Ali, na minha mesa cativa, já me sinto em casa e em poucos minutos um brinde dá início a ininterrupta conversa dos ébrios. “Bebe que a vida é outra!”, diz uma amiga com seu timbre negro. A noite está só começando.
O Clube do Choro de Porto Alegre se transformou em tema de um documentário há quase cinco anos, quando eu e uma amiga procurávamos um bar para nosso deleite estético e etílico. Ela é desenhista e na época estudante de História, eu, fotógrafa, estudava Ciências Sociais.
Tínhamos este projeto em comum, dedicar noites e noites a um bar, registrar acontecimentos, conversar, beber com os frequentadores e aos poucos ir recolhendo histórias de bar. Aquelas que são contadas na euforia da noite, entre goles de cerveja, por um amigo completamente desconhecido, que tornou-se instantaneamente íntimo.
A idade dos frequentadores do Clube do Choro varia entre 60 e 90 anos. Este grupo que se convencionou a chamar de terceira idade nos instigava. Uma rápida descrição das pessoas que frequentam o lugar levaria a crer que se trata de um baile onde senhores e senhoras vão, às vezes, para se distrair um pouco. Eu, aos meus vinte e poucos anos, me deparava com eles e admirava a intensidade com que desfrutavam a música, a dança, a bebida e a paquera.
Distribuídos neste espaço estão músicos, boêmios e admiradores; frequentadores assíduos, amigos ou velhos conhecidos que se reencontram por meio da música e das histórias que compartilham. É possível reconhecer no local um universo de relações que se arranjam ao ritmo do choro, da valsa, do samba, da marchinha.
No Clube do Choro de Porto Alegre reverberam os ecos de uma juventude vivida entre as boates do bairro Cidade Baixa tais como Pandeiro de Prata e Chão de Estrelas. A origem do Clube se sobrepõe a história de músicos e bares famosos da década de 60 e 70. Túlio Piva, contemporâneo de Lupicínio Rodrigues, um dos fundadores do Clube, foi dono de uma das boates mais famosas de Porto Alegre dos anos 60: Gente da Noite.
Entre os homens, o traje mais comum é o terno. Os mais despojados, usam camisa ou camiseta gola polo e jeans. Hélio é reconhecido pelos belos trajes e consagrou sua fama depois que foi vencedor de um concurso de beleza promovido pelo Clube. Desde então tornou-se rima, transmutou-se em poesia. “Este é Hélio Cardoso, o coroa mais charmoso”, apresentam-lhe.
As mulheres, vaidosas, usam maquiagem, anéis, brincos, colares, unhas pintadas e bocas vermelhas. Há um equilíbrio entre o sóbrio das roupas e o brilho dos acessórios, havendo um cuidado extremo para não errar nas combinações. Se as roupas são discretas, as personalidades não.
Dione afirma veementemente que pendurou as chuteiras, “homem, nem pensar!”, Elza, sua amiga diz provocativa “eu tenho mais sorte...”. As duas estão sempre conjecturando sobre o assunto. Se chegam ovos de codorna pelas mãos do garçom à mesa de alguém elas riem e falam entre os dentes: “é afrodisíaco!”.
Faz cinco anos que revisitamos, todas as quintas-feiras, nossos velhos amigos e interlocutores para lhes ouvir contar sobre amor, saudade, alegria, boemia, solidão, paixão. É na exaltação destes sentimentos que damos asas aos nossos narradores.
O filme está em fase de montagem, com previsão para ser lançado em maio deste ano. O que vai prevalecer é a vida ordinária e corriqueira como a minha e a sua. Porque contar histórias é, talvez, a melhor maneira de enriquecer a vida.
[Direção: Ana Mendes e Natália Chaves Bandeira]
O título do texto é inspirado no livro Cinema do Real, organizado por Maria Dora Mourão e Amir Labaki. São Paulo: Cosacnaif, 2005. Já o filme do Clube do Choro está sendo produzido pela Panda Filmes com financiamento da Prefeitura de Porto Alegre/FUMPROARTE 2010.
Ana Mendes, 26 anos, gaúcha de nascimento, errante de coração e profissão. Fotógrafa e cineasta documental formada em Ciências Sociais. Trabalha como fotojornalista freelancer entre Brasília e Porto Alegre. Mantém a coluna mensal Faço Foto.