma, no centro de Rondônia, onde seria colocada parte das famílias expulsas da Santa Elina. Com mais dinheiro e poder em mãos, os líderes viram a coesão se esvair, no entanto. Cícero Pereira Leite Neto acusou Adelino Ramos de se apropriar de uma serraria que deveria gerar receitas para o movimento. Acabou expulso. Adelino deixou o MCC na sequência e, em 1999, foi a vez de seu filho, Claudemir Ramos. A essa altura, os cabeças da ocupação da Santa Elina estavam rompidos com a Liga Operária, que, em 2000, anunciou a criação de seu braço rural, a Liga dos Camponeses Pobres de Rondônia (LCP). A Polícia Militar, como corporação, não teve interesse em interceder na discussão dos acontecimentos. Com isso, LCP e MCC passaram a rivalizar os debates. A briga inicial em torno da versão dos fatos foi semântica: a LCP passou a advogar que o que ocorreu foi uma batalha, ou um combate, e não um massacre. A nomenclatura figurava também na boca de policiais e promotores, mas não com o sentido almejado pela organização, que sempre ressaltou um suposto papel heroico, de resistência. Uma versão que criou complicações para os líderes da ocupação, que advogaram que não houve enfrentamento, mas um massacre.

As linhas gerais da acusação formal pelo Ministério Público (MP) são simples. Na visão da promotoria, é preciso separar os fatos de 9 de agosto em dois momentos. No primeiro, sem-terra e policiais se enfrentam. No segundo, policiais descontrolados, tendo o acampamento já dominado, cometem abusos, torturas e execuções. Os líderes dos posseiros, diz a denúncia, não permitiram que os acampantes fugissem do local e assumiram o risco da tragédia ao partir para o confronto.

O MP alegou que líderes do acampamento e oficiais militares deveriam responder pelos fatos, tese parcialmente rejeitada pelo Judiciário. Além desses dois grupos, a intenção do MP era levar a julgamento Valle e seu capataz, José de Paula Monteiro, uma vez que o proprietário de áreas vizinhas à Santa Elina havia comandado um grupo de pistoleiros que assassinou ao menos um posseiro. Além disso, teria contratado policiais para que atuassem na espionagem dos ocupantes e ido até Porto Velho pressionar o governador Valdir Raupp (PMDB) a promover a reintegração. Ao final, Valle safou-se e foram a julgamento dois líderes dos posseiros e 12 policiais militares.

O júri foi marcado pela pressão para absolver os agentes públicos. Apenas os policiais militares Airton Ramos de Morais e Daniel Furtado e o então capitão Vitório Régis Mena Mendes foram condenados. Entre os sem-terra, Cícero e Claudemir foram considerados culpados.

Cícero havia se afastado dos movimentos de reforma agrária e, embora contrariado, estava preparado para cumprir a pena de seis anos e dois meses, o que só ocorreria a partir de 2007. Claudemir, rompido com a LCP e inconformado com a pena de oito anos e meio de prisão, deu início a uma trajetória de fuga ainda não concluída. Sem ele, coube ao pai, Adelino, representar o MCC nos primeiros anos deste século. Tido como centralizador por amigos e autoritário por inimigos, Adelino perdeu força e passou a promover ocupações cada vez mais próximas a Porto Velho, onde o solo é pobre.

Imagem: Gerardo Lazzari 
A LCP alimenta relação contraditória com os líderes da Santa Elina. Diz-se revolucionária e se notabiliza pelo “corte” (divisão da terra em lotes para fins de assentamento) popular, feito à revelia do “Estado burguês e hipócrita”, expressão que costuma utilizar em seus manifestos. Defende o direito de a classe trabalhadora formar unidades de autodefesa e vê no fim do latifúndio o único caminho para libertar as forças produtivas. O caso de Corumbiara é entendido como “uma ruptura entre as lideranças oportunistas que defendem a reforma agrária do governo e as lideranças combativas que romperam as ilusões com o processo eleitoral e defendem a revolução agrária”.

Em 2007, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) retomou os estudos para a desapropriação da Santa Elina. Sem conseguir comprovar o baixo grau de produtividade da área, o Incra agiu baseado nos índices de desmatamento. Fechou acordo com os herdeiros da fazenda, que receberam 52,7 milhões de reais por 14 mil hectares. A LCP foi o primeiro movimento a reocupar as terras.

A resposta veio em seguida. O Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Corumbiara, próximo ao PT, pressionou o Incra, que adotou decisão salomônica: metade para cada lado. Os “reformistas” ficaram com a área que inclui o ponto onde ocorreu o conflito. Aos “revolucionários” coube a sede da fazenda.

Enquanto isso, o MCC foi empurrado para fora do estado. Adelino, isolado, não teve muita força para mobilizar famílias dispostas a ocupar uma área insalubre, o Projeto de Assentamento Florestal Curuquetê, em Lábrea, no sul do Amazonas, na nova fronteira do desmatamento. Em maio de 2011, foi morto em Vista Alegre, distrito de Porto Velho, perto de onde morava. Osias Vicente, ligado a madeireiros, foi apontado como autor dos tiros. Daí por diante, o roteiro clássico: libertado no final daquele ano, Osias foi morto um mês depois e os dois casos acabaram arquivados sem chegar aos mandantes.

O MCC praticamente acabou depois disso. Claudemir saboreia o amargor da solidão. Foragido, não tem como representar o movimento e se opor aos antigos amigos. Se mantidas as regras penais atuais, os crimes pelos quais foi condenado prescrevem em 2020. “Quero voltar, inclusive quero ir lá dentro do assentamento do pai e reativar a luta. De uma forma estratégica, com cautela, mas sem burocracia”, conta, esgueirando-se para não ser apanhado. A joia da coroa segue em disputa.

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* João Peres, jornalista, editor do Nota de Rodapé e sócio-diretor da Agência Página Três, é autor do livro Corumbiara, caso enterrado, lançado em julho pela Editora Elefante. Este texto foi publicado originalmente na edição de agosto da revista mensal Retrato do Brasil.

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