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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

O sujeito (extra)ordinário

Ao chegar no topo da escada no piso superior do prédio é o Luiz, vestindo a camisa de São Jorge, que me recebe com o primeiro sorriso da noite. Na lenta caminhada até a mesa onde costumo sentar vou cumprimentando a todos: músicos afinando os instrumentos de um lado, amigos de copo do outro.

Ali, na minha mesa cativa, já me sinto em casa e em poucos minutos um brinde dá início a ininterrupta conversa dos ébrios. “Bebe que a vida é outra!”, diz uma amiga com seu timbre negro. A noite está só começando.

O Clube do Choro de Porto Alegre se transformou em tema de um documentário há quase cinco anos, quando eu e uma amiga procurávamos um bar para nosso deleite estético e etílico. Ela é desenhista e na época estudante de História, eu, fotógrafa, estudava Ciências Sociais.

Tínhamos este projeto em comum, dedicar noites e noites a um bar, registrar acontecimentos, conversar, beber com os frequentadores e aos poucos ir recolhendo histórias de bar. Aquelas que são contadas na euforia da noite, entre goles de cerveja, por um amigo completamente desconhecido, que tornou-se instantaneamente íntimo.

A idade dos frequentadores do Clube do Choro varia entre 60 e 90 anos. Este grupo que se convencionou a chamar de terceira idade nos instigava. Uma rápida descrição das pessoas que frequentam o lugar levaria a crer que se trata de um baile onde senhores e senhoras vão, às vezes, para se distrair um pouco. Eu, aos meus vinte e poucos anos, me deparava com eles e admirava a intensidade com que desfrutavam a música, a dança, a bebida e a paquera.

Distribuídos neste espaço estão músicos, boêmios e admiradores; frequentadores assíduos, amigos ou velhos conhecidos que se reencontram por meio da música e das histórias que compartilham. É possível reconhecer no local um universo de relações que se arranjam ao ritmo do choro, da valsa, do samba, da marchinha.

No Clube do Choro de Porto Alegre reverberam os ecos de uma juventude vivida entre as boates do bairro Cidade Baixa tais como Pandeiro de Prata e Chão de Estrelas. A origem do Clube se sobrepõe a história de músicos e bares famosos da década de 60 e 70. Túlio Piva, contemporâneo de Lupicínio Rodrigues, um dos fundadores do Clube, foi dono de uma das boates mais famosas de Porto Alegre dos anos 60: Gente da Noite.

Entre os homens, o traje mais comum é o terno. Os mais despojados, usam camisa ou camiseta gola polo e jeans. Hélio é reconhecido pelos belos trajes e consagrou sua fama depois que foi vencedor de um concurso de beleza promovido pelo Clube. Desde então tornou-se rima, transmutou-se em poesia. “Este é Hélio Cardoso, o coroa mais charmoso”, apresentam-lhe.

As mulheres, vaidosas, usam maquiagem, anéis, brincos, colares, unhas pintadas e bocas vermelhas. Há um equilíbrio entre o sóbrio das roupas e o brilho dos acessórios, havendo um cuidado extremo para não errar nas combinações. Se as roupas são discretas, as personalidades não.

Dione afirma veementemente que pendurou as chuteiras, “homem, nem pensar!”, Elza, sua amiga diz provocativa “eu tenho mais sorte...”. As duas estão sempre conjecturando sobre o assunto. Se chegam ovos de codorna pelas mãos do garçom à mesa de alguém elas riem e falam entre os dentes: “é afrodisíaco!”.

Faz cinco anos que revisitamos, todas as quintas-feiras, nossos velhos amigos e interlocutores para lhes ouvir contar sobre amor, saudade, alegria, boemia, solidão, paixão. É na exaltação destes sentimentos que damos asas aos nossos narradores.

O filme está em fase de montagem, com previsão para ser lançado em maio deste ano. O que vai prevalecer é a vida ordinária e corriqueira como a minha e a sua. Porque contar histórias é, talvez, a melhor maneira de enriquecer a vida.


[Direção: Ana Mendes e Natália Chaves Bandeira]

O título do texto é inspirado no livro Cinema do Real, organizado por Maria Dora Mourão e Amir Labaki. São Paulo: Cosacnaif, 2005. Já o filme do Clube do Choro está sendo produzido pela Panda Filmes com financiamento da Prefeitura de Porto Alegre/FUMPROARTE 2010.

Ana Mendes, 26 anos, gaúcha de nascimento, errante de coração e profissão. Fotógrafa e cineasta documental formada em Ciências Sociais. Trabalha como fotojornalista freelancer entre Brasília e Porto Alegre. Mantém a coluna mensal Faço Foto.

A pequena tragédia do Concordia

Dentro de umas décadas, quando numa conversa de bar em algum lugar do mundo a história do naufrágio do Costa Concordia for recordada, é muito provável que a covardia do capitão Schettino seja o primeiro a ser comentado, seguido pela enorme bronca que lhe deram (o célebre “Vada a bordo, cazzo!”).

Serão lembrados também os mortos, os desaparecidos e os sobreviventes, mas a tragédia pessoal de Massimo Donghi não fará parte dessa memória coletiva.

Se eu estiver nessa mesa de bar, farei questão de relembrar o caso (e dar-lhe a devida importância) desse padre italiano da pequena Besana Brianza, cidadezinha ao norte de Monza. Para mim, o naufrágio pessoal do religioso é a síntese do espetáculo diário que é a vida.

Por trás dos heróis e dos vilões que protagonizam os acontecimentos grandiosos, há dezenas de histórias trágicas, heroicas e cômicas que acabam eclipsadas. Para nossa sorte, às vezes algumas delas vencem a escuridão.

Pois eis que Donghi, dias antes do cruzeiro tombar, despediu-se de seus fiéis e anunciou emocionado que deixaria a cidade por umas semanas para meditar em um retiro espiritual. Refletiria sobre esses duros tempos, rezaria por todos nós e voltaria ainda mais comprometido com seu labor paroquial.

O padre teria desfrutado de 15 dias de luxo com direito a festas, banheiras de hidromassagem e cassino a bordo do Concordia não fosse a manobra desastrosa do capitão Schettino, que afundou o barco e a reputação do pároco.

Donghi foi desmascarado porque seu sobrinho, para tranquilizar amigos e parentes, escreveu uma mensagem no Facebook avisando que ele, o avô e o tio haviam sido resgatados por uma lancha e estavam salvos após o naufrágio do navio em que viajavam.

Quem também viveu um calvário pessoal ao sobreviver a uma tragédia foi Johnny Barrios, um dos 33 mineiros soterrados por mais de dois meses numa mina no Chile em 2010. Enterrado vivo, ele não viu como duas mulheres reclamavam na superfície a exclusividade de seu amor frente às câmeras de TV.

No final, quem o recebeu foi a amante, Susana Valenzuela, e não a esposa, Marta Salinas, com quem estava casado havia 28 anos. Em meio às centenas de pessoas que esperavam pelo resgata dos heroicos mineiros, havia outras amantes, filhos ilegítimos que esperavam para conhecer seus pais e familiares dispostos a perdoar e pedir perdão depois de anos de separação. Histórias espetaculares, mas que acabaram soterradas.

Ricardo Viel, jornalista, colunista do Purgatório e do NR, escreve às segundas, direto de Salamanca, Espanha.

sábado, 28 de janeiro de 2012

A revolta era tudo que eles tinham

Amanhã faz uma semana da reintegração de posse no Pinheirinho, em São José dos Campos. Abaixo, o relato do jornalista Rodrigo Mendes de Almeida, colunista do NR, que foi ver de perto a ação policial e a desolação dos desabrigados. É um relato subjetivo, diante do bombardeio de informações ao longo da semana. O texto é uma tentativa, como diz Rodrigo, de “dividir um pouco do que senti estando no local de uma tragédia”.
 
Nunca havia visto nem sentido nada que se aproximasse do que senti no Pinheirinho. O clima era de terror e pânico. A desorientação das pessoas que não entendiam como podiam ser violentadas de forma tão brutal era evidente, um sentimento pungente de desolação.

O desamparo de gente que tinha uma casa, que tentava construir uma vida e que, de uma hora para outra, estava na rua, pedindo ajuda para beber água e comer. Uma tragédia calculada minuciosamente, com frieza, e levada a cabo com requintes de crueldade que nenhum tipo de política pode explicar. O saldo: cerca de nove mil pessoas jogadas na rua, alguns mortos, muitos feridos. Vidas arruinadas.

Nosso grupo andando pelo bairro vizinho ao Pinheirinho, em São José dos Campos, chamava muita atenção. Não tinha como passarmos despercebidos, éramos claramente de fora.

Sem contar o fato de que, no Campo dos Alemães, todos estavam fora de suas casas. O bairro é vizinho ao Pinheirinho e suas ruas estavam lotadas. Todos em silêncio, olhares atentos. Muito pesado, muito tenso. Todos com medo. O Pinheirinho estava isolado pelas barreiras da tropa de choque.

Muitos jovens de bicicleta: adolescentes, pré-adolescente e pós-adolescentes. As crianças ficavam enrodilhadas nos pés dos pais. Bastava um sinal de polícia despontando, a algumas esquinas de distância, ou sendo precedida pela luz da sirene, a correria era geral. Não importava quem: todos estavam com muito medo da polícia e de suas bombas e tiros.

Os jovens, os adultos, todos saíam do caminho. Isso porque, como alguns moradores nos disseram, não podia haver nenhuma aglomeração, nenhum grupinho de três, quatro pessoas que, se a polícia visse, de longe já começava a atirar com bala de borracha e usar bombas de efeito moral.

Dobrando à direita em direção ao que seria o alojamento preparado para receber os recém-desabrigados, vi uma mãe andando a esmo com um cesto de bebê num braço, segurando uma criança pela mão do outro. Em vez de um bebê dentro do cesto, um filhotinho de cachorro, todo preto, não mais velho que alguns dias.

Penso em quantos animais foram deixados para trás, como parte da mobília das casas, para serem “demolidos” junto das casas.

Talvez aquela família estivesse a caminho da igreja, onde havia a maior concentração de pessoas que foram expulsas de suas casas naquele domingo. Foi para onde fomos. Lá, conversando com uma liderança do movimento, ouvi que essa ação foi diferente. “Nunca vi nada igual”, disse. Em geral há um verniz democrático, republicano, de cumprimento da lei. Naquele dia, o oficial da justiça federal foi expulso a bala de borracha.

Isso foi para o oficial de justiça, pois, diferente do que foi dito, a polícia usou, sim, bala de chumbo.

Havia algumas centenas de pessoas na rua, em frente à igreja, esperando o padre abri-la. Ninguém sabia dizer por que a polícia não dispersava apenas aquela concentração de gente – com grupos muito menores havia bem mais violência.

Um carro de som
pede água aos vizinhos


Ouço que não há nenhuma certeza de quem morreu, de quem pode ter morrido, mas que com certeza ocorreram falecimentos. Teve gente que tomou tiro de bala de borracha. Teve gente que tomou tiro de bala de chumbo. Alguém me conta que, até pouco antes, o helicóptero da polícia – que, naquela altura, ainda rondava acima de nossas cabeças, com potentes holofotes apontados para nós – era quem lançava parte das bombas.

Eu via pessoas com malas. Via alguns carros carregados. E via algumas pessoas sem nada. Alguém usa o carro de som para pedir aos vizinhos que tragam água, pois os desabrigados não tiveram nem como beber água durante o dia.

Converso com um senhor, que diz que não conseguiu pegar nada de sua casa. Pergunto o que “eles” falaram, se daria para pegar depois seus pertences. Ele afirma que deveria dar, mas que não havia nenhuma segurança de que sua casa estaria inteira ainda. “Eu era o músico da cidade”, explica ele, “era com a minha aparelhagem que o pessoal fazia as assembleias, na igreja evangélica”. Presto atenção ao tempo verbal, “era” o músico da cidade. E como fazer agora, sem aparelhagem?

Mesmo na noite escura, pude ver seus olhos marejarem. Ele levanta o boné, passa a mão na cabeça engolindo o choro. Levanta a mão que tinha uma sacola de plástico e oferece: “Vamos tomar um café. Está com adoçante mas está bom”. Recuso gentilmente. Nada passaria na minha garganta. “E água? Tem água também...”

Na rua do lado, várias pessoas faziam barricadas, queimando o que parecia ser um sofá. Começaram a quebrar as placas das ruas para alimentar o fogo. Pegavam tudo que tinham à mão e que não pertenciam a ninguém para alimentar o fogo. Já tínhamos passado por várias barricadas daquela. A primeira, inclusive, na maior avenida, já estava até apagada com os restos de um carro, inidentificável.

A revolta era tudo que eles tinham. A força dos policiais, a arbitrariedade com que eles trataram aquelas pessoas levou a isso. Um grupo de uns oito meninos, vindo da direção da barricada, passa de bicicleta – sempre as bicicletas – e ouço um deles “bora, lá em casa tem álcool”.

Eu nunca tinha vivenciado nada assim. Parecia guerra mesmo ou como imagino ser uma. Qualquer barulho assusta. Ao andar pela rua dava para sentir a respiração das pessoas e a tensão. A opressão de se estar cercado de um monte de soldados armados até os dentes. Bombas estourando ao fundo se tornaram um barulho comum. Volta e meia acontecia alguma coisa e um monte de gente saía correndo de algum lugar.

Companheiros foram aos hospitais da cidade em busca de informações. Segundo relataram, os médicos e funcionários negavam que tivesse chegado qualquer pessoa do Pinheirinho. Mas conversando com outras pessoas, o vendedor de cachorro quente da porta do hospital, o outro paciente que ainda estava na sala de espera, todos contam, de forma unânime, das pessoas que viram chegando, ensanguentadas, arrebentadas.

Várias pessoas. Crianças. Inclusive uma de três anos, que foi a primeira vítima confirmada da operação – corroborando a história que havia circulado do lado de fora da igreja. Nos hospitais, policiais militares circulavam pelos corredores. Havia uma deliberada e ordenada sonegação de informações.

Depois que as pessoas entraram na igreja, resolvemos ir embora, já que as portas seriam fechadas. Passando pelas ruas cada vez mais desertas, ainda víamos algumas pessoas em silêncio, só olhando tudo que acontecia em volta. Com medo. Em uma praça, uma biblioteca queimava, completamente incendiada.

Nós ainda chamávamos atenção. Mais do que as barricadas em chamas.

Rodrigo Mendes de Almeida, jornalista e editor de livros, especial para o NR. Foto do cachorro no pós-reintegração de Victor Moriyama, também colunista do NR, realizada para o jornal O Vale, São José dos Campos.

O estupro da razão

Volto ao país depois de merecidas férias. Visto à distância, o Brasil é um país como outro qualquer. É como estar em São Paulo, por exemplo, e ler as notícias sobre países europeus, asiáticos ou sobre nossos vizinhos sul-americanos.

As notícias do dia a dia são muitas vezes superficiais, sensacionalistas, procurando encobrir a natureza dos motivos pelos quais elas acontecem ou se desenvolvem.

A diferença, é claro, se dará por conta do conhecimento que temos da nossa própria realidade, os interesses e os fatores objetivos e subjetivos que se entrelaçam na informação produzida por jornais, televisões, revistas, sites e blogues.

A Rede Globo de Televisão, beneficiária e por isso mesmo defensora do golpe de Estado no Brasil em 1964 (ou seria o contrário?) chamou uma vez mais para si os olhares da nação, muitos deles cada vez mais descontentes com o que ali assistem.

Detentora de uma estratégia e de um marketing de comunicação imposto pelo poder econômico que construiu e que a sustenta, a emissora vem atravessando os anos colocando-se acima das leis e da Constituição, uma vez que o seu DNA foi formado no período autoritário mais recente da história política brasileira.

Ao se arrogar em fazer o que quer, a Rede Globo finge não ver que a ditadura já terminou e apresenta-se com aquela prepotência dos que fingem que nada de mais se passa à sua volta. Coloca-se acima da própria Constituição do país. Consultar os artigos. 221 e 223 da Constituição.

Talvez o braço mais forte do pequeno grupo que comanda impunemente a informação no Brasil, a “Venus platinada”, como alguns a chamaram ou ainda a chamam, não tem pelo país qualquer tipo de consideração, a não ser aquela – é claro – em benefício próprio, quando se proclama líder de audiência em vetustos programas, entre eles alguns já mofados e embolorados como “Fantástico”, “Jornal Nacional”, “Faustão”, “Programa da Xuxa” e a maioria de suas telenovelas, cujo conteúdo, aliás, é de dar enjôo em antiácido.

Baseados na antiga falácia de que a televisão produz aquilo que o povo gosta de ver, as emissoras de um modo geral e a Rede Globo em particular, mistura alhos com bugalhos propositadamente, pois sabe que um povo desinformado, confuso, indisciplinado, ignorante de seus direitos constitucionais, iludido por partidos políticos de pouca ou nenhuma expressão ideológica, é um povo paralisado e medroso.

A estratégia de desinformação coloca o cidadão diante da dúvida, da negação da própria política, do desânimo, da apatia, do medo.

Ainda assim, é possível identificar alguns bolsões de resistência a esse plano de manipulação de consciências e de votos, que transforma o país num amálgama de incertezas.

As manifestações de vários setores da sociedade quanto ao possível estupro de uma cidadã brasileira num programa de qualidade cultural zero são sinais de conscientização do entrave que representa para a democracia a existência de uma mídia partidarizada e defensora dos privilégios do poder econômico.

Imprensa livre, sim, mas não usurpadora do poder político, também ele livre, dos cidadãos e contribuintes.

Condenável sob todos os aspectos, até porque toda a armação foi para aumentar a audiência de um programa lamentável, o maior estupro não é o que a TV Globo mostrou, mas é o estupro que se faz da razão, da nossa inteligência e da própria democracia.

Izaías Almada, dramaturgo e escritor, colunista do NR

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

A isca de Felipe

– Eita sensação de merda, puta que o pariu!, resmunga Jurandir no seu carro, um modelo SUV, parado no farol da avenida Brasil com a Henrique Schaumann, em São Paulo.

Ele vê o mesmo que todo paulistano motorizado: jovens em busca de um trocado fazendo malabares com bolinhas e bastões enquanto a cidade corre insana.

– Toma aqui rapaz! Você é esforçado.

O mesmo gesto é repetido ao longo do dia por centenas de motoristas diante do desajeitado Felipe, um negro baixo de 16 anos, rosto bolachudo, e muito magro de cabelo rastafári e tranças coloridas em vermelho e amarelo.

Lipe, como foi apelidado pelos camaradas do entorno, trabalha de segunda a sábado, das 8h às 20h. Levanta cinco da matina, veste tênis, bermuda, camiseta, pega mochila e o material de trabalho – cinco velhas bolas de tênis – e sai vazado. Não há tempo a perder.

Come no caminho do trabalho, nas barracas que ficam próximas a estação. O menu: café com leite no copo de plástico e um saquinho de pão de queijo com dez unidades, total: 3 reais, preço da passagem do ônibus que ele economiza pegando o trem sem pagar ao entrar por uma fresta no muro que margeia a linha da CPTM.

Tem dois irmãos homens, e a mãe, Luzia, é diarista. Todos moram na Zona Leste, em Itaquera. O pai, seu José Pinto, morreu numa briga de boteco, “culpa do álcool”, diz ela.

O lance de Felipe nos malabares é fruto dessa tragédia familiar. A mãe, desesperada com o déficit no orçamento, mandou os filhos buscarem sustento.

– Ah, meus filhos, tem que dar jeito nessa vida, tem que dar!

Ela mesma dobrou sua atividade laboral o que lhe rendeu artrite e fortes dores nas costas, aliviadas com remédios que retira mensalmente no SUS.

Eram garotos ainda quando tiveram de abandonar os estudos e paixões, no caso de Lipe, a escolinha de futebol, onde despontava como volante driblador e habilidoso que sonhava vestir a camisa do Corinthians.

Do ídolo Vampeta tem o autógrafo, guardado dentro da única gaveta que possui, no quarto único que divide com os irmãos.

– A minha história é foda, mas e daí, quem tem a ver com isso?, pensa entre um e outro solavanco do busão.

Lipe sabe que sua vida é marginal. Já escutou na tevê e sempre lembra que ser pobre tem a ver com um tal de “capitalismo” que não distribui a renda, que a educação é boa para uns e nenhuma para outros e outras coisas que ele não sabe explicar bem.

Lipe sabe que não ter estudo o condena ao ostracismo cultural e profissional, por isso, decidiu que o farol, por mais contraditório que possa ser, vai salvar sua vida. E que vai ganhar o máximo que puder para ajudar a mãe e se ajudar. Lipe quer fazer educação física e ser preparador físico do timão. Felipe sonha, ora, como qualquer garoto de sua idade.

Observador, sabe que ninguém gosta de gente pedindo esmola na janela do carro.

– É um saco quando, em todo e qualquer farol, aparece alguém jogando bolinhas ou bastões para o alto na tentativa de te convencer de aquele é um talento que mereça ser remunerado – ouviu Lipe, certa vez.

Felipe sabe disso. Mas não há tempo a perder.

– E a concorrência, meu irmão, é grande – repete para si mesmo.

Muito esperto, ele sabe que assalto, violência e a indiferença são o maior entrave ao seu "negócio" no farol. Mas ele não tem pena de si mesmo. Deixa para os outros.

E a cena se repete, diariamente: sobe a primeira bola velha de tênis, a segunda, a terceira e na quarta... todas vão ao chão. As recolhe, vai de novo: primeira, segunda, terceira, chão. Repete o gesto, calculadamente, e há 30 segundos do verde, sai desanimado para a calçada.

Felipe se faz de derrotado. Motoristas que, normalmente, estão mais preocupados com o tempo que perdem ali, se comovem. E os comovidos o chamam com notas e moedas. Uns continuam não ligando e até dão risada.

Pena e culpa é a “sensação de merda” que sente o motorista Jurandir, aquele do SUV, e que Lipe usa a seu favor. Enquanto a concorrência acerta os malabares Lipe sempre erra, de propósito, e ganha seu dinheiro com isso, bem mais do que os outros, porque, nesse caso, percebeu que o erro comove mais do que o acerto.

Errar é a isca de Felipe. E isso vai sustentar sua casa. Quem sabe, realizar seu sonho e vencer o sistema que o condenou. Educado, ele agradece.

– que deus te dê em dobro.

Thiago Domenici, jornalista

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

sampa

Amanhã será segunda-feira. Vou até Perus, bairro que ficou tristemente célebre por conta de um cemitério clandestino. Irei entrevistar uma agente de saúde, candidata a um prêmio de direitos humanos. Tomara que ela ganhe, pois é uma dessas guerreiras anônimas que se espalham pelo Brasil. Pegarei o metrô da linha Amarela - sem condutor e com portas corta-suicídio. O ponto final é a majestosa Estação da Luz. Lá subirei num trem da linha Rubi. Adoro trens! Máquinas que fazem a gente voltar no tempo sem deixar o presente.

Amanhã será terça. Vou para o Mercado Municipal. Baterei papo com a Marinalva, paraibana que vende queijo coalho, carne de sol, relicários. Ela é de Campina Grande, onde acontece o Maior São João do Mundo. O jeito dela falar me faz lembrar da dona Fernanda, a primeira xará que conheci. Ela tinha uma banca de ovos e um olho de vidro. Minha avó Afonsina, não sei se inventando ou honrando a verdade, dizia que o olho da feirante tinha sido furado por um garfo.

Amanhã será quarta. Vou para as bandas do Bom Retiro com a minha mãe. Sacolejar a sacola pela Zé Paulino, pela Três Rios, pela Barra do Tibaji. Afinando os ouvidos para velhos judeus e árabes naquela conversa de comercializar tecidos. Quando eu era criança desejei ser caixeira-viajante. Sonhava em arranjar uma mala de couro e fugir vendendo apetrechos de costura e panos coloridos de cidade em cidade.

Amanhã será quinta. Momento sabático da semana. O que vou fazer não conto. Para ninguém.

Amanhã será sexta. Dia de acender velas para o São Google e rezar pela Wikipédia, além de entoar salvas à banda larga. Vou observar alguns sites e ver a quantas anda o cordel eletrônico das redes sociais. Verificar quem ainda me ama e quem já me esqueceu. Como cada vez tenho menos dinheiro e mais anos, estou tentando me tornar uma webredatora, uma profissional do futuro. Talvez ainda dê tempo.

Amanhã será sábado. Vou assistir a uma palestra no Museu da Resistência, no prédio do antigo e famigerado Dops. O assunto é a abertura dos arquivos da ditadura e o direito à memória política. Quando eu tinha oito anos, rolou o golpe militar de 64. Meu pai, comunista e sindicalista, foi preso. Também foi demitido do Banco do Brasil, sem direito a nada. A família que era classe média ficou pobre. Ou quase.

Hoje é domingo. Dia da libertação dos trabalhadores. Ainda cedinho vou para a praia. Não preciso de maiô, toalha, havaianas, filtro solar. A praia que mais gosto de frequentar é a Padaria Letícia na rua Natingui. Vou pedir o de sempre. Um expresso. Uma canoinha francesa na chapa com requeijão. Um ovo frito com a gema bem molinha. É fácil ser feliz.

fernanda pompeu, escritora e redatora freelancer, colunista do Nota de Rodapé, escreve às quintas. Ilustração de Carvall, especial para o texto.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

SP precisa ser "Bossa"

São Paulo, te amo
Te amo, São Paulo
Na tarde tão fria
Busquei teu calor,
teu amor em São Paulo
Tom Jobim


Hoje, além de aniversário de São Paulo, 458 anos, é Dia Nacional da Bossa Nova (e aniversário de Tom Jobim), dos movimentos culturais mais importantes da história do país.

Nova York, gravação de "Stan Getz e João Gilberto".
Da esquerda para a direita: Tião Neto, Tom Jobim,
Stan Getz, João Gilberto e Milton Banana
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Além disso, como curiosidade, a palavra bossa era um termo da gíria carioca que, no fim dos anos 50, significava 'jeito', 'maneira', 'modo'. Era o diferente, o original. E a expressão 'Bossa Nova' surgiu em oposição a tudo o que um grupo de jovens achava superado, velho, arcaico, antigo.

O Dia Nacional é recente. Segundo a Agência Senado "O Congresso aprovou em março de 2009 projeto (que resultou na Lei 11.926, de 17 de abril de 2009) instituindo o Dia Nacional da Bossa Nova, a ser celebrado no dia 25 de janeiro."

Quem ainda não viu, vale a pena acessar o recente site criado em homenagem a Nara Leão, cantora importantíssima desse período, que completaria 70 anos neste mês e que tem toda sua discografia disponível para se ouvir online.

PANO RÁPIDO
São Paulo - que Tom Jobim declarou seu amor - precisa comemorar seu povo. E seu povo precisa melhorar São Paulo. A começar pela escolha de seus representantes.

O discurso é velho, eu sei, mas nos lembremos hoje, como exemplo, que ainda está em curso a aberração municipal em curso na cracolância e que tem deixado muitas cicatrizes em usuários desamparados.

Segundo o Datafolha de hoje, 90% aprovam internação involuntária de usuários. Ou seja, "devem ser internados mesmo que não queiram".

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

De dentro da barbárie

O Coletivo de Comunicadores Populares produziu o vídeo a seguir, sobre a reintegração do Pinheirinho. É, sem dúvida, um material que precisa ser visto. "Pinheirinho: a verdade não mora ao lado".

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Método de governo (você sabe qual)


Caco Bressane, ilustrador e arquiteto, colaborador do NR

Pouco aqui, pouco aí

Meu caro amigo eu quis até telefonar
Mas a tarifa não tem graça
Eu ando aflito pra fazer você ficar
A par de tudo que se passa
(Chico Buarque de Hollanda)

Cartas a los Jonquières tornou pública uma centena de correspondências que Julio Cortázar enviou de Paris, durante mais de três décadas (entre 51 e 83), para um amigo de Buenos Aires. O livro (publicado em 2009) é delicioso, porque além do conteúdo literário interessantíssimo – comentários sobre contos e novelas que estava escrevendo -, mostra a pouco conhecida vida privada de Cortázar. Chama atenção a dificuldade para manter-se a par do que acontecia na Argentina e obter notícias de
familiares e amigos.

Naquela época, uma chamada internacional telefônica custava caríssimo e exigia um complexo sistema. As cartas normalmente iam por barco – ainda que se podia, mediante uma boa quantia de francos, enviá-las por avião. Normalmente eram semanas de espera por notícias.

A solução para os latino-americanos era folhear o Le Monde nos cafés de Paris em busca de alguma informação sobre suas terras. Foi dessa forma que García Márquez soube que o jornal para o qual trabalhava (El Espectador) havia sido fechado pela ditadura de Rojas Pinilla.

O Nobel colombiano conta que certa manhã foi despertado por um grito: “Se caió el hombre”. América Latina era um continente dominado por ditadores e todos os latinos da pensão foram para a rua pensando que o ditador deposto era o do seu país. O grito era do poeta cubano Nicolas Guillén e o “homem” era Fulgencio Batista.

“Partir é morrer um pouco”, costumavam repetir residentes na Europa naquela época. Deixar o país significava realmente distanciar-se, ser obrigado a ignorar a sorte de seres queridos e da nação.

Hoje em dia, partir é morrer bem menos.

Daqui da Espanha, sei, em tempo real, de tudo o que acontece no Brasil. Converso com família e amigos na hora que quero e sem custo. Sinto como se estivesse com um pé aqui e outro aí.

O lado ruim disso é a sensação de que acabo por receber uma quantidade imensa de informações que não têm qualquer serventia, a não ser ocupar meu cérebro e impedir que eu retenha dados realmente relevantes (tenho para mim que somos como um computador, que tem um limite de dados que pode armazenar).

Manter-se conectado com o Brasil (visitar portais de notícias, olhar Twitter e Facebook , checar e-mails) ao final significa (também) manter-se ao dia sobre fofocas de famosos, o surgimento de celebridades instantâneas e outras amenidades que nem sequer me serviriam para um papo de elevador, tendo em vista que no meu prédio eles não existem e que meus vizinhos não falam português.

O pior de tudo é que vivendo aqui, acabo também por receber esse tipo de informação inútil do que acontece por estes lados. Ou seja, armazeno em dobro o que não deveria guardar.

Queixas à parte, é de grande valia poder manter essa proximidade com a terra brasilis, ainda que vez ou outra bate aquela inveja do isolamento forçado de Córtazar e Gabo em Paris e a possibilidade de ocupar a cabeça de maneira mais saudável.

Ricardo Viel, jornalista, colunista do Purgatório e do NR, escreve às segundas, direto de Salamanca, Espanha.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Qual classe média, presidenta?

 Geraldo e Dilma em evento na semana passada em SP
A afirmação feita por Dilma Rousseff na última semana em São Paulo é sintetizadora da visão que a presidenta vem expondo ao longo de pouco mais de um ano de mandato.

“Queremos um país com pessoas ricas e prósperas, mas principalmente um país de classe média. E ninguém é classe média se não tiver sua casa. Ninguém”, afirmou ao lado do amigo tucano Geraldo Alckmin durante assinatura de convênio para o programa Minha Casa, Minha Vida 2.

A frase mostra que a presidenta, a exemplo dos caciques do PSDB, confunde cidadania com consumo, conceitos nada parecidos. Não há problema algum na intenção de compra da casa própria, e é algo economicamente estimulado em uma cidade como São Paulo, em que o valor do aluguel pode superar o valor da parcela do financiamento imobiliário.

Mas daí a achar que se trata de um pré-requisito para ingressar na classe média guarda-se uma distância. Ser classe média, no caso brasileiro, deveria significar a garantia financeira de cumprimento das funções básicas (alimentação, vestuário) e o acesso aos serviços públicos fundamentais (saúde, educação, transporte). Dilma, porém, parece nutrir uma visão não muito diferente da patética classe média resumida na música feita em 2006 por Max Gonzaga.
“Sou classe média
Compro roupa e gasolina no cartão
Odeio coletivos
E vou de carro que comprei a prestação”
Em vez de valorizar propostas coletivas de construção da cidadania, Dilma parece preferir iniciativas galgadas na conquista individual, estimulando ao crescimento da massa trancafiada em seus automóveis nas grandes cidades e em condomínios cercados em todas as demais.

Obviamente, não se trata de desprezar realizações do primeiro ano do novo mandato, ainda que poucas e, em geral, de continuidade e melhoria da gestão de Luiz Inácio Lula da Silva.

Nesta linha de pensamento, e de novo próxima ao ideário tucano, Dilma prioriza as liberdades individuais às liberdades coletivas, o que explica o veto ao kit contra homofobia produzido pelo Ministério da Educação.

"Não aceito propaganda de opções sexuais. Não podemos intervir na vida privada das pessoas" foi a infeliz afirmação feita à ocasião, submetendo o dever do Estado de combater o preconceito ao “direito” individual de ser homofóbico.

Com um balanço assim, difícil imaginar que Dilma queira avançar na regulação da comunicação. Até hoje evitou posição clara sobre o assunto. Nas poucas vezes em que comentou indiretamente a questão, no entanto, deu a entender que só gosta do controle remoto, abrindo mão do papel do Estado de regular um setor que descumpre quatro artigos da Constituição. Haja equívoco.

João Peres, jornalista, mantém a coluna mensal Extremo Ocidente no NR

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

faroletes

 

Vivi quarenta e quatro anos no passado remoto. O que melhor me define - para além do que escrevi, amei, transei, sofri, gargalhei, falei, escutei, engordei - é ser do século 20. O século que inventou o automóvel, o ônibus espacial, o viagra, a fralda descartável, a penicilina, a televisão, a pílula anticoncepcional, o computador, a internet.

O século do dadaísmo, futurismo, modernismo, surrealismo, feminismo, ecoturismo. E também do nazi-fascismo, macartismo, da bomba de Hiroshima, da guerra fria, da Cia, da Kgb, do Dops, do Doi-Codi. O século do prêt-à-porter, dos supermercados, dos imensos campos de refugiados. Dos cem anos em transe.

Quando leio ou ouço slogans que ligam o século 21 a novas maneiras de trabalhar, se relacionar, ver o mundo, fazer política, escrever, sinto a contundente sensação de ser um disco de vinil numa lista do iTunes, ou uma tartaruga num autódromo.

Se houvesse um cemitério para séculos, dentro da cova do século 20 sepultaríamos: a máquina de escrever, o papel carbono, a letra set, o mimeógrafo, o papel almaço, a gilete, o moedor de carne doméstico, o coador de pano, as cartas manuscritas, as vidas secretas.

Uma pessoa ou um século vão envelhecendo não tanto por se sentirem antigos, mas porque os outros os veem velhos. Tornou-se um desapreço dizer que uma coisa, um processo, um produto são do século 20. E é uma manifestação de júbilo e gozo nomear coisas, processos, produtos com a grife do 21.

Como nossa mente é uma incrível fábrica de clichês e eles se reproduzem mais rápido do que os mosquitos da dengue, o século 21 já ganhou várias alcunhas: flexível, hiperconectado, veloz, descartável, inseguro, tecnológico, belicoso, informadíssimo, 2.0.

Numa dança das cadeiras, a imaginação pública vai incluindo e excluindo. Perdem poder a imprensa, a escola, a literatura, o sindicado, o copyright. Ganham poderes os blogs, as redes sociais, as autorias coletivas, o comércio eletrônico, o audiotextovisual, as indignações, as ocupações-relâmpago.

Sempre foi assim. Os ventos jovens adernando velhos navios, aposentado timoneiros, lançando ao mar ilusões fresquinhas. Sempre essa ardentia por faróis de novos mundos. Fazer diferente aquilo que fazemos igual há tanto tempo.

Mas alto lá!, berram os mais experientes. A novidade é um desejo tão antigo quanto a humanidade. O novo nunca vive no presente. Ele mora no futuro, o tempo que jamais alcançamos. E falando no pé do seu ouvido: os legítimos cidadãos do século 21 têm no máximo doze anos.

fernanda pompeu, escritora e redatora freelancer, colunista do Nota de Rodapé, escreve às quintas. Ilustração de Carvall, especial para o texto.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Bratislava

Imagine você ser mandado pra uma “capacitação” (êta palavra feia!) em Bratislava. Onde? Eslováquia, um daqueles lugares que, apesar de ficarem na Europa, estão muito fora do circuito Elizabeth Arden.

Pois aconteceu comigo, e lá fui eu. Fim de novembro, quando o lado de cima do mundo já caminha rapidamente para temperaturas que costumam congelar o corpo e a alma dos seres tropicais. A luz do dia dava o ar da graça lá pelas oito da manhã, e às quatro e meia da tarde já havia desaparecido.

Confinados num hotelão dos tempos soviéticos, com o lobby mais medonho que já vi na vida, nossas aulas aconteciam numa discoteca desativada, com chão e paredes revestidos de carpete preto e decoração de vidros e espelhos. Era de dar pesadelos.

Digo confinados porque a “capacitação” era intensiva, e na verdade não havia muito o que fazer do lado de fora. Como não consigo ficar confinada em lugar algum, lá pelo segundo ou terceiro dia inventei de ir com uma colega a uma loja de roupas, na hora do almoço.

Eu queria comprar uma calça de inverno, e achava que era o lugar apropriado. Mas rapidamente nos demos conta de que lá, como aqui, ninguém fala inglês, e nem se arrisca na nossa proverbial enrolation. Voltamos pro hotel de mãos abanando.

Decidimos, então, ir a um shopping num fim de tarde – já escuro, claro. Instruídas pelo pessoal do hotel, tomamos um bonde. Estávamos em três e, uma vez lá dentro, não conseguimos descobrir como se pagava a passagem. Depois de confabular alguns minutos, decidimos simplesmente descer na nossa parada, sem pagar, mortas de vergonha.

Faltavam uns quatrocentos metros até o shopping. Caminhávamos as três juntas na calçada quando, numa determinada esquina, uma senhora bem velhinha veio em nossa direção, agarrou-me pelo braço e foi andando comigo. Matraqueava sem parar naquela língua impossível, e nós, um pouco atônitas, seguimos caminho, com ela agarrada no meu braço.

Continuamos conversando entre nós, enquanto ela não parava de falar lá na língua dela. Numa outra esquina, uns três quarteirões à frente, ela parou, se soltou de mim, tomou a rua lateral e foi-se embora. Sempre falando, num tom como se estivesse de fato conversando conosco.

E estava, não tenho dúvida. Hoje sei que ela nos contava da estranheza de viver num país que foi dividido em dois, e de precisar de passaporte pra visitar uma parte da família. De como Viena, distante meia hora de carro, ficava em outro mundo nos tempos da cortina de ferro. E que mundo tão maluco era esse que tinha chegado de repente, em que até umas latino-americanas desavisadas apareciam pra fazer cursos por lá.

Júnia Puglia, cronista, estreia hoje a coluna quinzenal De um tudo no Nota de Rodapé.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Não se pode ignorar

Não importa se você odeia a Globo, não suporta BBB. Nesse final de semana aconteceu uma coisa horrível e que acontece com frequência. Mas dessa vez foi transmitido ao vivo pela maior emissora de TV do Brasil. E é também por isso que não podemos deixar de falar do caso.

Talvez você não esteja entendendo. Explico. Na madrugada de sábado para domingo, houve a primeira festa do BBB 2012 e, como sempre, muita bebida. Durante a festa, um dos participantes tentou mais de uma vez beijar uma das bonitonas da casa.

Ela não quis, rejeitou o cara. Ficou bêbada e foi deitar – pelos relatos que li, já era de manhã e ela foi deitar sozinha. O tal cara que já tinha tomado um fora da mulher foi e deitou com ela. E abusou dela.

Ela dormia, visivelmente inconsciente, sem se mexer, e o cara fazia movimentos sexuais – não dá pra saber se era punheta, penetração, se estava bolinando, mas era visível que se aproveitava do corpo inerte da mulher.

O público que acompanhava ao vivo pelo Pay-per-view começou a comentar nas redes sociais e mostrar grande indignação. O vídeo vazou na internet. São aproximadamente sete minutos que me deixaram muito chocada.

Não dá para ter dúvidas de que o cara realmente se aproveitou dela. Na verdade, o nome disso é estupro (que não acontece só em beco escuro com um maluco desconhecido te agarrando a força, tá?). E o crime foi transmitido ao vivo. A produção do programa não fez nada. Para mais detalhes da história, recomendo muito esse texto (e outros textos desse mesmo blog que vem em seguida).

Depois da mobilização nas redes sociais e a hashtag #DanielExpulso chegar em primeiro lugar dos Trending Topics do Twitter, o diretor do BBB, Boninho, chamou a mulher que foi violentada ao confessionário para falar sobre o episódio.

A conversa foi privada, o público não tem como saber exatamente o que foi dito. Boninho disse que ela afirmou ter sido consensual. O que ele não disse é que ela não lembra o que aconteceu. Isso ela fala em outros momentos, em diferentes conversas. Inclusive pro próprio agressor, que mentiu pra ela dizendo que foram dois beijinhos e que “passou a mão”. Não foi só isso.

Alguns textos sobre o assunto que recomendo:

E a situação piorou. Fiz questão de assistir BBB no domingo para ver se e como abordariam essa história absurda. Mostraram ele xavecando ela na festa. Mostraram ela de saco cheio dar um selinho nele na festa. Mostraram-na dando um fora bem dado nele na festa. E daqueles sete minutos de vídeo, mostraram apenas alguns pouquíssimos segundos que parece que ela se mexe um pouco.

Fizeram parecer que era um “amasso”. Mostraram como se fosse uma “troca de carícias”. Mas não é uma troca se só uma pessoa faz e a outra nem sabe, né? Ou seja, não é consensual. E a cereja do bolo: Pedro Bial pergunta ao vivo para a mulher se foi só uma ficada ou se tem algo mais e ainda solta um “o amor é lindo”. (realmente difícil saber o que o Bial entende por amor). Ela, visivelmente muito sem graça, responde “foi só um lance”. Um lance. Afinal, ela não sabe o que aconteceu.

O problema é maior

E por que falo tanto do BBB? Porque esse programa que tem mil defeitos e que pessoas inteligentes “de verdade” não “podem” assistir é um reflexo do que acontece fora daquela casa e longe das câmeras. Talvez você nem saiba, mas a chance de alguma conhecida sua ter passado por uma situação semelhante é grande.

Essa história me deixou mal. Muito mal mesmo. Já vi essa história acontecer mais de uma vez. E não foi pela televisão. Cheguei a tentar escrever sobre isso em outras situações, mas não consegui. Muita gente diz que é “exagero”.

Como pode ser exagero alguém se aproveitar do seu corpo enquanto você não tem condições de reagir? E se fosse com você? E se fosse sua mãe/filha/filho? Já imaginou?

Tenho uma amiga que passou por isso. E não foi com um desconhecido na rua. Foi com um conhecido, até então considerado um amigo. E foi na casa de uma amiga, um ambiente que acreditamos ser seguro. Foi situação que você imagina que não ofereça grandes riscos. Pois é.

Ela demorou alguns dias pra lembrar e entender o que aconteceu. Mas entendeu, ela foi estuprada. E os (as) amigos (as) o que acharam? O que sempre acham, ela estava bêbada e se arrependeu do que fez. Ela foi vítima, não culpada. Exatamente como essa mulher do BBB. Exatamente como outras inúmeras mulheres.

A Globo está sendo omissa e extremamente irresponsável ao não dar o devido valor ao que aconteceu. No mínimo, deveria levar o caso mais a sério permitir que a participante assistisse ao vídeo, acompanhada de advogado(a) e/ou terapeuta e/ou algum familiar, para ver como agir posteriormente.

Ao tentar vender o caso como uma “história de amor” para o público do programa, está estimulando, mais uma vez, o machismo e afirmando que vítima pode ter culpa de alguma coisa.

Uma vítima NUNCA será a culpada por ter sofrido violência. Ser omissa numa situação dessas é tomar partido, o partido que acha que violência conta a mulher é um problema “secundário”.

Você pode querer ignorar o BBB e a Globo, mas não ignore a violência que está logo embaixo do seu nariz.

Natalia Mendes, jornalista, do TodasNos, especial para o NR

O mosaico que somos

“Somos lo que hemos leído.”

Uma rápida busca no “infalível” Google nós aponta uma dezena de supostos autores dessa frase – que tem tradução falha em português, já que “somos o que lemos” pode dar uma falsa impressão de presente, quando de fato falamos de um passado que tem continuidade.

Deixando de lado o problema da tradução e seja quem for o pai da criatura, a verdade é que essa é uma daquelas ideias universais que pode muito bem ser considerada de autoria coletiva, de todos aqueles que acreditam que os livros nos formam.

Sempre gostei dessa afirmação, mas com o passar do tempo comecei a achar necessário um complemento: somos a soma dos livros e também dos lugares, músicas, filmes e, principalmente, das pessoas que cruzaram nosso caminho durante a vida, defendia eu.

É um mosaico no qual vamos colando ladrilhos e que vai ganhando forma até fazer algum sentido. A figura resultado desse acúmulo de experiências é, no final das contas, o que somos nós.

Mas nossa vida – e a figura que criamos ao vivê-la – não é perfeita, não é feita só de boas experiências. Nela há vazios. Os ladrilhos que nunca foram colocados ou que caíram prematuramente de nossa obra também fazem parte dela.

O jornalista e escritor Juan Cruz diz em seu último livro (Egos Revueltos) que somos o que lemos e também o que perdemos durante a vida (“somos lo que hemos leído y lo que hemos perdido”). Ideia parecida a do cineasta Alejandro Iñarritu, que dedica um de seus filmes (Amores Perros) ao filho falecido: “A Luciano, porque también somos lo que hemos perdido”.

Cruz e Iñarritu me abriram os olhos para a necessidade de incluir as perdas no conjunto que nos forma.

A importância (ou peso) desses dissabores na imagem que somos depende de dois fatores. O primeiro dele está ligado ao acaso (os que acreditam em uma força suprema podem chama-lo de outra maneira).

Depende da sorte que tivemos em, no decorrer da vida, acumular poucas perdas. O segundo fator está relacionado ao modo como cada um de nós administramos essas ausências.

Há quem saiba lidar melhor com isso, tirar algum ensinamento e aceitar que esse vazio faz parte; e há os que se amarguram e passam a viver um luto eterno, que pode ser mascarado com a não aceitação da ausência.

É essa equação entre as perdas e os acúmulos – e a maneira como administramos ambos – que vai ditar o tamanho e a beleza da figura que construiremos durante a vida.

Esse mosaico será formado e reformado constantemente, até o dia em que nós, que também somos ladrilhos na obra de outros, somos obrigados a abandonar essa construção.

Quando chegar a hora, seremos ausência na imagem daquelas pessoas que cruzaram nosso caminho, de cuja vida marcamos. Passaremos de ladrilho a vazio. E deixaremos de ser acúmulo para transformar-nos em perda.

Ricardo Viel, jornalista, atualmente mora em Salamanca, Espanha. Escreve às segundas no Purgatório e no NR.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Um rolê em Amsterdã

Para uns, Amsterdã é a cidade da maconha. Para muitos outros também, e de fato poder fumar ou comprar sem problemas é um dos atrativos utilizados para atrair turistas. Todavia, é também singular por n motivos que fazem por merecer uma visita.

Muito arborizada e entrecortada por canais, é gostoso passear por suas ruas – se o clima ajudar, claro. A parte central, mais próxima do mar, tem muitas lojas, a maioria dos coffe shops, o red light district. Um pouco distante vê-se apenas residências, casas muito boas, como nos entornos do Vondelpark, o maior da cidade, ótimo para um piquenique ou apreciar as holandesas no banho de sol.

No meio do parque há uma grade circular utilizada como achados e perdidos do local. Quando alguém encontra um objeto, o pendura e ali ele fica até o dono pegar. Fiquei intrigado ao ver um tênis (só um pé)...

Achei o clima local um misto de liberdade com um quê de pesado – Amsterdã respira sexo e drogas. Em qualquer birosca encontra-se biscoitos, sementes, pasta dental, camisinha e tudo que puder ser feito de maconha. Numa delas, na qual minha amiga queria comprar um guarda-chuva, o vendedor nos ofereceu um doce ótimo e totalmente seguro. Achei prudente não confiar nele.

O famoso red light district não passa de algumas vielas nas quais prostitutas ficam em vitrines a espera de seus clientes. Há todas as idades e etnias, e acho que 80% dos que lá vão são atraídos pela curiosidade, não pelos serviços.

Ao contrário do Brasil, lá acontece tudo acontece à luz do dia e de forma legalizada. No entanto, é impactante assistir a uma mulher exposta vendendo a si mesma.

Os coffe shops são um capítulo a parte. Pensava que encontraria vários locais bacanas, esperando clientes para relaxar. Ledo engano, a maioria deles é apertado, meio capenga e com uns três chapados encostados num canto. Ficaria decepcionado, mas a sorridente garçonete do restaurante do Amsterdan Museum deu-me uma boa sugestão de onde ir, indicando o Dampkring – isto após trazer minha almôndega tradicional holandesa com mostarda especial. Descobri ser uma almôndega comum num pão de trigo e um sache de mostarda, mas valeu.

Voltando ao coffe shop, o Dampkring serviu de locação para o remake de “11 homens e um segredo”. Há fotos de George Clooney e Brad Pitt na parede, além de cenas do filme. O atendente conta que, durante as gravações, Clooney apenas visitou o lugar, enquanto Pitt provou algumas de suas especialidades.

O cardápio tem uma dúzia de opções, todas com descrições de o que provocam e preços entre 8 e 20 ou 25 euros o grama. E também os famigerados space-cakes, bolinhos de maconha.

Outra experiência que só Amsterdã pode proporcionar diz respeito ao hostel. Quando chegamos não havia ninguém, após uns 20 minutos aparece um cara jovem, de óculos way-farer com uns desenhos que lembravam o metrô londrino e cara de chapado. Pergunta, com uma voz lenta “are you the brazilians, Yes?”.

Figura, nem havia como ficar brabo com ele, nem mesmo após ser acordado às três da manhã por um casal que teoricamente ocuparia o quarto aonde estou. O gerente obviamente sumiu, e ninguém sabe o que acontece. Uma ligeira mudança e três mochilas depois estou num quarto novo – apenas pela sorte que minhas amigas não foram a nenhuma balada, senão provavelmente eu teria dormido com eles.


A capital holandesa é relativamente pequena, fácil de andar. Bicicletas são vistas por todo canto, é o principal meio de transporte – embora os bondes sejam também bastante úteis. Tanto neles quanto nos metrôs ou trens não há catraca, porém ser pego sem bilhete implica em pagar 50 euros no ato. O problema é que, até eu descobrir isto, dei umas voltas na boa vontade do condutor.

Ao deixar a cidade o motorista do ônibus “lembra” aos passageiros que na Inglaterra portar quaisquer substâncias como marijuana, cocaína, êxtase é terminantemente proibido, que as autoridades aduaneiras são severas, têm cães farejadores; e encerra “aconselhando” os passageiros que porventura esqueceram alguma coisa no bolso a irem no banheiro despejar o conteúdo. Aos esquecidos, nada mais apropriado.

Pedro Mox, fotógrafo, especial para o NR

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

a dona do baile

As palavras se parecem com as pessoas. Elas têm enredos, humores, vontades, segredos. Como nós, elas são sujeitos de desejos. Querem ser livres, autônomas, articuladas, valorizadas. Elas lutam pela oportunidade de uma frase. Até sonham em aparecer mais de uma vez em um parágrafo. E, é claro, mesmo que não o declarem, adorariam ser a palavra final.

As palavras, como as pessoas, não escapam de sua época. Elas envelhecem, descem do pódio, são esquecidas. Como acontece com os profissionais, se aposentam ou são aposentadas. E o mais duro: são substituídas. Daí rodoviária vira terminal de ônibus, aviador vira piloto, aluna vira educanda, reclame vira propaganda, mesa de bar vira facebook.

As palavras, depois de um tempo de ostracismo ou exílio, voltam. São reabilitadas ou anistiadas. Seja nos nomes de bebês: Joaquim, Teresa, José, Adolfo, Antônia. Seja no linguajar da garotada: bárbaro, bizarro, bacana. Também há as que nunca saem de moda: amor, morte, festa, poder, nascimento, egoísmo, solidariedade.

As palavras, muitas delas, vêm de terras estrangeiras. Desembarcam com valises cheias de novidades. Algumas não se aclimatam e retornam para o lugar de origem. Outras se dão tão bem que viram verbos: empoderar, deletar, customizar, frilar, surfar, brifar, glamourizar, engajar, flanar, flertar, twittear, internetar.

As palavras sofrem sanções penais. São mandadas para presídios, alguns de segurança máxima. Basta conferir o index prohibitorum dos manuais de redação. Entre as interditadas, lá estão: esposo, esquife, passamento, sepulcro, toalete, lepra, tarado, do lar, vulgo, entanto, entrementes, outrossim.

As palavras quando se juntam formando expressões ficam altamente vulneráveis. Quanto mais usadas, mais condenadas. Logo são carimbadas como chavões: pôr a mão na massa, abrir com chave de ouro, luz no fim do túnel, no fundo do poço, na aurora da vida, no apagar das luzes, nascer em berço de ouro, página virada do meu folhetim.

As palavras faladas têm voz própria. Para existirem, elas não dependem dos gramáticos, filólogos, corretores da fuvest, jornalistas, escritores. Estão por aí, na boca do pipoqueiro, da costureira, do pedreiro, do gari. Estão nas canções, nos gritos dos feirantes, nos protestos dos indignados, nas gírias de amor e de ódio.

As palavras escritas têm assinatura própria. Estão certas ou erradas? São clichês ou inovações? Fáceis ou raras? Agradáveis ou inconvenientes? Poéticas ou burocráticas? Do gueto ou de todos? Isso depende do leitor. A emoção que ele sente é que dará a justa resposta. O leitor é o eleitor da língua.

As palavras se parecem com as pessoas. Não são fugazes nem eternas. Cada uma comunica suas histórias, seus sentidos, seus caminhos. Uma não é melhor do que a outra. São únicas. As palavras são bailarinas esperando que a gente toque a música para elas dançarem.

fernanda pompeu, escritora e redatora freelancer, colunista do Nota de Rodapé, escreve às quintas. Ilustração de Carvall, especial para o texto.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Quem se lixa pro lixo na praia?

Um mal-estar me invade, estou preocupado. Acabo de desligar o telefonema com um amigo querido - aproveitei para me despedir.

Adeus também, caro leitor do NR.

Ainda não tenho o resultado dos exames mas, confirmada a hipótese de minha saúde estar seriamente comprometida, temo não durar mais um mês, até minha próxima colaboração.

É que, como ando procurando atender os apelos de meu corpo, de meu espírito, por uma vida mais equilibrada, mais cheia de paz e energia, meti-me hoje mais cedo a nadar na praia do Porto da Barra - escrevo-lhes desde Salvador.

Vinha já para as últimas braçadas e, como me faltasse o traquejo de nadar no mar, entre uma e outra respirada (estilo peito) acabou-me invadindo goela abaixo uma generosa golada de água salgada.

Nada preocupante se eu não tivesse descoberto horas depois que, a poucos metros dali, a praia do Farol amanhecera inundada por uma mancha imensa de lixo. Uma água preta e fedida sobre a qual boiavam cocos e garrafas e fraldas sujas e sacos plásticos. Sei lá, mas daqui pr’ali, como se costuma dizer, é um pulo.

Pois bem que senti um gostinho de esgoto! E tossi, tossi um bocado - pelo menos botei um tanto de coisa ruim pra fora.

"Cocos, latas de cerveja e copos descartáveis, fraldas
e camisinhas tomavam sol" (Correio/Marina Silva)
Não é esgoto, é só água da chuva que lava a rua, diz nossa empresa de saneamento. Que fosse esgoto até, se fosse essa a única queixa de quem vive por essas plagas.

O que entristece é que a água nojenta empoçada da chuva na praia é só o último dos malfeitos de uma enxurrada de problemas que a cidade vem enfrentando nos últimos anos. Uma crise de zeladoria municipal como há tempos não se via.

Ruas sujas, bueiros entupidos que provocam inundações à primeira gota de chuva, aparelhos coletivos depredados, espaços públicos sendo privatizados na surdina pela própria prefeitura e vereadores, centro histórico sendo tomado pelo crack e fedendo a mijo.

A sensação é de caos, de que as coisas não funcionam, de que qualquer um pode fazer o que bem quer porque ninguém irá se responsabilizar por nada.

Aí, na capa do jornal, estampam assim: “Turistas criticam o estado de abandono de Salvador”. Que se critique, ótimo. Entretanto, de contrabando nessa frase expressa-se a ideia de que Salvador deve estar bem cuidada porque é época de receber os turistas. Feito casa desarrumada, em que se entocam os trambolhos dentro das gavetas porque as visita vai chegar.

Onde o espírito público - tanto de quem joga o lixo na rua quanto de quem deságua o lixo na praia?

Onde o exemplo dos entes públicos aos cidadãos, tão carentes da consciência de que o que é público precisa ser cuidado porque é de todos, e não de ninguém?

Onde o nome do prefeito na matéria do jornal, para ver se ele - se alguém, diabos! - se coça? Porque por enquanto, do jeito que tá, só mesmo quem pega micose na água da praia.

Difícil é por fim entender como, engolindo isso tudo, a Bahia ainda resiste - eis o mistério. Então, adeus nada, caro leitor: acaba que eu sobrevivo.

Ricardo Sangiovanni, jornalista, coordena o blog O Purgatório e mantém no NR a coluna Mistério do Planeta, com um texto mensal toda primeira quarta-feira do mês corrente. 

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Um senhor rico

O cenário é uma das tantas pracinhas com cadeiras e mesas de Córdoba, Sul da Espanha. Havíamos acabado de almoçar e tomávamos um café.

“Se eu tivesse dinheiro…”, disse meu amigo, mas não completou a frase. Foi interrompido por um senhor bem vestido e com um sorriso amigável no rosto que acabava de sair do restaurante.

“É o que todos dizemos, não é verdade?”.

Em seguida pediu perdão pela intromissão. “Desculpa me meter, mas não resisti. Passamos a vida fazendo essa afirmação, pensando no que faríamos se fossemos ricos, mas a verdade é que aqui se vive muito bem.”

Devia ter quase setenta anos e esbanjava vitalidade. Contou que viajava com a mulher e mais dois casais de amigos. Eram de Barcelona e há anos passavam Réveillon juntos, em algum lugar da Europa. “No ano passado fomos pra Itália, mas fazia muito frio. Desta vez escolhemos o Sul, aqui da para aproveitar mais, tem pelo menos esse solzinho”, explicou.

“Daqui a pouco minha mulher sai do restaurante e vai reclamar que eu já estou conversando com desconhecidos”, sorriu o senhor; e voltou ao assunto de ficar rico.

“Não ganhamos a loteria de Natal, mas ainda há a dos Reis Magos, quem sabe… Fazemos assim, eu fico com o primeiro prêmio e vocês com o segundo, pode ser?”, brincou de novo.

Então a senhora e os amigos apareceram do outro lado da rua. Ela o olhou com cara de ternura, antes de dizer o que todos esperávamos: “Já está ai puxando papo, né. Vamos!”.

Ele se despediu, nos desejou um bom ano e caminhou até a mulher para toma-la pelo braço.

Foi embora e nos deixou com uma inveja boa. Tomara a vida nos trate bem, nos permita chegar à velhice com saúde, com uma mulher agradável, elegante e que nos entenda, um par de amigos que nos faça companhia e um pouco de dinheiro no bolso para viajar de vez em quando.

E que os milhões da loteria nunca cheguem para não estragar o que não precisa ser melhorado.

Ricardo Viel, jornalista, colunista do NR e do Purgatório, escreve às segundas.

As mais lidas de 2011

Na coleção dos 10 textos mais lidos do NR em 2011 não inclui as “promoções” e acessos ao “quem somos”. Há de se levar em conta que o uso de “palavras-chave” no título dos textos faz com que o google pesque alguns e dê mais acesso pelos mecanismos de busca - os chamados algorítimos - caso do campeão de audiência: “Mapa Curioso do PIB dos EUA”.

A audiência do NR em 2011 foi de 92 mil visitas sendo 65 mil visitantes únicos – média de permanência de 4 minutos nas páginas. Tirando o Brasil; Portugal, EUA, Espanha e México foram os países que mais nos acessaram.

Em linhas gerais, muitos outros textos também mereciam mais leitura pela qualidade e conteúdo. E os que aí estão, são uma boa amostra da diversidade e qualidade do NR.

Estamos de volta. Boas leituras. Ótimo 2012 para todos nós.

1Mapa Curioso do PIB dos EUA comparado a outros países
2A morte do blogueiro
3Encontro com Abaporu
4A Arte dos Fotógrafos
5Pra que servem as faculdades de jornalismo
6Classe média, meu amor
7A Arte do Diálogo
8USP: uma clipagem alternativa
9Amy Whinehouse, uma homenagem
10Mais axé Jesus
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