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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quinta-feira, 29 de março de 2012

aqui traveis

O imenso Jorge Luís Borges (1899-1996), ao ouvir um estrangeiro manifestar o desejo de conhecer Buenos Aires, inquiria: "Para quê? Melhor conhecer o Rio de Janeiro". Tenho para mim que Borges agia assim por ciúmes. Ele amava tanto sua cidade que a queria a salvo de admirações e apetites alheios.

Outro imenso, Fernando Pessoa (1888-1935), escreveu versos que traduzem perfeitamente o louco amor ao lugar de origem: "O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia / Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia /Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia".

quem dirija a dedicação amorosa a um bairro. Escarafuncha o ano de nascimento, a primeira ocupação, a ascensão imobiliária, a derrocada das tradições, as anedotas prosaicas que colorem as personagens e esquinas. O rei do rádio, Francisco Alves (1898-1952) imortalizou a Lapa carioca: "É o ponto maior do mapa / Do Distrito Federal / Salve a Lapa!".

Paulista de Valinhos, Adoniran Barbosa (1910-1982) botou o Jaçanã, bairro da zona norte de São Paulo, no mapa do Brasil: "Moro em Jaçanã /Se eu perder esse trem / Que sai agora às onze horas / Só amanhã de manhã". Genial, ele foi mais longe ao poetizar um refúgio agonizante: "Era uma casa véia / Um palacete assombradado / Foi aqui seu moço / Que eu, Mato Grosso e o Joca / Construímo nossa maloca".

Mas voltando às cidades. Já ouvi de gente estudada a explicação de que o amor dedicado ao lugar de nascimento teria a ver com as indeléveis sensações, cheiros, impressões tatuadas no período da infância. Pode ser. Crianças são observadoras absolutas. São capazes de acompanhar um sabiá cercando uma minhoca, bicando-a, partindo-a ao meio, engolindo-a e alçando despreocupado voo.

É claro que não posso e não devo generalizar. Certamente há aqueles que odeiam a cidade natal. Quem a deixe para propositalmente não voltar. Aliás, tem quem faça isso com os países. Pegam um avião para nunca mais. Verdade que, de pronto, não lembro de nenhum poema ou canção que cante o desamor ao lugar da infância. Se você lembrar, por favor, ponha nos comentários.

Eu tenho três cidades na minha vida. Uma delas é o Rio de Janeiro, onde nasci e morei até os quinze anos. Gravei a fogo na memória as praias e as montanhas do Rio. E, principalmente, o jeito carioca de ser e se comportar. Até hoje, décadas depois, me emociono quando o avião aterrissa no Santos Dumont e o odor da maresia revisita meu nariz.

O outro amor, a cidade com quem me casei, é Sampa. Impossível e inútil descrevê-la em um parágrafo. Parafraseando alguém cujo nome esqueci: "São Paulo não é para iniciantes". Ela é um misto de máquina e humanidade. Tudo mega, tudo junto, tudo ao mesmo instante. Sempre que saio, seja para o mar encantador ou para um sítio acolhedor, já vou com o GPS da volta.

Na terceira cidade do meu afeto, eu nunca morei e provavelmente não irei morar. Na realidade, estive apenas quatro ou cinco vezes. Mas a experiência foi tão intensa que passou a acompanhar momentos importantes da minha história. Essa cidade é Bogotá, suspensa a 2460 metros acima do mar, onde fiz amigos do coração.

Por que Santa Fé de Bogotá? Porque me inspira. Me comovem o colorido de suas casas, o charme das cafeterias, a deliciosa arepa e ovos pericos dos desayunos. Além disso, o povo colombiano me agrada. Ele é uma mescla de baiano com mineiro, resultando num tipo alegre e desconfiado ao mesmo tempo. É isto: alegria e desconfiança, uma combinação poderosa para transitar pela vida.

fernanda pompeu, escritora e redatora freelancer, colunista do Nota de Rodapé, escreve às quintas a coluna Observatório da Esquina. Ilustração de Carvall, especial para o texto.

9 comentários:

Lula Ramires disse...

Muito linda a crônica de hoje, Fernanda. Me fez pensar no contra-exemplo que você pediu no texto. Aos 30 anos, no início da década de 1990, tive o prazer e felicidade de conhecer a Europa. Viajei de trem por uns 40 dias visitando parentes na Espanha e na Italia (países cuja lingua eu falava), passei pela França, pela Suíça, pela Alemanha, pela Holanda e finalmente sentei praça na Inglaterra onde morei por 10 meses (em Londres). Essa experiencia, que me marcaria para o resto dos meus dias, foi fascinante e o que mais me chamou a atenção era o padrão urbano de ruelas e beco com construções de poucos andares. Quando voltei, encontrei com a dona de uma escola de inglês onde lecionava antes de viajar e comentei esse meu encanto: ela ficou espantada! E retrucou: "Deus me livre... eu detesto velharias. Venho uma cidadezinha do interior de Minas Gerais, muito pobre, com tudo caindo aos pedaços. Eu não, gosto dos Estados Unidos, dos arranha-céus, dos edifícios envidraçados..." Claro que a prosa terminou ali, não tinhamos mais o que dizer um ano outro. Mas me chocou esse corte umbilical que aquela mulher tinha feito em relação à sua cidade de origem.

Marilda Carvalho disse...

Adoro! Obrigada Fer por me falar em portugues. Venha a Montreal escrever sobre o bairro portugues e o Boulevard St Laurent. Em outubro ! Beijo

Camila Fattori disse...

Linda a crônica...de fato desconheço também uma música que fale dos desamores da infância em relação a lugares e até me impressiono como temos a arte de reestruturar algumas memórias de infância de modo que até o que não era de fato tão prazeroso se torna motivo de saudade depois em que já não se está lá. Agora, depois de ler o texto vou me permitir parar alguns minutinhos para lembrar também dos meus momentos e das minhas cidades do coração. Obrigada Fernanda!

Caio Pompeu disse...

Sou um cara meio promíscuo. Já amei umas, mas acho que foi tudo fogo de palha. Pensei em me mudar em definitivo para alguns lugares na praia: Itanhaém e Ubatuba eram as minhas maiores fantasias. Flertava com a ideia de ter uma casa pequena apenas com uma bicicleta na garagem. De lá eu enviaria por e-mail meus trabalhos para os clientes de outras cidades. Depois cansei dessa ideia e achei que seria melhor viver 3 meses em cada lugar do mundo e, assim, eu teria uma namorada em cada país! Me casei com uma brasileira de sangue parcialmente indigena e cheguei à conclusão de que o melhor lugar do planeta era a minha casa, ao seu lado, com nossos 3 gatos, perto do metrô Vila Madalena e distante poucas estações da av. Paulista (que eu adoro)! E logo agora, que estou em love com São Paulo, estou de partida para os EUA, pensando como será esse novo caso de amor. Cada coisa que nos acontece nessa vida!

Anônimo disse...

Querida Fernanda, de nascimento sou de BH, mas estou fora já há tantos anos que não sei se minha cidadania afetiva ainda é aceita. Em minha carteira de identidade - é assim que se chama o RG de lá - ainda sou menino. Não sei por onde andam - paradoxalmente - minhas raízes. Acho que um pouco em cada lugar morado. Então continuo mineiro, do tipo descrito por Guimarães Rosa:"... um ser reflexivo, com segundos propósitos e enrolada natureza. Só quer o essencial, não as cascas."
Beijão
jsavio

Anônimo disse...

sai de Minas quando tinha 17 anos, rodei um pouco, no Brasil e fora dele, mas sempre tendo o "gps da volta" como o seu - Sao Paulo. nesse momento tirei as pilhas do gps e estou novamente vivendo na terrinha natal.
com todo amor q tenho a minha cidade, continuo querendo comprar pilhas novas.

Anônimo disse...

E amei Nanda ,Essa tem tudo a ver comigo (carioca da gema ) e morando a quase 20 anos fora do meu Rio (a primeira vez sai com 24 anose fui pra londres ,com filho,mala e cuia) onde fiquei 5 anos .E a segunda vez com 36 anos pra Florida(tirar uma filha adolescente do Rio e uma experiencia traumatizante)enfim o contraste foi menor ja que o clima e identico ,as praias sao lindas e tem brazuca e hispano saindo pela culatra (muito feijao com arroz) mas toda vez que o aviao levanta voo no Rio ou aterriza choro !!!Quando parte de tristeza e saudade dos tempos que nao voltam mais e quando chega de emocao . Amo minha cidade e me considero como de uma tribo pois os outros brazucas daqui (menos os paulistas e baianos) sao como os de minesota pra mim .Ser carioca e muito mais de ser de uma cidade ,e ser flamengo ,otimista e solidario .E ser malandro no bom sentido ,e vaselina e boemio gosta de musica e de mar ,e ter senso de humor !!

CLinck disse...

LUGARES e RAÍZES. Nesses assuntos eu sempre me identifico com umas aulas de biologia: "raízes aéreas..." (Sem amores... Sou por aí mesmo!) + 1 carimbo carinhoso no passaporte dos bons textos, Fê. Até a próxima alfândega.

Anônimo disse...

Querida! Estoy en Bogotá... sufriendola!
Y leyendo esta cronica tuya recuerdo el dia en que me enamoré de Sao Paulo!
Era una ciudad totalmente desconocida y fui a parar en el barrio Japonés, a las 5 de la tarde. Iba caminando , sintiendo por primera vez el olor del exceso, el ruido monstruoso del transito y los gritos en 3 idiomas, y de repente me asomé al puente que pasa por encima de la avenida. En ese momento el mundo se detuvo!
Recuerdas las montañas de Bogotá? que de lejos se ven azules entre la bruma? Bueno pues allí en el fondo del horizonte, y con el mismo color aparecían las siluetas de los edificios, un poco mas cerca el cruce de 5 o 6 viaductos, llenos de carros que empezaban a encender las luces y se veían como filas interminables de hormigas iluminadas!, debajo de mi pasaba la avenida ... y a los lados del puente un pedazo de verde con un arbol increíble, grande, frondoso, lleno de flores violetas cuya silueta se recortaba contra un cielo muy azul. El sol se estaba poniendo en el oeste, y al este ya estaba la luna... ahí completando aquella visión digna de una historia de Ray Bradbury.
no puedo describir el sentimiento de ese momento... fue como un profundo silencio, una mezcla entre temor y alegria... algo que hoy interpreto como el miedo de la libertad.
Me senti sola, pequeña y libre en medio de un mundo tan vasto que mi presencia en El no tiene la menor importancia. Al mismo tiempo me sentia cobijada por esta sensación de "humanidad" de la cual soy parte.
Desde ese momento me enamoré de Sao Paulo... y los años que viví ahí me marcaron!
añoro esa sensación de realidad concreta!
Siempre serás bienvenida a Bogotá.....las montañas y los colores te esperan. ( ahora estamos mas desconfiados!)

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