Acreditasse eu no juízo final e já estaria sofrendo antecipadamente. Como não acredito, posso gritar aos quatro ventos: guardo dentro de mim a maioria dos (senão todos) pecados capitais. Digo isso porque decidi confessar hoje minha enorme inveja por uma classe de pessoas: os decididos.
Uma das minhas maiores fraquezas é a dúvida. Quer me ver nervoso e confuso pergunte-me qualquer coisa de bate-pronto, sem me preparar antes. Pode ser algo muito básico, como o CEP da minha casa, meu número de telefone ou em que ano me formei. Sentir-me-ei frente a um tribunal da Santa Inquisição e mesmo sabendo a resposta será difícil e sofrido dizê-la.
Digamos que eu, mesmo suando e tremendo, tenha conseguido responder e você ainda queira me torturar. Basta rebater: “tem certeza”?
Não, eu nunca tenho certeza. Podemos estar falando sobre um assunto que domino, que estudei, que li, que me interessa; de um lugar que conheço bem, de um episódio que vivi; podemos estar falando de algo íntimo meu. Se me perguntar se tenho certeza do que estou a dizer eu direi que não.
E é por conta disso que tenho tanta inveja dos decididos. Essa gente que fala a maior besteira do mundo com segurança tal que não deixa espaço para a dúvida. Não têm a menor ideia do que dizem, mas estão absolutamente seguros.
Gente capaz de me convencer de que estou errado, mesmo estando certo. Capaz de discorrer por horas sobre um assunto sem ter lido qualquer livro sobre o tema (ou sobre qualquer tema), de descrever detalhadamente um lugar sem nunca ter lá estado, de dar respostas definitivas sobre questões em que essa possibilidade nem existe.
Invejo essa gente que sempre sabe. Que nunca, jamais, titubeia ao ser questionado se tem certeza. Gente que desconhece as expressões “não sei”, “não saberia responder”, “não me sinto preparado para falar sobre esse assunto”, “vou checar e depois te digo”.
Invejo os decididos, mas se me perguntarem se tenho certeza do que acabo de escrever obviamente responderei que não.
Ricardo Viel, jornalista, escreve às segundas, de Salamanca, Espanha
segunda-feira, 30 de julho de 2012
sábado, 28 de julho de 2012
sexta-feira, 27 de julho de 2012
A casa em frente
Uma voz de mulher chama o nome do meu marido na porta de casa, e imediatamente me vem à memória a vizinha da casa da frente. Morávamos no interior, uma família religiosa e de bem. Desde o dia em que nos mudamos para ali, soubemos que em frente à nossa casa vivia uma mulher imoral. Era “a outra” de um homem casado, e com ele tinha filhos. Moravam ali, também, os pais dela, numa naturalidade que afrontava ainda mais a vizinhança, muito ciosa das aparências.
O homem visitava sua segunda família todos os dias, e periodicamente trazia uma generosa quantidade de mantimentos, o que demonstrava que cumpria com o dever de sustentar seus filhos – algo que muitos pais ignoram com a maior tranquilidade. A gente torcia o nariz para aquela proximidade incômoda com a imoralidade, mas não havia muito que se pudesse fazer a respeito. E estávamos terminantemente proibidos de nos aproximar daquela casa. Era uma convivência forçada, mas pacífica.
Ele tinha carro, num tempo e num lugar em que ainda eram raros. Um belo dia, sei lá por que razão, estacionou-o do lado de cá da rua. Quando cheguei da escola, encontrei uma baita confusão em casa e minha mãe exaltada, muito nervosa. O carro “daquele senhor” parado em frente à nossa casa podia sugerir que ela era o alvo da visita. Como ele se atrevia a colocá-la naquela situação? O que as pessoas poderiam pensar? Isto quando até os postes sabiam como era essa história e quem eram os personagens. A preocupação da minha mãe apenas refletia o tempo e contexto.
De lá pra cá, as relações mudaram tanto que essa história perdeu o sentido. Homens com duas famílias simultâneas são raros hoje, tanto quanto mulheres que se sujeitam a ser “a outra” como opção de vida – ou falta de opção. O advento do divórcio e a liberalização dos costumes tornaram essas práticas quase pré-históricas. Parece-me que os casos paralelos estão hoje muito mais no terreno da diversão e da emoção rápida.
Também, dá pra pensar que está sepultada a ideia de que as mulheres comprometidas devem estar acima de qualquer suspeita e ter sempre uma conduta inquestionável. E de que aos homens tudo é permitido. Quero crer que há mais atenção aos sentimentos e desejos do que às aparências, e que hoje as pessoas, especialmente as mulheres, têm mais noção de autonomia e possibilidade de escolha.
Vendo algumas cenas da vida de um casal de cantores que fez muito sucesso nos anos cinquenta e sessenta, que passou recentemente na televisão, chamou-me muito a atenção, pelo que me fez recordar de como eram as coisas nesse tempo não muito distante, o fato de que o menos importante na vida familiar eram os sentimentos.
Estes eram quase sempre ignorados ou atropelados e pisoteados em nome de palavras enormes como fidelidade, moral, posse, honra, hombridade, família, reverência, obediência, aparência e outras do mesmo naipe. O que as pessoas sentiam e como se sentiam era o que menos importava.
Não que a vida tenha ficado mais fácil, mas que se abriu caminho para relações mais verdadeiras, embora talvez mais turbulentas, disto não tenho dúvida. E acho muito difícil haver algo mais doloroso do que viver uma vida inteira sem que seus sentimentos sejam levados em conta.
Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo no NR.
O homem visitava sua segunda família todos os dias, e periodicamente trazia uma generosa quantidade de mantimentos, o que demonstrava que cumpria com o dever de sustentar seus filhos – algo que muitos pais ignoram com a maior tranquilidade. A gente torcia o nariz para aquela proximidade incômoda com a imoralidade, mas não havia muito que se pudesse fazer a respeito. E estávamos terminantemente proibidos de nos aproximar daquela casa. Era uma convivência forçada, mas pacífica.
Ele tinha carro, num tempo e num lugar em que ainda eram raros. Um belo dia, sei lá por que razão, estacionou-o do lado de cá da rua. Quando cheguei da escola, encontrei uma baita confusão em casa e minha mãe exaltada, muito nervosa. O carro “daquele senhor” parado em frente à nossa casa podia sugerir que ela era o alvo da visita. Como ele se atrevia a colocá-la naquela situação? O que as pessoas poderiam pensar? Isto quando até os postes sabiam como era essa história e quem eram os personagens. A preocupação da minha mãe apenas refletia o tempo e contexto.
De lá pra cá, as relações mudaram tanto que essa história perdeu o sentido. Homens com duas famílias simultâneas são raros hoje, tanto quanto mulheres que se sujeitam a ser “a outra” como opção de vida – ou falta de opção. O advento do divórcio e a liberalização dos costumes tornaram essas práticas quase pré-históricas. Parece-me que os casos paralelos estão hoje muito mais no terreno da diversão e da emoção rápida.
Também, dá pra pensar que está sepultada a ideia de que as mulheres comprometidas devem estar acima de qualquer suspeita e ter sempre uma conduta inquestionável. E de que aos homens tudo é permitido. Quero crer que há mais atenção aos sentimentos e desejos do que às aparências, e que hoje as pessoas, especialmente as mulheres, têm mais noção de autonomia e possibilidade de escolha.
Vendo algumas cenas da vida de um casal de cantores que fez muito sucesso nos anos cinquenta e sessenta, que passou recentemente na televisão, chamou-me muito a atenção, pelo que me fez recordar de como eram as coisas nesse tempo não muito distante, o fato de que o menos importante na vida familiar eram os sentimentos.
Estes eram quase sempre ignorados ou atropelados e pisoteados em nome de palavras enormes como fidelidade, moral, posse, honra, hombridade, família, reverência, obediência, aparência e outras do mesmo naipe. O que as pessoas sentiam e como se sentiam era o que menos importava.
Não que a vida tenha ficado mais fácil, mas que se abriu caminho para relações mais verdadeiras, embora talvez mais turbulentas, disto não tenho dúvida. E acho muito difícil haver algo mais doloroso do que viver uma vida inteira sem que seus sentimentos sejam levados em conta.
Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo no NR.
quinta-feira, 26 de julho de 2012
1930: revolução?
Com 82 anos hoje, assassinato de líder nordestino iniciou movimento que serve à discussão sobre modelo do Estado |
O episódio modificou a estrutura baseada no monopólio do poder nacional pelos cafeicultores paulistas numa aliança político-eleitoral polarizada entre São Paulo e Minas Gerais, que garantiu o controle do Estado com o compromisso de alternância na presidência.
Foi com a queda dessa polarização que o papel estatal mais forte calcado no populismo de Getulio Vargas adquiriu contornos mais evidentes. Muitos livros didáticos de história descrevem que a movimentação capitaneada por Vargas derrubou a hegemonia da região sudeste, e que o Brasil, então um país rural e exportador de produtos agrícolas, passou a caminhar em direção a um modelo de desenvolvimento industrial e urbano.
Apesar do inquestionável valor histórico do momento, diversas questões podem ser levantadas. Desde a utilização do termo “revolução” até suas consequências e aprofundamento de transformações sociais. Mesmo que pontualmente, vale ressaltar que a data é tratada com visões diferentes no interior do meio acadêmico
Revolução?
Há debates sobre a consistência da rotulação de “Revolução de 30” dada por historiadores ao golpe militar que alçou Getúlio Vargas à Presidência. É verdade que houve movimentação de tropas, nas ruas, e que fogueiras foram armadas com móveis e cadeiras das redações de jornais governistas em grandes cidades brasileiras. Porém, seria isso suficiente para justificar que o acontecimento seja chamado de revolução? Existiram transformações profundas na sociedade que possam embasar a utilização do termo?
“Houve mudanças estruturais no Brasil a partir de 1930 em questões políticas, econômicas e sociais. As mulheres passaram a exercer o direito constitucional de votar, cria-se a Justiça Eleitoral, muitos direitos trabalhistas, reivindicações históricas dos operários são atendidos e o Estado se torna protagonista na economia. As transformações foram, sim, profundas”, disse ao Nota de Rodapé o professor João Paulo Martins Júnior da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.
Já a professora de história na pós-graduação da Universidade Paulista (Unip), Carla Longhi, considera que o momento não foi revolucionário pela ausência do aprofundamento das transformações que mudassem a estrutura social da época. “Eram as classes dominantes que se movimentavam, num rearranjo político. Ocorreram reformas, mas não mudanças profundas no sistema social. Creio que movimento de 30 é mais adequado do que revolução”.
De qualquer forma, a reestruturação político-estatal ocorrida no Brasil após 1930, com o período do governo Vargas, foi dividida em três fases – governo provisório, governo constitucional e Estado Novo – e imprimiu um legado que perdura até hoje no que se refere à modernização das estruturas estatais e ampliação das funções do Estado brasileiro, ampliando as funções sobre as áreas econômica, política e social.
A história deixou reflexos importantes, que perduraram na linha do tempo e estão bastante vivos nos dias atuais. Por eles, passam debates referentes ao papel de um Estado forte, capaz de conduzir o país na direção de formatações socioeconômicas que possibilitem a mobilidade da população de uma classe social a outra, como na questão da transferência de renda, e no tamanho da presença estatal no setor econômico, preparando as bases, por exemplo, para as relações comerciais externas, seja em tempos de calmaria seja em tempos de movimentos bruscos, como na crise mundial de 2008 e na que vemos hoje.
Moriti Neto, jornalista, mantém a coluna mensal Escarafunchar
Mil faces de um homem leal
Racionais e o clipe sobre Carlos Mariguella, militante do Partido Comunista entre a década de 30 até 1967, que ingressou na luta armada após romper com o partido, tornando-se a principal liderança da Ação Libertadora Nacional (ALN) e uma das figuras mais combativas do regime militar, considerado por muitos o inimigo número 1 da ditadura.
O vídeo foi gravado numa ocupação na Rua Mauá – um edifício na região da Cracolândia, em São Paulo. O clipe trata do episódio em que a ALN invadiu a Rádio Nacional, em SP, e veiculou uma mensagem revolucionária chamando o povo à luta contra o regime.
A música de Mano Brown foi especialmente composta para o filme ‘Marighella’, dirigido por Isa Grinspum Ferraz, sobrinha do líder da ALN. O longa está previsto para estrear no mês que vem.
O vídeo foi gravado numa ocupação na Rua Mauá – um edifício na região da Cracolândia, em São Paulo. O clipe trata do episódio em que a ALN invadiu a Rádio Nacional, em SP, e veiculou uma mensagem revolucionária chamando o povo à luta contra o regime.
A música de Mano Brown foi especialmente composta para o filme ‘Marighella’, dirigido por Isa Grinspum Ferraz, sobrinha do líder da ALN. O longa está previsto para estrear no mês que vem.
quarta-feira, 25 de julho de 2012
Esquadrão da gema mole
Eis que o Kassab resolveu restringir a distribuição de sopa para moradores de rua. A medida absurda virou uma bola de neve nas redes sociais, organizou-se um sopaço na frente da casa do prefeito e as autoridades, um olho na sopa outro nas eleições, trataram de voltar atrás. De qualquer forma, mais uma vez veio à tona essa mania de proibir tudo, que parece parte do DNA Serra/Kassab, que está deixando o mundo mais chato e que, ao mesmo tempo, pavimenta um caminho perigoso.
As leis deveriam ser feitas no intuito de manter nossa espécie agressiva e autodestrutiva num estado mínimo de harmonia. Os reacionários tendem a confundir as coisas. Acham que elas têm a função de deixar o mundo mais limpinho e arrumado, parecido com alguma ideia pré-concebida de paraíso que lhes tenha sido inculcada na infância.
Quando eles são levados a sério, criam-se leis estúpidas que diminuem a liberdade dos homens, quando, na verdade deveriam fazer justamente o contrário. Deveriam ser construídas de modo que cada um pudesse desfrutar o máximo de liberdade sem causar grandes prejuízos aos vizinhos (algum prejuízo é inerente à existência). Em outras palavras, a liberdade de um termina quando começa a liberdade do outro.
Dentro desses limites, seríamos livres para: distribuir sopas a quem quiséssemos, comer vinagrete na barraca do pastel, batatinhas com gorduras trans, galinha à cabidela, ovo com gema mole, fumar embaixo do toldo, e beber na calçada depois da uma da manhã (tudo isso entrou na lista de proibições da prefeitura paulistana).
Quando se trata dos limites da lei, o meu exemplo predileto é o da obrigatoriedade do capacete. Gosto desse exemplo porque ele é extremo e porque sempre que o uso sou prontamente enxovalhado.
A questão é a seguinte: se a cabeça é minha, eu deveria ter o direito de fazer com ela o que bem entender, inclusive amassá-la contra um poste ou embaixo de uma carreta na marginal.
O argumento contrário geralmente se baseia no fato de que, caso arrebente desnecessariamente minha cabeça, estarei causando prejuízos ao nosso sistema de saúde, aos cofres públicos e, consequentemente, a toda a sociedade. É fato. Mesmo quem tem plano de saúde, quando se estropia de moto acaba recolhido pelo SAMU, ou pelos Bombeiros.
É um argumento válido. Mas fico imaginando como pode ser perigoso nas mãos de unhas bem aparadas e cutículas bem tratadas de nosso nobre prefeito. O que aconteceria se fosse levado ao extremo. Qual um eco da distopia de George Orwell veríamos nossos governantes ganhando ares definitivos de Big Brother (o do livro, não o do Bial).
Qualquer comportamento diverso do exemplar, do politicamente correto, do irrepreensivelmente saudável, qualquer ato que pudesse nos colocar em algum nível de risco, seria legalmente passível de repreensão.
Acabaríamos obrigados a fazer exames rotineiros para conferir níveis de glicemia, colesterol e condições gerais do organismo, índices posteriormente submetidos à aferição da prefeitura. Números fora dos padrões resultariam em multa. Teríamos fiscais visitando nossas geladeiras de surpresa, apreendendo barras de manteiga, filões de bacon e outras ameaças gordurosas. Seríamos financeiramente repreendidos ao correr pra pegar o ônibus, ao voltar pra casa depois das onze, ou ao ouvir música alta nos fones de ouvido.
Tudo parece bem absurdo. Mas, pensando bem, não muito mais do que a proibição do ovo com gema mole.
Tomás Chiaverini é autor do romance Avesso (Global), e dos livros reportagem Cama de Cimento e Festa Infinita (ambos pela Ediouro). Mantém a coluna mensal Abelha na Orelha.
As leis deveriam ser feitas no intuito de manter nossa espécie agressiva e autodestrutiva num estado mínimo de harmonia. Os reacionários tendem a confundir as coisas. Acham que elas têm a função de deixar o mundo mais limpinho e arrumado, parecido com alguma ideia pré-concebida de paraíso que lhes tenha sido inculcada na infância.
Quando eles são levados a sério, criam-se leis estúpidas que diminuem a liberdade dos homens, quando, na verdade deveriam fazer justamente o contrário. Deveriam ser construídas de modo que cada um pudesse desfrutar o máximo de liberdade sem causar grandes prejuízos aos vizinhos (algum prejuízo é inerente à existência). Em outras palavras, a liberdade de um termina quando começa a liberdade do outro.
Dentro desses limites, seríamos livres para: distribuir sopas a quem quiséssemos, comer vinagrete na barraca do pastel, batatinhas com gorduras trans, galinha à cabidela, ovo com gema mole, fumar embaixo do toldo, e beber na calçada depois da uma da manhã (tudo isso entrou na lista de proibições da prefeitura paulistana).
Quando se trata dos limites da lei, o meu exemplo predileto é o da obrigatoriedade do capacete. Gosto desse exemplo porque ele é extremo e porque sempre que o uso sou prontamente enxovalhado.
A questão é a seguinte: se a cabeça é minha, eu deveria ter o direito de fazer com ela o que bem entender, inclusive amassá-la contra um poste ou embaixo de uma carreta na marginal.
O argumento contrário geralmente se baseia no fato de que, caso arrebente desnecessariamente minha cabeça, estarei causando prejuízos ao nosso sistema de saúde, aos cofres públicos e, consequentemente, a toda a sociedade. É fato. Mesmo quem tem plano de saúde, quando se estropia de moto acaba recolhido pelo SAMU, ou pelos Bombeiros.
É um argumento válido. Mas fico imaginando como pode ser perigoso nas mãos de unhas bem aparadas e cutículas bem tratadas de nosso nobre prefeito. O que aconteceria se fosse levado ao extremo. Qual um eco da distopia de George Orwell veríamos nossos governantes ganhando ares definitivos de Big Brother (o do livro, não o do Bial).
Qualquer comportamento diverso do exemplar, do politicamente correto, do irrepreensivelmente saudável, qualquer ato que pudesse nos colocar em algum nível de risco, seria legalmente passível de repreensão.
Acabaríamos obrigados a fazer exames rotineiros para conferir níveis de glicemia, colesterol e condições gerais do organismo, índices posteriormente submetidos à aferição da prefeitura. Números fora dos padrões resultariam em multa. Teríamos fiscais visitando nossas geladeiras de surpresa, apreendendo barras de manteiga, filões de bacon e outras ameaças gordurosas. Seríamos financeiramente repreendidos ao correr pra pegar o ônibus, ao voltar pra casa depois das onze, ou ao ouvir música alta nos fones de ouvido.
Tudo parece bem absurdo. Mas, pensando bem, não muito mais do que a proibição do ovo com gema mole.
Tomás Chiaverini é autor do romance Avesso (Global), e dos livros reportagem Cama de Cimento e Festa Infinita (ambos pela Ediouro). Mantém a coluna mensal Abelha na Orelha.
segunda-feira, 23 de julho de 2012
Escrevo para me salvar
Li recentemente trecho de uma carta em que Drummond aconselha Maria Julieta, sua filha, a escrever:
“Escreva minha filha, escreva. Quando estiver entediada, nostálgica, desocupada, neutra, escreva. Escreva mesmo bobagens, palavras soltas. Experimente fazer versos, artigos, pensamentos soltos. Descreva, como exercício, o degrau da escada do seu edifício (saiu um verso sem querer). Escreva sempre, mesmo para não publicar. E principalmente para não publicar. Não tenha a preocupação de fazer obras primas; que de a muito já perdi, se é que um dia a tive. Mas só e simplesmente escrever, se exprimir, desenvolver um movimento interior que encontre em si próprio sua justificação…”
O conselho de Drummond de certa forma responde a pergunta que todo escritor já teve que enfrentar: por que escrever?
Quem para mim deu a melhor, ou pelo menos a mais poética, resposta para essa indagação foi Gabriel García Márquez. Gabo disse que escrevia para que os amigos lhe quisessem mais.
Não sou escritor, mas semanalmente arrisco umas modestas linhas neste espaço. Meu objetivo com elas é, de certo modo, egoísta: escrevo para tentar me entender. Com meus textos busco – quase sempre inutilmente – espantar fantasmas, vencer a solidão e tornar menos terrível a existência (a minha).
O singelo conselho de Drummond me tocou enormemente talvez porque quero acreditar que escrever, sem preocupar-se com a qualidade e se será lido por alguém, tenha uma serventia: a salvação.
Ricardo Viel, jornalista, escreve às segundas de Salamanca, Espanha
“Escreva minha filha, escreva. Quando estiver entediada, nostálgica, desocupada, neutra, escreva. Escreva mesmo bobagens, palavras soltas. Experimente fazer versos, artigos, pensamentos soltos. Descreva, como exercício, o degrau da escada do seu edifício (saiu um verso sem querer). Escreva sempre, mesmo para não publicar. E principalmente para não publicar. Não tenha a preocupação de fazer obras primas; que de a muito já perdi, se é que um dia a tive. Mas só e simplesmente escrever, se exprimir, desenvolver um movimento interior que encontre em si próprio sua justificação…”
O conselho de Drummond de certa forma responde a pergunta que todo escritor já teve que enfrentar: por que escrever?
Quem para mim deu a melhor, ou pelo menos a mais poética, resposta para essa indagação foi Gabriel García Márquez. Gabo disse que escrevia para que os amigos lhe quisessem mais.
Não sou escritor, mas semanalmente arrisco umas modestas linhas neste espaço. Meu objetivo com elas é, de certo modo, egoísta: escrevo para tentar me entender. Com meus textos busco – quase sempre inutilmente – espantar fantasmas, vencer a solidão e tornar menos terrível a existência (a minha).
O singelo conselho de Drummond me tocou enormemente talvez porque quero acreditar que escrever, sem preocupar-se com a qualidade e se será lido por alguém, tenha uma serventia: a salvação.
Ricardo Viel, jornalista, escreve às segundas de Salamanca, Espanha
sábado, 21 de julho de 2012
sexta-feira, 20 de julho de 2012
Sevilhana
Fui à Espanha buscar o meu chapéu azul e branco, da cor daquele céu. E nenhum como o de Sevilha, que é como um excesso – e olha que eu sou de Brasília.
Sevilha é uma orgia para os sentidos, sobretudo para a visão. Pelo labirinto de ruelas árabes com suas lojas, restaurantes e cafés, quanto mais se anda, mais pátios e praças inesperadas surgem, como num jogo no qual se entra desavisada. E a cada três passos, uma construção que te seduz, te chama, te impede de continuar andando e fingindo que não viu.
Antes dos quarenta, eu achava que a pior ameaça era a cegueira. Como viver no escuro, como perder esta relação carnal com o mundo? Talvez por isso “Janela da alma” tenha tido sobre mim um impacto avassalador, cujo efeito durou muitos dias, e me obriga a revê-lo de vez em quando. Ver é tudo, e não me venham com essa conversa mole de que o essencial é invisível. Pode até ser, mas o visível e palpável nos molda e delimita. Mas também encharca.
É o que constato, mais uma vez, no meio desta orgia. Tanta coisa pra ver em vinte e quatro horas, e tudo tão imperdível. Ser turistas nos torna rasos. Como as hordas de chineses e brasileiros que estão por todo lado aonde se chegue. Os chineses, já sabemos, estão conquistando o mundo, e nós vamos a reboque, gastando os reais extras que a crise econômica mundial colocou em nossas mãos proletárias.
De escória do mundo civilizado, viramos turistas em bandos, produzidos por atacado, loucos pra comprar. Os comerciantes já disfarçam o desprezo com que nos tratavam até outro dia.
Mas voltando ao papo da visão, acho que o medo de perdê-la vai diminuindo com o tempo, junto com outras urgências que vão se acalmando. Quem sabe, se e quando chegar aos noventa, eu fique como aquela velhinha.
Clemencia é o seu nome, mexicana, cabelo branquinho, liso e curto. Olhos baços, já quase não enxergam, e os filhos a levam ao melhor oftalmologista da capital. O doutor propõe uma cirurgia, ela hesita. Volta pra casa e nos conta da consulta, acrescentando que não tem nenhuma intenção de se operar. “Ya he visto mucho”, ela nos diz, e ponto final.
Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo no NR.
Sevilha é uma orgia para os sentidos, sobretudo para a visão. Pelo labirinto de ruelas árabes com suas lojas, restaurantes e cafés, quanto mais se anda, mais pátios e praças inesperadas surgem, como num jogo no qual se entra desavisada. E a cada três passos, uma construção que te seduz, te chama, te impede de continuar andando e fingindo que não viu.
Antes dos quarenta, eu achava que a pior ameaça era a cegueira. Como viver no escuro, como perder esta relação carnal com o mundo? Talvez por isso “Janela da alma” tenha tido sobre mim um impacto avassalador, cujo efeito durou muitos dias, e me obriga a revê-lo de vez em quando. Ver é tudo, e não me venham com essa conversa mole de que o essencial é invisível. Pode até ser, mas o visível e palpável nos molda e delimita. Mas também encharca.
É o que constato, mais uma vez, no meio desta orgia. Tanta coisa pra ver em vinte e quatro horas, e tudo tão imperdível. Ser turistas nos torna rasos. Como as hordas de chineses e brasileiros que estão por todo lado aonde se chegue. Os chineses, já sabemos, estão conquistando o mundo, e nós vamos a reboque, gastando os reais extras que a crise econômica mundial colocou em nossas mãos proletárias.
De escória do mundo civilizado, viramos turistas em bandos, produzidos por atacado, loucos pra comprar. Os comerciantes já disfarçam o desprezo com que nos tratavam até outro dia.
Mas voltando ao papo da visão, acho que o medo de perdê-la vai diminuindo com o tempo, junto com outras urgências que vão se acalmando. Quem sabe, se e quando chegar aos noventa, eu fique como aquela velhinha.
Clemencia é o seu nome, mexicana, cabelo branquinho, liso e curto. Olhos baços, já quase não enxergam, e os filhos a levam ao melhor oftalmologista da capital. O doutor propõe uma cirurgia, ela hesita. Volta pra casa e nos conta da consulta, acrescentando que não tem nenhuma intenção de se operar. “Ya he visto mucho”, ela nos diz, e ponto final.
Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo no NR.
quinta-feira, 19 de julho de 2012
Tia Ricardina, um assentamento especial na Bahia
Eu estava na cidade de Lençois para fotografar as belezas naturais da Chapada Diamantina, trabalho que tomou boa parte do meu tempo. Apenas no último dia antes de voltar a São Paulo tive a chance de me aproximar das pessoas desse assentamento.
Não havia placa e nenhuma outra delimitação física capaz de identificar aquele conjunto de casas na beira da estrada BR-242 como uma área irregular. "Os sem terra são gente boa", contou-me um senhor negro de vistosa barba branca apontando o dedo para um ponto distante.
No semi-árido baiano, mais precisamente, na região de Lençois, o direito à terra se torna secundário na ausência da água. Os processos de irrigação são financeiramente inviáveis para grande parte da população pobre, e aquelas casas de pau a pique me pareceream legalmente corretas para um assentamento considerado clandestino.
“Clandestino” não seria a palavra apropriada para descrever o pacato local. Era um segunda-feira, 2 de Julho passado, dia da independência da Bahia, e as crianças estavam em plena euforia do feriado. Brincavam inocentemente, explorando ao máximo as poucas opções de lazer: carrinhos batidos, bicicletas enferrujadas e bolas murchas, além de um pequeno barranco, eram as atrações daquele parque de diversões improvisado.
O Assentamento Tia Ricardina estava numa deliciosa calmaria naquele fim de tarde e lembrando da minha recente experiência nada positiva no Assentamento Pinheirinho, publicadas neste blog, procurei o líder local.
Wiliam era um homem de meia idade, sorridente e tranquilo. Me contava sobre a história pacífica de ocupação da região há 12 anos e a negligência da prefeitura de Lençois com as necessidades básicas daquele povo.
A área fora doação de Dona Ricardina, uma senhora proprietária de muitas terras na região e de muito bom coração. Os cerca de 400 moradores da comunidade não contam com serviços básicos oferecidos pela prefeitura. A água, por exemplo, é coletada num rio próximo, a energia "roubada" dos postes de luz por meio de ligações clandestinas e o esgoto é improvisado com fossas artesanais no fundo das casas.
Me despeço de Wiliam com um caloroso abraço. Ele me diz para andar totalmente despreocupado e me lembra que ali não é São Paulo: "aqui todo mundo se conhece e se respeita".
De fato as taxas de criminalidade de Lençois são uma das menores do violento estado baiano. Outro assentado, de barba longa, apelido Bin Laden, moreno do sol, filho de garimpeiro, e com seus 50 e poucos anos me convida para desfrutar do fumo de corda e do café dos escravos no interior de sua casa de pau a pique.
Aceito. O final da tarde em Lençois resplandece o céu azul numa tonalidade intensa e exclusiva do inverno. Sento ao seu lado num frágil banco de madeira. Minhas lentes descansam no chão de terra batido, esqueço dos problemas da cidade grande, me ponho a fumar e relaxo como há meses não fazia.
Victor Moriyama é repórter fotográfico do Jornal O Vale, em São José dos Campos, cidade que reside atualmente. Mantém a coluna mensal Fotógrafo-escreve.
quarta-feira, 18 de julho de 2012
A semente de amor de Carlos Cachaça comemora 110 anos
Todos vieram de algum outro canto do Rio de Janeiro e foram morar naquele mundo de zinco que é Mangueira. Antes mesmo de outros poetas e trovadores, sambistas e partideiros, chegarem àquele morro, o menestrel Carlos Cachaça já estava lá. Nasceu no pé da colina, perto da linha do trem, onde o pai, ferroviário, tinha um barracão.
Ainda criança, Carlos Moreira de Castro subiu o morro que seria seu lar por toda a vida e foi morar com o português Tomás Martins, dono de vários barracos em Mangueira. O pequeno Carlos ajudava o padrinho analfabeto assinando recibos e percorrendo as vielas da localidade, recebendo aluguéis dos primeiros habitantes do lugar que entrou para a história da música brasileira. Aos poucos, conheceu lugares atraentes como a casa da Tia Fé, onde escutou um samba pela primeira vez, cantado por Mano Eloy, sambista lendário de Madureira.
Carlos Cachaça – apreciador de uma boa dose de caninha, que recebeu o apelido ainda jovem para se diferenciar de outros dois Carlos – viu o morro se desenvolver e o samba florescer, junto a diversos blocos carnavalescos, como o dos Arengueiros, fundado por ele e seu amigo e pupilo Cartola, oito anos mais novo, e formado exclusivamente por foliões bagunceiros, como bem dizia o nome. Anos mais tarde, levariam o verde e rosa daquele pavilhão para outra agremiação, desta vez uma Escola de Samba, a Estação Primeira de Mangueira.
Compositor de alto requinte, poeta, mestre de Cartola e um dos maiores baluartes do samba brasileiro, Cachaça tem, no próximo dia 5 de agosto, celebrados os seus 110 anos de nascimento. Viveu 97 anos e acompanhou de perto a gênese e a evolução da música popular urbana brasileira, bem como as profundas transformações que atingiram sua Mangueira e o Carnaval. Legou pérolas para o cancioneiro brasileiro.
“Quem me vê sorrindo pensa que estou alegre
O meu sorriso é por consolação
Porque sei conter,
Para ninguém ver
O pranto do meu coração”
Dupla estrelar
Parceiro de Cartola em diversas composições, como “Não quero mais amar a ninguém”, “Alvorada”, “Quem me vê sorrindo” e “Tempos Idos”, Cachaça é pouco lembrado como compositor destes e de tantos outros sambas que fez com seu amigo e concunhado – a esposa de Carlos e a mulher de Cartola, Menininha e Zica, eram irmãs.
Em 1933, levou à avenida um samba que estava de acordo com o enredo. Até então, os sambas cantados nos Carnavais – sambas de terreiro, banais, que falavam de amor e da natureza – não eram associados ao tema do desfile. Nascia o samba enredo. E, antecipando o que viria na década de 1940, quando os sambas seguiam temas históricos e patrióticos, sua composição daquele ano, “Homenagem” já exaltava grandes brasileiros. Não eram heróis de revoluções e nem mártires pela liberdade, mas poetas.
“Recordar Castro Alves, Olavo Bilac e Gonçalves Dias
E outros imortais que glorificaram nossa poesia
Quando eles escreveram, matizando amores, poemas cantaram
Talvez nunca pensaram de ouvir os seus nomes num samba algum dia”
Se nesta época, alguns sambistas de morro, como seu parceiro Cartola, emplacavam gravações com grandes cartazes (Francisco Alves, Silvio Caldas, Carmem Miranda, etc) da incipiente, mas muito fértil, música popular brasileira, Cachaça teve, nos anos 30, apenas um samba levado à cera: “Não quero mais amar a ninguém”, parceria com seu melhor amigo – embora o nome de Cartola não conste no disco – e Zé da Zilda, registrado por Aracy de Almeida, em 1936.
O lirismo requintado dos versos do Menestrel de Mangueira, décadas depois imortalizados na primorosa regravação de Paulinho da Viola, rendeu-lhe uma homenagem. Se antes ele celebrou os poetas com seu samba, agora eram os poetas que celebravam seu samba. A riqueza do verso “semente de amor sei que sou desde nascença” é tamanha, que este foi premiado e arquivado na Academia Brasileira de Letras.
“Semente de amor sei que sou desde nascença
Mas sem ter vida e fulgor, eis minha sentença
Tentei pela primeira vez um sonho vibrar
Foi beijo que nasceu e morreu sem se chegar a dar”
Aos 74, o primeiro LP
Como o pai, Cachaça também foi ferroviário e por quarenta anos exerceu a profissão, com a cabeça repleta de linhas melódicas de sambas, que seriam cantados no primeiro pagode que houvesse em Mangueira ou nos outros redutos que gostava de frequentar, como Salgueiro, Estácio de Sá e Oswaldo Cruz. Aposentou-se como escriturário na Rede Ferroviária Federal. De sua Mangueira, entretanto, ainda sairiam muitos frutos saborosos.
Em 1968, registrou seu canto pela primeira vez. Foi no disco “Fala Mangueira”, em que, ao lado de Cartola, Nelson Cavaquinho, Odete Amaral e Clementina de Jesus, celebrou a Verde Rosa, berço dourado de tantos bambas. “Lacrimário” é uma composição sua, com letra e melodia, de beleza pungente:
“Tenho um lacrimário extraordinário,
Lindo relicário que um dia fiz do meu sofrer
Fiz de agonia, fiz de nostalgia
Parte de um romance, sem acabar o meu viver”
Oito anos depois, o Poeta do Morro de Mangueira pôde, finalmente, gravar um disco inteiro. Com produção de J. Botezelli, o Pelão, figura de suma importância para o samba e para música brasileira, e arranjos – fiéis ao samba mangueirense – de João de Aquinho, o álbum reuniu 12 composições criadas ao longo de mais de 50 anos pelo gênio da raça.
No encarte, as letras garrafais relatavam a injustiça que acabara de ser reparada: “CARLOS CACHAÇA – 1º LP AOS 74 ANOS”. O primoroso disco reuniu instrumentistas de alto valor como Raul de Barros (trombone), Copinha (flauta), Waldir de Paula (violão 7 cordas), Meira (violão), Canhoto (cavaco), Marçal, Elizeu, Jorginho e Gilson (ritmo) e é considerado um dos mais emblemáticos álbuns de samba de todos os tempos.
“Se algum dia, eu souber que você vai deixar meu coração,
Que é todo seu, em busca de outro amor
Não serei mais feliz
Porque você não quis
Depois serei, como fui seu, da minha dor”
Atentos à importância da celebração dos 110 anos de seu nascimento, o Projeto Samba de Terreiro de Mauá, agremiação que há quase uma década realiza ações afirmativas em prol do samba, notadamente o samba de terreiro praticado nas antigas Escolas de Samba do Rio de Janeiro, realiza, no próximo dia 5 de agosto, uma grande homenagem ao compositor mangueirense.
A celebração acontecerá no Centro Cultural Dona Leonor (Rua San Juan, 121 – Parque das Américas –Mauá, SP), a partir das 15h, e contará com a presença de Marília Barboza Trindade, “biógrafa” da Mangueira, com quem o homenageado conviveu intensamente.
Ouça a riqueza dos versos e melodias plangentes
de Carlos Cachaça, em seu único álbum de 1976
André Carvalho, jornalista, mantém a coluna mensal Batucando, sobre samba, a ser publicada sempre na terceira quarta-feira do mês. Ilustração de Kelvin Koubik, artista visual e músico de Porto Alegre, especial para o texto
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segunda-feira, 16 de julho de 2012
dorme(u)bem
- Já dormiu?
- Tava quase.
- Hum…
- Que foi?
- Nada. Tava aqui pensando…
- No quê?
- Em como é bom dormir com você. Dormir mesmo, sabe!?
- Ahã…
- Às vezes eu acordo de noite e fico te namorando, sabia? Chego bem pertinho, te dou um cheiro, aí me enrosco um pouco em você…
- E eu te afasto, né!?
- É, quase sempre. Sabe, queria que você pudesse, por um dia, entrar aqui dentro.
- Dentro de onde?
- Dentro de mim. Sei lá, como se você pudesse mudar tua alma pra cá.
- Pra que?
- Pra ver como é estar do teu lado. Sentir teu cheiro. Andar de mãos dadas, te dar um beijo, tocar tua barriga… te ver pelada, te levar pra cama.
- Hum!
- Que é?
- Nada.
- …
- Você falava essas coisas pra todas as tuas ex-namoradas?
- …
- Desculpa, mas é que eu não acredito ainda em você.
- Azar é o teu. Eu sei o que sinto. Se você não sair dessa trincheira que criou, nunca vai se permitir…
- Sem lição de moral, tá, por favor. Tô super cansada hoje. Boa noite.
- Dorme bem.
(………………………………………)
- Já dormiu?
- Não.
- Chega mais aqui perto…
- Quê?
- Vem aqui pertinho… Me conta. Como é andar de mão dada comigo? Como é meu cheiro?
Ricardo Viel, jornalista, escreve às segundas de Salamanca, Espanha
- Tava quase.
- Hum…
- Que foi?
- Nada. Tava aqui pensando…
- No quê?
- Em como é bom dormir com você. Dormir mesmo, sabe!?
- Ahã…
- Às vezes eu acordo de noite e fico te namorando, sabia? Chego bem pertinho, te dou um cheiro, aí me enrosco um pouco em você…
- E eu te afasto, né!?
- É, quase sempre. Sabe, queria que você pudesse, por um dia, entrar aqui dentro.
- Dentro de onde?
- Dentro de mim. Sei lá, como se você pudesse mudar tua alma pra cá.
- Pra que?
- Pra ver como é estar do teu lado. Sentir teu cheiro. Andar de mãos dadas, te dar um beijo, tocar tua barriga… te ver pelada, te levar pra cama.
- Hum!
- Que é?
- Nada.
- …
- Você falava essas coisas pra todas as tuas ex-namoradas?
- …
- Desculpa, mas é que eu não acredito ainda em você.
- Azar é o teu. Eu sei o que sinto. Se você não sair dessa trincheira que criou, nunca vai se permitir…
- Sem lição de moral, tá, por favor. Tô super cansada hoje. Boa noite.
- Dorme bem.
(………………………………………)
- Já dormiu?
- Não.
- Chega mais aqui perto…
- Quê?
- Vem aqui pertinho… Me conta. Como é andar de mão dada comigo? Como é meu cheiro?
Ricardo Viel, jornalista, escreve às segundas de Salamanca, Espanha
sábado, 14 de julho de 2012
sexta-feira, 13 de julho de 2012
Texto pronto
Gosto de ver novela. Uma por dia está de bom tamanho, então é aquela que passa depois do jantar. Por inércia, vejo a da Globo, que parece que ainda tem a qualidade menos pior, não sei por quanto tempo mais.
O título, o autor e o elenco não importam muito, só não suporto os enredos francamente imbecis. E não acho que novela tem que ensinar coisas altamente edificantes. Tem é que divertir, distrair mesmo. Então eu me jogo na cama, recostada, e fico ali vendo aquelas histórias quase sempre tolas e absurdas, sem pensar em nada. De preferência, acompanhada do meu filho, e a gente se diverte comentando as bobagens e os desempenhos ótimos ou desastrosos, e adorando as cenas de baixaria, sempre as nossas preferidas.
As personagens sempre sabem o que dizer. É óbvio que a qualidade do texto depende da competência do autor, mas não faltam uma boa resposta, uma má-criação rápida e certeira, um elogio preciso, uma declaração de amor caprichada, uma frase espirituosa. E aí eu fico pensando em como seria bom ter um texto pronto à minha espera.
Sim, porque não sei como é com os outros, mas eu sempre demoro pra pensar na melhor frase ou na resposta boa e aí, geralmente a ocasião já passou ou a oportunidade foi perdida. Isso acontece especialmente quando a conversa ou comentário é sobre mim mesma. A pessoa diz alguma coisa que toca num ponto sensível, que merece que eu me defenda ou modifique a perspectiva do que está sendo falado, e eu fico ali, feito uma idiota, dizendo qualquer coisa desimportante, quando devia ter dito isso e aquilo e aquilo outro, que eu só formulo alguns minutos depois, mas aí já não serve pra nada. Ai que ódio!
Acho que é também por isso que leio livros e vejo filmes e novelas. Pra me sentir vingada da minha parvoíce naquelas frases encadeadas, na reflexão instantânea e tão interessante que a personagem faz diante dos meus olhos, na ironia certeira, na capacidade de dizer exatamente o que aquela pessoa que a está ferindo ou maltratando precisa ouvir naquele momento. Dá uma sensação boa de alma lavada e também uma esperança de que quem sabe da próxima vez eu consiga fazer a mesma coisa.
Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo no NR.
O título, o autor e o elenco não importam muito, só não suporto os enredos francamente imbecis. E não acho que novela tem que ensinar coisas altamente edificantes. Tem é que divertir, distrair mesmo. Então eu me jogo na cama, recostada, e fico ali vendo aquelas histórias quase sempre tolas e absurdas, sem pensar em nada. De preferência, acompanhada do meu filho, e a gente se diverte comentando as bobagens e os desempenhos ótimos ou desastrosos, e adorando as cenas de baixaria, sempre as nossas preferidas.
As personagens sempre sabem o que dizer. É óbvio que a qualidade do texto depende da competência do autor, mas não faltam uma boa resposta, uma má-criação rápida e certeira, um elogio preciso, uma declaração de amor caprichada, uma frase espirituosa. E aí eu fico pensando em como seria bom ter um texto pronto à minha espera.
Sim, porque não sei como é com os outros, mas eu sempre demoro pra pensar na melhor frase ou na resposta boa e aí, geralmente a ocasião já passou ou a oportunidade foi perdida. Isso acontece especialmente quando a conversa ou comentário é sobre mim mesma. A pessoa diz alguma coisa que toca num ponto sensível, que merece que eu me defenda ou modifique a perspectiva do que está sendo falado, e eu fico ali, feito uma idiota, dizendo qualquer coisa desimportante, quando devia ter dito isso e aquilo e aquilo outro, que eu só formulo alguns minutos depois, mas aí já não serve pra nada. Ai que ódio!
Acho que é também por isso que leio livros e vejo filmes e novelas. Pra me sentir vingada da minha parvoíce naquelas frases encadeadas, na reflexão instantânea e tão interessante que a personagem faz diante dos meus olhos, na ironia certeira, na capacidade de dizer exatamente o que aquela pessoa que a está ferindo ou maltratando precisa ouvir naquele momento. Dá uma sensação boa de alma lavada e também uma esperança de que quem sabe da próxima vez eu consiga fazer a mesma coisa.
Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo no NR.
quinta-feira, 12 de julho de 2012
A reflexão de Tatiana
Saiu publicado outro dia, num blog amigo deste NR, trecho de uma carta que Dorival Caymmi escreveu a Jorge Amado nos idos de mil novecentos e lá vai pedrada.
Nela, Dorival conta a Jorge que “o tempo que tenho mal chega para viver”, razão pela qual ele, ultimamente, não vinha pintando tantos quadros quantos gostaria. E sem os quadros, que poderia vender, deixava de ganhar uma fortuna.
Enumero as atividades que consumiam tanto assim o tempo de Caymmi: 1. visitar Dona Menininha; 2. saudar Xangô; 3. conversar com Mirabeau; 4. se aconselhar com Celestino sobre como investir o dinheiro que ele não tinha e nunca teria, graças a Deus; 5. ouvir Carybé mentir; 6. andar nas ruas; 7. olhar o mar; 8. não fazer nada.
A carta está publicada na exposição que Jorge Amado estrela no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, e foi transcrita pela jornalista Tatiana Mendonça, enviada especial daquele blog para cobrir a exposição.
Na introdução de seu texto, Tatiana conta que “fiquei muitos minutos parada só olhando para ela [a carta], lendo e relendo, para tentar entender quando foi mesmo que, com essa pressa compulsiva por eficiência, a gente desaprendeu a viver”.
A reflexão de Tatiana é singela e aparentemente desprovida de maior malícia - afinal, uma gota a mais de maquiavelismo e ela talvez se tivesse autocensurado.
A reflexão de Tatiana, singela e aparentemente desprovida de maior malícia, é a reflexão de muita gente - pois já se vão mais de dez dias de publicado o texto, e ele segue diariamente figurando como o mais lido de cujo blog.
A reflexão de Tatiana, singela e aparentemente desprovida de maior malícia, é também a minha. De maneira que me impus a tarefa de ajudá-la na tentativa de “tentar entender quando foi mesmo que (…) a gente desaprendeu a viver.”
Pois o rastro mais radical do estopim deste triste e longevo “quando” que apurei até o fechamento desta edição, caríssima Tatiana, encontra-se no relato do francês Jean de Léry “Viagem à Terra do Brasil”, publicado pela primeira vez em 1578.
Léry visitara o Brasil numa expedição de protestantes franceses à França Antártica, colônia que a França teve no Brasil entre 1555 e 1560. Ficava na baía de Guanabara, onde hoje está a cidade do Rio de Janeiro.
No livro, ele relata uma conversa - que entendo ter sido interessantíssima - tida com um ancião tupinambá, uma das muitas linhagens tupi que habitavam o litoral brasileiro.
Conta o francês que o velho, admirado de ver a quantidade e rapidez com que os estrangeiros extraíam e transportavam o pau-brasil em naus e mais naus para a Europa, e ademais sabedor do sofrimento que lhes custava a travessia do oceano, achegou-se-lhe e indagou:
“- Por que vindes vós outros, maírs e perôs [franceses e portugueses] buscar lenha tão longe para vos aquecer? Não tendes madeira em vossa terra?”
Léry então responde que madeira havia sim, e muita, mas não daquela qualidade. E que aquela não era para queimar, mas para extrair tinta para tingir tecidos de algodão e plumas.
“- E porventura precisais de muito?”
E Léry responde-lhe que sim, porque lá há tantos negociantes que às vezes um só deles chega a comprar todo o carregamento de madeira trazido por vários navios.
“- Mas esse homem tão rico de que me falas não morre?”
(Me parece belíssima a intriga do velho tupinambá; chego a visualizar-lhe as dobras do cenho franzido)
Responde Léry novamente que sim, que os homens ricos de lá morrem sim.
“- E para quem fica o que deixam?”
Para os filhos ou, na falta destes, para os irmãos ou parentes próximos, responde o francês.
Do que o índio arremata (transcrevo-lhes para, em seguida, despedir-me):
“Agora vejo que vós outros maírs sois grandes loucos, pois atravessais o mar e sofreis grandes incômodos, como dizeis quando aqui chegais, e trabalhais tanto para amontoar riquezas para vossos filhos ou para aqueles que vos sobrevivem! Não será a terra que vos nutriu suficiente para alimentá-los também? Temos pais, mães e filhos a quem amamos; mas estamos certos de que depois da nossa morte a terra que nos uniu também os nutrirá, por isso descansamos sem maiores cuidados.”
Arrisco que é desde esse tempo, minha querida Tatiana, que tudo tem sido desaprender a viver.
[A referência ao livro de Léry não é direta, mas via Darcy Ribeiro em seu “O Povo Brasileiro”; resta-nos confiar na tradução original, muito embora persista a curiosidade de saber em que idioma - ou linguagem - se deu a conversa]
Ricardo Sangiovanni, jornalista, coordena o blog O Purgatório e mantém no NR a coluna Mistério do Planeta, com um texto mensal. Escreve de Salvador.
Nela, Dorival conta a Jorge que “o tempo que tenho mal chega para viver”, razão pela qual ele, ultimamente, não vinha pintando tantos quadros quantos gostaria. E sem os quadros, que poderia vender, deixava de ganhar uma fortuna.
Enumero as atividades que consumiam tanto assim o tempo de Caymmi: 1. visitar Dona Menininha; 2. saudar Xangô; 3. conversar com Mirabeau; 4. se aconselhar com Celestino sobre como investir o dinheiro que ele não tinha e nunca teria, graças a Deus; 5. ouvir Carybé mentir; 6. andar nas ruas; 7. olhar o mar; 8. não fazer nada.
A carta está publicada na exposição que Jorge Amado estrela no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, e foi transcrita pela jornalista Tatiana Mendonça, enviada especial daquele blog para cobrir a exposição.
Na introdução de seu texto, Tatiana conta que “fiquei muitos minutos parada só olhando para ela [a carta], lendo e relendo, para tentar entender quando foi mesmo que, com essa pressa compulsiva por eficiência, a gente desaprendeu a viver”.
A reflexão de Tatiana é singela e aparentemente desprovida de maior malícia - afinal, uma gota a mais de maquiavelismo e ela talvez se tivesse autocensurado.
A reflexão de Tatiana, singela e aparentemente desprovida de maior malícia, é a reflexão de muita gente - pois já se vão mais de dez dias de publicado o texto, e ele segue diariamente figurando como o mais lido de cujo blog.
A reflexão de Tatiana, singela e aparentemente desprovida de maior malícia, é também a minha. De maneira que me impus a tarefa de ajudá-la na tentativa de “tentar entender quando foi mesmo que (…) a gente desaprendeu a viver.”
Pois o rastro mais radical do estopim deste triste e longevo “quando” que apurei até o fechamento desta edição, caríssima Tatiana, encontra-se no relato do francês Jean de Léry “Viagem à Terra do Brasil”, publicado pela primeira vez em 1578.
Léry visitara o Brasil numa expedição de protestantes franceses à França Antártica, colônia que a França teve no Brasil entre 1555 e 1560. Ficava na baía de Guanabara, onde hoje está a cidade do Rio de Janeiro.
No livro, ele relata uma conversa - que entendo ter sido interessantíssima - tida com um ancião tupinambá, uma das muitas linhagens tupi que habitavam o litoral brasileiro.
Conta o francês que o velho, admirado de ver a quantidade e rapidez com que os estrangeiros extraíam e transportavam o pau-brasil em naus e mais naus para a Europa, e ademais sabedor do sofrimento que lhes custava a travessia do oceano, achegou-se-lhe e indagou:
“- Por que vindes vós outros, maírs e perôs [franceses e portugueses] buscar lenha tão longe para vos aquecer? Não tendes madeira em vossa terra?”
Léry então responde que madeira havia sim, e muita, mas não daquela qualidade. E que aquela não era para queimar, mas para extrair tinta para tingir tecidos de algodão e plumas.
“- E porventura precisais de muito?”
E Léry responde-lhe que sim, porque lá há tantos negociantes que às vezes um só deles chega a comprar todo o carregamento de madeira trazido por vários navios.
“- Mas esse homem tão rico de que me falas não morre?”
(Me parece belíssima a intriga do velho tupinambá; chego a visualizar-lhe as dobras do cenho franzido)
Responde Léry novamente que sim, que os homens ricos de lá morrem sim.
“- E para quem fica o que deixam?”
Para os filhos ou, na falta destes, para os irmãos ou parentes próximos, responde o francês.
Do que o índio arremata (transcrevo-lhes para, em seguida, despedir-me):
“Agora vejo que vós outros maírs sois grandes loucos, pois atravessais o mar e sofreis grandes incômodos, como dizeis quando aqui chegais, e trabalhais tanto para amontoar riquezas para vossos filhos ou para aqueles que vos sobrevivem! Não será a terra que vos nutriu suficiente para alimentá-los também? Temos pais, mães e filhos a quem amamos; mas estamos certos de que depois da nossa morte a terra que nos uniu também os nutrirá, por isso descansamos sem maiores cuidados.”
Arrisco que é desde esse tempo, minha querida Tatiana, que tudo tem sido desaprender a viver.
[A referência ao livro de Léry não é direta, mas via Darcy Ribeiro em seu “O Povo Brasileiro”; resta-nos confiar na tradução original, muito embora persista a curiosidade de saber em que idioma - ou linguagem - se deu a conversa]
Ricardo Sangiovanni, jornalista, coordena o blog O Purgatório e mantém no NR a coluna Mistério do Planeta, com um texto mensal. Escreve de Salvador.
quarta-feira, 11 de julho de 2012
Planar
Uma corda te puxa com força suficiente até você flutuar.
Sensações estranhas, boas.
Difícil saber para onde olhar.
Abaixo, sem chão, apenas imagens diminutas da realidade.
Nós, homens sem penas. Sem asas.
O vento sussurra suave como quem diz “você está em meus braços”.
Pela primeira vez, acanhado, beijo a boca das nuvens.
No encontro poético do corpo com a imensidão o sol se põe a observar.
Brilha dourado, em tons que os olhos não podem mais compreender.
Num instante ganho asas branqueadas de extremidades vermelhas.
A respiração entra no ritmo da liberdade.
Sou passarinho.
Thiago Domenici, jornalista. Pela primeira vez, no mês passado, voou de planador no Aeroclube de Bauru.
Sensações estranhas, boas.
Difícil saber para onde olhar.
Abaixo, sem chão, apenas imagens diminutas da realidade.
Nós, homens sem penas. Sem asas.
O vento sussurra suave como quem diz “você está em meus braços”.
Pela primeira vez, acanhado, beijo a boca das nuvens.
No encontro poético do corpo com a imensidão o sol se põe a observar.
Brilha dourado, em tons que os olhos não podem mais compreender.
Num instante ganho asas branqueadas de extremidades vermelhas.
A respiração entra no ritmo da liberdade.
Sou passarinho.
Thiago Domenici, jornalista. Pela primeira vez, no mês passado, voou de planador no Aeroclube de Bauru.
segunda-feira, 9 de julho de 2012
Os hipopótamos de Escobar
O colombiano Juan Gabriel Vásquez escolheu um dos episódios mais absurdos da história recente de seu país para abrir seu último romance (El Ruído de las Cosas al Caer, ainda inédito no Brasil). O escritor narra a perseguição aos hipopótamos de Pablo Escobar.
Nos anos 80, o narcotraficante mandou trazer animais de todas as partes do mundo para o zoológico particular que tinha na Fazenda Nápoles, próxima de Medellin. No apogeu, o lugar teve mais de mil espécies diferentes - algumas raríssimas- e uma réplica tamanho real de um dinossauro.
Em aviões cargueiros chegaram girafas, elefantes, flamingos, macacos, zebras, búfalos, tamanduás, leões, tigres, camelos e um casal de hipopótamos para embelezar o zoo. Abandonados após a morte do milionário dono, os hipopótamos quebraram as cercas da propriedade e se espalharam como pragas pela região, destruindo plantações, matando animais e aterrorizando moradores. Reproduziram-se tanto que no final da década passada, quando já eram mais de 30, passaram a ser caçados por questão de segurança, com o aval do governo.
Em seu livro, Vásquez recupera o período do medo na Colômbia, conta sobre a caça aos hipos, e também narra como o zoológico de Escobar se tornou um mito em seus tempos de infância. Descreve como algumas crianças “afortunadas” tiveram o privilégio de conhecer a Neverland do maior narcotraficante do mundo.
Toda a história de Escobar é tão fantástica que custa acreditar. Foi apontado pela revista Forbes como uma das dez pessoas mais ricas do mundo; propôs pagar a dívida externa de seu país; construiu seu próprio presídio de luxo e nele organizava festas, jogava futebol com os atletas da seleção nacional e comandava seu negócio; em um de seus esconderijos, queimou cerca de 2 milhões de dólares em uma fogueira para que a filha não passasse frio, mas não pode impedir que ela e os demais familiares passassem fome.
Conto tudo isso para sugerir aos que se interessam pela história da Colômbia a leitura dos textos de Vásquez. Além de seus três romances e um livro de contos, há também um ensaio muito interessante no qual o escritor propõe uma interpretação diferente de Cem Anos de Solidão. O texto se chama El arte de la distorsión.
Recentemente entrevistei o escritor colombiano, que advogou por uma mais proximidade entre o Brasil e os demais países da América Latina. Diz ele que há uma falta de comunicação "absurda" entre nós e que já passou a hora de quebramos essa barreira. Durante anos achei que o idioma era o que impedia nossa comunicação com os vizinhos, mas hoje creio que a questão é muito mais política e ideológica. Derrubar esse muro - construídos por nós mesmos - que nos separa, nos fará perceber que somos muito mais parecidos do que imaginamos. Ganharemos todos.
Ricardo Viel, jornalista, escreve às segundas de Salamanca, Espanha
Nos anos 80, o narcotraficante mandou trazer animais de todas as partes do mundo para o zoológico particular que tinha na Fazenda Nápoles, próxima de Medellin. No apogeu, o lugar teve mais de mil espécies diferentes - algumas raríssimas- e uma réplica tamanho real de um dinossauro.
Em aviões cargueiros chegaram girafas, elefantes, flamingos, macacos, zebras, búfalos, tamanduás, leões, tigres, camelos e um casal de hipopótamos para embelezar o zoo. Abandonados após a morte do milionário dono, os hipopótamos quebraram as cercas da propriedade e se espalharam como pragas pela região, destruindo plantações, matando animais e aterrorizando moradores. Reproduziram-se tanto que no final da década passada, quando já eram mais de 30, passaram a ser caçados por questão de segurança, com o aval do governo.
Em seu livro, Vásquez recupera o período do medo na Colômbia, conta sobre a caça aos hipos, e também narra como o zoológico de Escobar se tornou um mito em seus tempos de infância. Descreve como algumas crianças “afortunadas” tiveram o privilégio de conhecer a Neverland do maior narcotraficante do mundo.
Toda a história de Escobar é tão fantástica que custa acreditar. Foi apontado pela revista Forbes como uma das dez pessoas mais ricas do mundo; propôs pagar a dívida externa de seu país; construiu seu próprio presídio de luxo e nele organizava festas, jogava futebol com os atletas da seleção nacional e comandava seu negócio; em um de seus esconderijos, queimou cerca de 2 milhões de dólares em uma fogueira para que a filha não passasse frio, mas não pode impedir que ela e os demais familiares passassem fome.
Conto tudo isso para sugerir aos que se interessam pela história da Colômbia a leitura dos textos de Vásquez. Além de seus três romances e um livro de contos, há também um ensaio muito interessante no qual o escritor propõe uma interpretação diferente de Cem Anos de Solidão. O texto se chama El arte de la distorsión.
Recentemente entrevistei o escritor colombiano, que advogou por uma mais proximidade entre o Brasil e os demais países da América Latina. Diz ele que há uma falta de comunicação "absurda" entre nós e que já passou a hora de quebramos essa barreira. Durante anos achei que o idioma era o que impedia nossa comunicação com os vizinhos, mas hoje creio que a questão é muito mais política e ideológica. Derrubar esse muro - construídos por nós mesmos - que nos separa, nos fará perceber que somos muito mais parecidos do que imaginamos. Ganharemos todos.
Ricardo Viel, jornalista, escreve às segundas de Salamanca, Espanha
domingo, 8 de julho de 2012
Teatro: mulheres vermelhas
SUGESTÃO DE IZAÍAS ALMADA
PARA OS LEITORES DO NR
Gostaria de indicar aos leitores de NR uma peça teatral a que tive oportunidade de assistir quando fui lançar o meu novo romance "Sucursal do Inferno" na cidade de Ribeirão Preto. Saí bastante emocionado do espetáculo que apresenta - com bastante sensibilidade - um tema trágico. Não é nada fácil falar e representar a tortura num palco de teatro, por exemplo, mas o grupo "Ribeirão em Cena" o faz com bastante dignidade, sem apelos ao melodrama ou à violência desnecessária.
Regressando ao mito da tragédia grega de Antígona, as histórias de Olga Benário, Zuzu Angel, entre dezenas de outras, falam da vida privada de mulheres “subversivas” que foram torturadas ou perderam a vida durante o confronto contra regimes ditatoriais, entre 1928 e 1979, e são mostradas dramaticamente na peça “Mulheres Vermelhas”, que chega a São Paulo para curta temporada no Teatro Studio 184, da praça Roosevelt, nesse mês de julho.
O espetáculo teve sua estreia oficial no Festival Internacional de Teatro de Curitiba deste ano e é realizado com incentivos fiscais através do PROAC- da Secretaria Estadual de Cultura de São Paulo.
Após a referência ao drama de Antígona, a encenação começa em 1928 na Alemanha, passa pelo golpe de 64 e chega a 1979 quando foi instituída a Anistia no país.
São setenta minutos onde 25 atores, músicos e dançarinos profissionais, com música ao vivo, mostram as historias de Olga Benário Prestes, Lilian Celiberti, Lídia Guerlenda, Maria do Socorro Diógenes, Damaris Lucena, Rose Nogueira, Dulce Maia, Dinalva Oliveira Teixeira, Renata Guerra de Andrade, Vera Silvia Magalhães, Maria Auxiliadora Lara Barcelos, Anadyr Nacinovic, Gilse Cocenza, Cecília Coimbra,Yara Spadini, Sonia Lafoz, Lucia Murat , Zuzu Angel, Áurea Moretti, Maria Aparecida dos Santos e Madre Maurina Borges, entre outras.
"A temática", segundo o diretor do espetáculo Gilson Filho, "não faz proselitismo político e está sintonizada com a necessidade de defesa dos direitos humanos, o mesmo que inspira a “Comissão da Verdade e Reconciliação”.
Mesmo sem intenção, garante o diretor, “será difícil as pessoas não saírem emocionadas ao final do espetáculo, especialmente os que passaram pelos mesmos problemas e voltam ao clima da época ao som de Chico Buarque, Milton Nascimento e João Bosco, por exemplo”.
PARA OS LEITORES DO NR
Gostaria de indicar aos leitores de NR uma peça teatral a que tive oportunidade de assistir quando fui lançar o meu novo romance "Sucursal do Inferno" na cidade de Ribeirão Preto. Saí bastante emocionado do espetáculo que apresenta - com bastante sensibilidade - um tema trágico. Não é nada fácil falar e representar a tortura num palco de teatro, por exemplo, mas o grupo "Ribeirão em Cena" o faz com bastante dignidade, sem apelos ao melodrama ou à violência desnecessária.
Regressando ao mito da tragédia grega de Antígona, as histórias de Olga Benário, Zuzu Angel, entre dezenas de outras, falam da vida privada de mulheres “subversivas” que foram torturadas ou perderam a vida durante o confronto contra regimes ditatoriais, entre 1928 e 1979, e são mostradas dramaticamente na peça “Mulheres Vermelhas”, que chega a São Paulo para curta temporada no Teatro Studio 184, da praça Roosevelt, nesse mês de julho.
O espetáculo teve sua estreia oficial no Festival Internacional de Teatro de Curitiba deste ano e é realizado com incentivos fiscais através do PROAC- da Secretaria Estadual de Cultura de São Paulo.
Após a referência ao drama de Antígona, a encenação começa em 1928 na Alemanha, passa pelo golpe de 64 e chega a 1979 quando foi instituída a Anistia no país.
São setenta minutos onde 25 atores, músicos e dançarinos profissionais, com música ao vivo, mostram as historias de Olga Benário Prestes, Lilian Celiberti, Lídia Guerlenda, Maria do Socorro Diógenes, Damaris Lucena, Rose Nogueira, Dulce Maia, Dinalva Oliveira Teixeira, Renata Guerra de Andrade, Vera Silvia Magalhães, Maria Auxiliadora Lara Barcelos, Anadyr Nacinovic, Gilse Cocenza, Cecília Coimbra,Yara Spadini, Sonia Lafoz, Lucia Murat , Zuzu Angel, Áurea Moretti, Maria Aparecida dos Santos e Madre Maurina Borges, entre outras.
"A temática", segundo o diretor do espetáculo Gilson Filho, "não faz proselitismo político e está sintonizada com a necessidade de defesa dos direitos humanos, o mesmo que inspira a “Comissão da Verdade e Reconciliação”.
Mesmo sem intenção, garante o diretor, “será difícil as pessoas não saírem emocionadas ao final do espetáculo, especialmente os que passaram pelos mesmos problemas e voltam ao clima da época ao som de Chico Buarque, Milton Nascimento e João Bosco, por exemplo”.
SERVIÇO
Onde: Teatro Studio 184, Praça Roosevelt 184 SP
Quando: de 12 a 15 de julho às 21 hs.
Quanto: R$ 10
Informações e Reservas: (11) 3259-6940.
sábado, 7 de julho de 2012
sexta-feira, 6 de julho de 2012
eternamenTITE
Tite: campeão da libertadores pelo Corinthians (AE) |
O primeiro contato do Corinthians com o técnico Tite não foi agradável para a nação alvi-negra. Em 2001, o jovem treinador despontava para o cenário nacional do futebol conquistando a Copa do Brasil pelo Grêmio, em pleno Morumbi, superando tática e tecnicamente o Corinthians, então comandado por Vanderlei Luxemburgo. Começava ali um flerte.
Três anos mais tarde, o gaúcho era anunciado no Parque São Jorge como novo técnico do Corinthians. A missão era das mais difíceis: livrar o time do risco de rebaixamento no Brasileiro. Tite organizou a defesa da equipe e equilibrou o time, que conseguiu uma recuperação fantástica e terminou a competição em quinto, quase classificado para a Libertadores. A torcida já reconhecia a qualidade do trabalho do treinador: “Olê, olê, olê, olê... Tite, Tite!” era o grito que ecoava nas arquibancadas do Pacaembu.
Em 2005, com a chegada da MSI e sua constelação de jogadores, encabeçada por Tévez, Tite foi demitido injustamente após o aventureiro que comandava a “parceira” do Corinthians violar o sagrado território do vestiário para cobrar o técnico depois de um clássico contra o São Paulo. “Um dia eu volto para terminar o que não deixaram”, afirmara Tite na época.
A partir daí ele passou por clubes como Atlético Mineiro, Palmeiras e Internacional, realizando bons trabalhos e conquistando títulos, mas nunca deixou de respeitar o Corinthians, principalmente quando dirigiu o rival alvi-verde, assim como sempre que tem a oportunidade lembra das experiências no Grêmio e das dificuldades no início da carreira em clubes menores do Rio Grande do Sul. A dignidade e o caráter de Tite não permitem que ele apague ou desmereça seu passado.
Em outubro de 2010, depois de uma curta passagem pelo do Al-Wahda, dos Emirados Árabes, o treinador abriu mão de disputar o Mundial de Clubes da Fifa para cumprir a promessa feita em 2005 e completar o trabalho que fora interrompido. Mais uma vez faz boa campanha no Brasileiro e consegue vaga para a Libertadores. No ano seguinte, nem o Fenômeno Ronaldo impediu a humilhante desclassificação na competição sul-americana. Com apoio da direção, Tite pode reconstruir a equipe, talhar os jogadores, dar um padrão de jogo, uma consciência tática ao grupo e, com seriedade, conquistou o pentacampeonato Brasileiro.
A Libertadores de 2012 era o grande objetivo. Com um grupo fortalecido, unido e empenhado, Tite liderou o Corinthians em uma campanha invicta, incontestável e merecida que deu à Fiel o primeiro título da América. Jogos tensos e adversários fortíssimos, como Vasco, Santos e Boca Juniors valorizaram ainda mais o feito inédito. Em um time sem estrela, onde o conjunto é a grande virtude, o técnico conquistou de vez o coração do corinthiano e, com certeza, passou a ter um coração um pouco mais corinthiano. Treinabilidade, intensidade, merecimento, etc. Muitas palavras marcam a trajetória de Tite no Corinthians. Para mim, basta uma: Gratidão.
Thiago Barbieri, jornalista, autor do livro 23 anos em 7 segundos, editora Azul, especial para o NR
Carrolândia
Alguns anos atrás, uma das marcas de Brasília era o trânsito intenso por volta do meio-dia e das duas da tarde, que era quando todos os funcionários públicos saíam e voltavam do almoço, sempre em casa. Das seis às sete da noite também as ruas ficavam cheias, e só. No resto do dia, a gente transitava calmamente pela cidade, e sempre encontrava vaga pra estacionar, com as exceções que eram bem conhecidas, como o Congresso Nacional e algumas áreas comerciais mais movimentadas.
Como em todas as cidades brasileiras, nos últimos anos o número de carros cresceu absurdamente aqui. Muitos deles enormes, uns brutamontes obesos, frequentemente dirigidos por egos idem. Já nos chegaram os engarrafamentos que duram horas, os carros estacionados nos lugares mais improváveis por absoluta falta de vagas misturada com cinismo, a imprevisibilidade do tempo de deslocamento e outras mazelas que pareciam impensáveis nas nossas famosas pistas amplas e espaço a perder de vista.
Recentemente, ao passar um sábado em São Paulo para um compromisso de trabalho, fiquei exasperada com o tempo que perdi para fazer minha reunião e almoçar com uma amiga. Mais precisamente, das oito da manhã às cinco e meia da tarde, gastando dois terços dentro do carro, tentando chegar aos lugares. Simplesmente insuportável.
E o pior é que não existem sinais de alívio, pois as pessoas compram cada vez mais carros e usam cada vez menos os meios coletivos, pois o serviço, especialmente em Brasília, é tão ruim que inviabiliza seu uso. Aqui, até o metrô consegue atrapalhar a vida dos usuários, em vez de ajudar. Uma mistura de políticas irresponsáveis e imediatistas e um estilo de vida inconsequente assumido por quase todos nós (inclusive eu), segundo o qual ignoraremos os limites do espaço físico enquanto for possível. Isto sem falar na contaminação do meio ambiente e nos danos físicos causados pelo sedentarismo.
É inevitável a pergunta da avó escandalizada: onde vamos parar? No meio da rua, cada um dentro do seu carro, com os vidros fechados e o ar condicionado ligado, sem podermos nos mover pra lado algum. Depois de algumas horas de espera, vamos perceber que a fila não vai andar mesmo, então o jeito será abandonar o carro e continuar a pé. E descobrir que parou de vez, não há mais pra onde ir com os carros, que terão tomado todo o espaço disponível.
O que vai acontecer, então? Não sei, mas talvez as ruas sejam desocupadas por guindastes coletores de carros, que serão amontoados em volta da cidade, enquanto estaremos todos atônitos, tentando pensar no que fazer, como continuar a viver.
Parece absurdo, né? Mas cada dia mais eu acho que estamos chegando lá, e não vai demorar muito.
Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo no NR.
Como em todas as cidades brasileiras, nos últimos anos o número de carros cresceu absurdamente aqui. Muitos deles enormes, uns brutamontes obesos, frequentemente dirigidos por egos idem. Já nos chegaram os engarrafamentos que duram horas, os carros estacionados nos lugares mais improváveis por absoluta falta de vagas misturada com cinismo, a imprevisibilidade do tempo de deslocamento e outras mazelas que pareciam impensáveis nas nossas famosas pistas amplas e espaço a perder de vista.
Recentemente, ao passar um sábado em São Paulo para um compromisso de trabalho, fiquei exasperada com o tempo que perdi para fazer minha reunião e almoçar com uma amiga. Mais precisamente, das oito da manhã às cinco e meia da tarde, gastando dois terços dentro do carro, tentando chegar aos lugares. Simplesmente insuportável.
E o pior é que não existem sinais de alívio, pois as pessoas compram cada vez mais carros e usam cada vez menos os meios coletivos, pois o serviço, especialmente em Brasília, é tão ruim que inviabiliza seu uso. Aqui, até o metrô consegue atrapalhar a vida dos usuários, em vez de ajudar. Uma mistura de políticas irresponsáveis e imediatistas e um estilo de vida inconsequente assumido por quase todos nós (inclusive eu), segundo o qual ignoraremos os limites do espaço físico enquanto for possível. Isto sem falar na contaminação do meio ambiente e nos danos físicos causados pelo sedentarismo.
É inevitável a pergunta da avó escandalizada: onde vamos parar? No meio da rua, cada um dentro do seu carro, com os vidros fechados e o ar condicionado ligado, sem podermos nos mover pra lado algum. Depois de algumas horas de espera, vamos perceber que a fila não vai andar mesmo, então o jeito será abandonar o carro e continuar a pé. E descobrir que parou de vez, não há mais pra onde ir com os carros, que terão tomado todo o espaço disponível.
O que vai acontecer, então? Não sei, mas talvez as ruas sejam desocupadas por guindastes coletores de carros, que serão amontoados em volta da cidade, enquanto estaremos todos atônitos, tentando pensar no que fazer, como continuar a viver.
Parece absurdo, né? Mas cada dia mais eu acho que estamos chegando lá, e não vai demorar muito.
Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo no NR.
quinta-feira, 5 de julho de 2012
O Risco
Já se escreveu sobre tantas coisas, e tão grandiosas, que muitas vezes deixamos de observar as pequenas, que só sentiremos falta quando deixarem de existir ou não pudermos contar com elas.
Um exemplo: o risco. Voce já parou para pensar como o risco está presente na sua vida, e como ele é importante em inúmeros momentos, eventos e situações?
Uma situação banal: lista de compras no supermercado. O que se faz quando coloca o produto no carrinho – risco. Se não fosse o risco, você correria o risco (olha ele de novo) de levar mais do que precisa.
Lista de viagem. Nem é preciso dizer que o risco é essencial para você não levar coisas erradas, demais ou de menos.
Na sua vida financeira, então, é fundamental. O risco identifica a despesa que está te levando para o negativo. Não ficou positivo o saldo, mais risco.
Quer melhorar a situação do país. Faça uma lista dos políticos e passe um risco nos corruptos, desonestos, incompetentes. Não. Não vale queimar a lista, deve sobrar algum nome.
Seu humor. Faça um risco em tudo aquilo que te deixa infeliz. Viu? O risco também é importante para a sua saúde mental.
Dieta. Nossa, aí nem vale. É risco para todo lado.
Agora, se tem muito corintiano achando que é o rei da cocada preta, porque depois de 100 anos finalmente foi campeão da Libertadores, faça uma lista de esportes, risco em futebol, e escolha um time de cricket da Índia para torcer.
Caio Silva é aspirante a escritor amador, especial para o NR
Um exemplo: o risco. Voce já parou para pensar como o risco está presente na sua vida, e como ele é importante em inúmeros momentos, eventos e situações?
Uma situação banal: lista de compras no supermercado. O que se faz quando coloca o produto no carrinho – risco. Se não fosse o risco, você correria o risco (olha ele de novo) de levar mais do que precisa.
Lista de viagem. Nem é preciso dizer que o risco é essencial para você não levar coisas erradas, demais ou de menos.
Na sua vida financeira, então, é fundamental. O risco identifica a despesa que está te levando para o negativo. Não ficou positivo o saldo, mais risco.
Quer melhorar a situação do país. Faça uma lista dos políticos e passe um risco nos corruptos, desonestos, incompetentes. Não. Não vale queimar a lista, deve sobrar algum nome.
Seu humor. Faça um risco em tudo aquilo que te deixa infeliz. Viu? O risco também é importante para a sua saúde mental.
Dieta. Nossa, aí nem vale. É risco para todo lado.
Agora, se tem muito corintiano achando que é o rei da cocada preta, porque depois de 100 anos finalmente foi campeão da Libertadores, faça uma lista de esportes, risco em futebol, e escolha um time de cricket da Índia para torcer.
Caio Silva é aspirante a escritor amador, especial para o NR
quarta-feira, 4 de julho de 2012
Na década de 70...
O telefone toca às três horas de uma tarde de junho. Armando procura Faustino em busca de ajuda com uma vara de pesca que não consegue montar. A carretilha emperrou. O anzol, não sabe amarrar. Ele nunca teve uma vara e, amigos antigos, sabe que Faustino tem fama (e histórias) de pescador.
Não tarda, Faustino toca a campanhia da casa do amigo. Os dois se abraçam, já faz duas semanas que não jogam dominó no bar do Mole, em Santo André.
Trocam conversas miúdas. Faustino quer viajar para a Bahia com o neto Juamir de 18 anos para apresentar sua cidade natal, Belmonte.
Armando diz que o filho nunca quis lhe dar um neto. Logo muda de assunto e apresenta sua nova aquisição. A vara de pesca prateada com detalhes em preto fosco.
– Que beleza! - exclama Faustino.
– A questão é saber os encaixes certos, coisa que não sei. - pondera o aprendiz de pescador.
Em minutos Faustino ajeita o brinquedo. Acerta carretilha, anzol e anima-se:
– Vamos testar.
– Mas aqui na rua?
– Sim, você sabe lançar um anzol?
– Acho que não.
A rua estreita tem 50 metros, com poucos carros circulando o que permite jogar futebol, como faz um grupo de garotos não tão distante. Estão em frente à casa, na calçada. Ele engrena na explicação.
– Você joga pra trás e lança, assim ó!
O anzol vai preso a um chumbinho. Em segundos a linha atravessa a rua e arrebenta o vidro de dona Amália, que, para azar deles, tem janelas gradeadas.
Faustino resmunga. Aciona a carretilha apressado e, sem controle, pesca de vez a janela da vizinha.
– Vixi, diz Armando. Solta isso logo, apressa.
A linha se deita sobre a rua, a meia altura, suave.
Um garoto grita gol enlouquecido e parte da turma contesta. Isso os distrai por um momento, o suficiente para que um fusca azul imbique em alta velocidade com um caminhão de porte médio em sua cola.
Armando se desespera. Faustino segura a vara, petrificado. O fusca avança e se embola na linha. O motorista percebe algo estranho. E breca. O caminhão beija sua traseira. “Pum”. O barulho silencia a garotada da bola.
Aos berros dona Amélia sai para a rua.
– Quem fez esta molecagem na minha janela?
Armando bota as mãos na cabeça enquanto Faustino segue segurando a vara, ainda sem saber o que fazer. A rua vira um alvoroço.
O dono do caminhão, um português de sotaque inconfundível reclama inconformado:
– Mas ora pois que isto é coisa de dois marmanjões!
– O senhor nos desculpe - suplica Armando.
– Eu só queria mostrar como se manuseia a vara de pesca - complementa Faustino.
– Pescar aqui não é lugar não Senhores, tem o rio logo ali ou qualquer coisa com água e peixe!
Os dois pescadores do asfalto concordam, envergonhados.
Thiago Domenici, jornalista.
Não tarda, Faustino toca a campanhia da casa do amigo. Os dois se abraçam, já faz duas semanas que não jogam dominó no bar do Mole, em Santo André.
Trocam conversas miúdas. Faustino quer viajar para a Bahia com o neto Juamir de 18 anos para apresentar sua cidade natal, Belmonte.
Armando diz que o filho nunca quis lhe dar um neto. Logo muda de assunto e apresenta sua nova aquisição. A vara de pesca prateada com detalhes em preto fosco.
– Que beleza! - exclama Faustino.
– A questão é saber os encaixes certos, coisa que não sei. - pondera o aprendiz de pescador.
Em minutos Faustino ajeita o brinquedo. Acerta carretilha, anzol e anima-se:
– Vamos testar.
– Mas aqui na rua?
– Sim, você sabe lançar um anzol?
– Acho que não.
A rua estreita tem 50 metros, com poucos carros circulando o que permite jogar futebol, como faz um grupo de garotos não tão distante. Estão em frente à casa, na calçada. Ele engrena na explicação.
– Você joga pra trás e lança, assim ó!
O anzol vai preso a um chumbinho. Em segundos a linha atravessa a rua e arrebenta o vidro de dona Amália, que, para azar deles, tem janelas gradeadas.
Faustino resmunga. Aciona a carretilha apressado e, sem controle, pesca de vez a janela da vizinha.
– Vixi, diz Armando. Solta isso logo, apressa.
A linha se deita sobre a rua, a meia altura, suave.
Um garoto grita gol enlouquecido e parte da turma contesta. Isso os distrai por um momento, o suficiente para que um fusca azul imbique em alta velocidade com um caminhão de porte médio em sua cola.
Armando se desespera. Faustino segura a vara, petrificado. O fusca avança e se embola na linha. O motorista percebe algo estranho. E breca. O caminhão beija sua traseira. “Pum”. O barulho silencia a garotada da bola.
Aos berros dona Amélia sai para a rua.
– Quem fez esta molecagem na minha janela?
Armando bota as mãos na cabeça enquanto Faustino segue segurando a vara, ainda sem saber o que fazer. A rua vira um alvoroço.
O dono do caminhão, um português de sotaque inconfundível reclama inconformado:
– Mas ora pois que isto é coisa de dois marmanjões!
– O senhor nos desculpe - suplica Armando.
– Eu só queria mostrar como se manuseia a vara de pesca - complementa Faustino.
– Pescar aqui não é lugar não Senhores, tem o rio logo ali ou qualquer coisa com água e peixe!
Os dois pescadores do asfalto concordam, envergonhados.
Thiago Domenici, jornalista.
segunda-feira, 2 de julho de 2012
Resíduo
Deixa cair a toalha e se vê plena, irretocável, frente ao espelho. Com minúcia, analisa cada trecho do corpo em busca de alguma imperfeição, uma falha. Agarra parte da coxa, aperta com firmeza, e se satisfaz ao concluir que encontrou o que procurava.
Prende o cabelo com a falsa rosa, e esse ato tão banal desencadeia as reações que tanto a aterrorizam. Um leve enjoo e algo parecido a uma dor de cabeça. A memória que aparentemente dormia tranquila em sua jaula foi acordada (outra vez).
Quando deixava o pescoço à mostra, ele a beijava com ganas e dizia que aquilo era um convite ao pecado. Sua insolência sempre a assustou e a atraiu ao mesmo tempo. Nenhum desconhecido a havia tocado com tanta familiaridade como ele da primeira vez. Quando ainda não eram nada e estavam vestidos e tinham o mundo os vigiando.
Chega mais perto do espelho e se olha nos olhos. E se pergunta o que há naquela imagem da mulher que era quando estava com ele. Ele, ele, ele. Até quando duraria essa volta ao passado? E nele, ficou algo dela?
De tudo fica um pouco, diz Drummond em Resíduo. Da ponte bombardeada, do maço vazio de cigarro, do teu áspero silêncio... “De mim, de ti, de Abelardo”. Um dia ele mostrou a ela esse poema e os dois, sem saber o porquê, se puseram melancólicos.
Desfaz o penteado. Não há nenhum sentido. Ninguém merece vê-la assim além dele, e ele não está. E amanhã também não estará. E isso basta para que tudo o que já passou não valha mais de nada.
Sai à rua como se todos fossem seus rivais, e os desafia com sua beleza. Em voz baixa cantarola uma canção portuguesa que diz que todo amor do mundo não foi suficiente. “Porque o amor, o amor, o amor não serve de nada”.
Ricardo Viel, jornalista. Escreve às segundas de Salamanca, Espanha. Hoje, o Caderno 2 do jornal O Globo publicou matéria sua sobre Pilar del Río, viúva do escritor José Saramago.
Prende o cabelo com a falsa rosa, e esse ato tão banal desencadeia as reações que tanto a aterrorizam. Um leve enjoo e algo parecido a uma dor de cabeça. A memória que aparentemente dormia tranquila em sua jaula foi acordada (outra vez).
Quando deixava o pescoço à mostra, ele a beijava com ganas e dizia que aquilo era um convite ao pecado. Sua insolência sempre a assustou e a atraiu ao mesmo tempo. Nenhum desconhecido a havia tocado com tanta familiaridade como ele da primeira vez. Quando ainda não eram nada e estavam vestidos e tinham o mundo os vigiando.
Chega mais perto do espelho e se olha nos olhos. E se pergunta o que há naquela imagem da mulher que era quando estava com ele. Ele, ele, ele. Até quando duraria essa volta ao passado? E nele, ficou algo dela?
De tudo fica um pouco, diz Drummond em Resíduo. Da ponte bombardeada, do maço vazio de cigarro, do teu áspero silêncio... “De mim, de ti, de Abelardo”. Um dia ele mostrou a ela esse poema e os dois, sem saber o porquê, se puseram melancólicos.
Desfaz o penteado. Não há nenhum sentido. Ninguém merece vê-la assim além dele, e ele não está. E amanhã também não estará. E isso basta para que tudo o que já passou não valha mais de nada.
Sai à rua como se todos fossem seus rivais, e os desafia com sua beleza. Em voz baixa cantarola uma canção portuguesa que diz que todo amor do mundo não foi suficiente. “Porque o amor, o amor, o amor não serve de nada”.
Ricardo Viel, jornalista. Escreve às segundas de Salamanca, Espanha. Hoje, o Caderno 2 do jornal O Globo publicou matéria sua sobre Pilar del Río, viúva do escritor José Saramago.
domingo, 1 de julho de 2012
Realpolitik, golpes e pitbulls...
Dias de fotos emblemáticas, fatos inesperados e o rosnar de pitbulls, quero dizer, dos analistas políticos do Partido da Imprensa Golpista, para os quais, aliás, o presidente do Equador Rafael Correa, em discurso no encerramento da Rio+20 foi brilhante, ao explicar didaticamente para incautos e incultos o significado da guerra silenciosa entre os que querem um mundo melhor e os indefectíveis defensores da treva enfiados nas redações de jornalões, revistões e televisões.
Guerra dissimulada sim, esta que se trava entre o que resta de dignidade ao mundo atual e os pitbulls da mídia nativa e internacional. Mundo em que tudo se transformou e se transforma em mercadoria, principalmente a opinião desses jornalistas pagos para defender os próprios interesses e também os interesses da imprensa “democrática”, isto é, a sua.
Desmascarar os pitbulls e citar-lhes os nomes já não é preciso. Basta, para aqueles que ainda têm estomago, assistir a alguns telejornais, ler três ou quatro pasquins do Rio de Janeiro e São Paulo e duas revistas semanais e está formada a rede de informação que se transformou em partido político de viés direitista e conservador não registrado (ainda) nos Tribunais Superiores Eleitorais.
Esse mesmo partido que acaba de ajudar a “destituir sumariamente” (novo eufemismo para golpe de estado, segundo nota do governo brasileiro) o presidente paraguaio Fernando Lugo.
Numa fotografia amarelada pelo tempo, mas ainda presente nas paredes das salas de latifundiários, especuladores financeiros, empresários de enriquecimento fácil, empresários midiáticos, algumas casernas, altares empedernidos e políticos venais, pode-se distinguir com razoável nitidez as impressões digitais do tal rito sumário: o governo dos EUA e a Igreja, foram os primeiros a reconhecer e apoiar o novo governo paraguaio.
O golpe de estado é, antes de tudo, um câncer que afeta a democracia. Ensaiado há três anos em Honduras dentro de nova configuração política da América Central e do Sul, já que invoca a própria constituição do país em defesa dos interesses golpistas, volta a ser praticado no vizinho Paraguai.
Início de uma metástase? Se assim for, é preciso cortar o mal pela raiz, já. Não é nada difícil descobrir na constituição de cada país artigos que possibilitem o impeachment de um presidente da república. Ou presidenta.
Toda indecisão, tibieza, vacilo ou indiferença ante o golpe perpetrado em Assunção poderá significar a retomada de um passado que os povos sul americanos gostariam de ver erradicado para sempre. Em particular indígenas, negros, trabalhadores da cidade e do campo, ainda que disto muitos não tenham a consciência política, mas apenas a necessidade orgânica.
Antecedendo ao golpe de estado no início da semana, mas não menos importante, a aliança política com o grande corrupto e financiador da violenta repressão no Brasil dos anos 60, assinada entre o PT e Paulo Maluf não se justifica, quanto a mim, sob nenhuma hipótese. E não me venham para cá com exemplos de realpolitik ou coisa que o valha, pois admito que, em determinadas circunstâncias políticas, se façam alianças entre adversários políticos e mesmo ideológicos. Mas com um homem que é procurado pela Interpol por prática de altíssimo grau de corrupção é um tapa na cara de milhões de brasileiros.
Paulo Maluf desviou para paraísos fiscais milhões de dólares roubados ao povo brasileiro e ajudou a financiar um dos mais violentos aparelhos repressivos no país, a Operação Bandeirante (Oban), que se tornaria o embrião do Doi-Codi, onde se torturou e matou cidadãos brasileiros que um dia lutaram para derrubar a ditadura e pela volta da democracia ao Brasil.
Coisas do passado, já dizem alguns. Até porque, dizem outros, a direita nesse momento se chama José Serra. São coisas do passado?!... Como?!... Coisas do passado?!... Quer dizer, então, que a Comissão Nacional da Verdade é mesmo uma brincadeira? Uma areia nos olhos dos ingênuos como eu? Ela também trata de coisas do passado... Se Maluf é coisa do passado e pode ser “perdoado”, os torturadores também podem, por que não? Coisas do passado, pois foram todos anistiados, dizem os ladinos.
E assim corre a noviça democracia brasileira, movida a eleições de dois em dois anos, cuja engrenagem procura compor alianças – a maioria delas espúrias – em nível municipal, estadual e federal. O que esperar do combate a corrupção se na maior capital do país, num estado também campeão na corrupção com seus rodoaneis, metrôs, varrições e privatarias, o partido da mudança estende a mão a alguém que se sair do país é preso pela Interpol? Penso que uma aliança com o PCC de Marcola poderia também ser útil dentro da propalada realpolitik. Ou ele já está comprometido com o outro candidato?
Esse jeitão de fazer política enfraquece a democracia, pois consolida em milhares de eleitores a certeza de que os políticos são todos ‘farinha do mesmo saco’. E democracias enfraquecidas se tornam um prato cheio para aventuras golpistas. Honduras, Paraguai, nuvens escuras em horizontes bolivianos e a hidra tenta botar a cabeça de fora. Quem paga para ver? A realpolitik?
Espero, sinceramente, que Fernando Haddad vença as eleições para a prefeitura de São Paulo. Se assim for, com toda a certeza isso não terá sido pela aliança com o PP de Maluf. Esta, a aliança, manchará a biografia do ex-presidente Lula para sempre, queriam ou não os defensores da realpolitik. E não adianta tampar o sol com a peneira.
Repito aqui uma das minhas frases favoritas e que foi enunciada pelo grande Albert Einstein: “a grande diferença entre um estúpido e um gênio, é que o gênio tem seus limites”.
Izaías Almada, escritor e dramaturgo. Escreve a coluna mensal Pensando Alto.Recentemente lançou o romance Sucursal do Inferno, editora Prumo.
Guerra dissimulada sim, esta que se trava entre o que resta de dignidade ao mundo atual e os pitbulls da mídia nativa e internacional. Mundo em que tudo se transformou e se transforma em mercadoria, principalmente a opinião desses jornalistas pagos para defender os próprios interesses e também os interesses da imprensa “democrática”, isto é, a sua.
Desmascarar os pitbulls e citar-lhes os nomes já não é preciso. Basta, para aqueles que ainda têm estomago, assistir a alguns telejornais, ler três ou quatro pasquins do Rio de Janeiro e São Paulo e duas revistas semanais e está formada a rede de informação que se transformou em partido político de viés direitista e conservador não registrado (ainda) nos Tribunais Superiores Eleitorais.
Esse mesmo partido que acaba de ajudar a “destituir sumariamente” (novo eufemismo para golpe de estado, segundo nota do governo brasileiro) o presidente paraguaio Fernando Lugo.
Numa fotografia amarelada pelo tempo, mas ainda presente nas paredes das salas de latifundiários, especuladores financeiros, empresários de enriquecimento fácil, empresários midiáticos, algumas casernas, altares empedernidos e políticos venais, pode-se distinguir com razoável nitidez as impressões digitais do tal rito sumário: o governo dos EUA e a Igreja, foram os primeiros a reconhecer e apoiar o novo governo paraguaio.
O golpe de estado é, antes de tudo, um câncer que afeta a democracia. Ensaiado há três anos em Honduras dentro de nova configuração política da América Central e do Sul, já que invoca a própria constituição do país em defesa dos interesses golpistas, volta a ser praticado no vizinho Paraguai.
Início de uma metástase? Se assim for, é preciso cortar o mal pela raiz, já. Não é nada difícil descobrir na constituição de cada país artigos que possibilitem o impeachment de um presidente da república. Ou presidenta.
Toda indecisão, tibieza, vacilo ou indiferença ante o golpe perpetrado em Assunção poderá significar a retomada de um passado que os povos sul americanos gostariam de ver erradicado para sempre. Em particular indígenas, negros, trabalhadores da cidade e do campo, ainda que disto muitos não tenham a consciência política, mas apenas a necessidade orgânica.
Antecedendo ao golpe de estado no início da semana, mas não menos importante, a aliança política com o grande corrupto e financiador da violenta repressão no Brasil dos anos 60, assinada entre o PT e Paulo Maluf não se justifica, quanto a mim, sob nenhuma hipótese. E não me venham para cá com exemplos de realpolitik ou coisa que o valha, pois admito que, em determinadas circunstâncias políticas, se façam alianças entre adversários políticos e mesmo ideológicos. Mas com um homem que é procurado pela Interpol por prática de altíssimo grau de corrupção é um tapa na cara de milhões de brasileiros.
Paulo Maluf desviou para paraísos fiscais milhões de dólares roubados ao povo brasileiro e ajudou a financiar um dos mais violentos aparelhos repressivos no país, a Operação Bandeirante (Oban), que se tornaria o embrião do Doi-Codi, onde se torturou e matou cidadãos brasileiros que um dia lutaram para derrubar a ditadura e pela volta da democracia ao Brasil.
Coisas do passado, já dizem alguns. Até porque, dizem outros, a direita nesse momento se chama José Serra. São coisas do passado?!... Como?!... Coisas do passado?!... Quer dizer, então, que a Comissão Nacional da Verdade é mesmo uma brincadeira? Uma areia nos olhos dos ingênuos como eu? Ela também trata de coisas do passado... Se Maluf é coisa do passado e pode ser “perdoado”, os torturadores também podem, por que não? Coisas do passado, pois foram todos anistiados, dizem os ladinos.
E assim corre a noviça democracia brasileira, movida a eleições de dois em dois anos, cuja engrenagem procura compor alianças – a maioria delas espúrias – em nível municipal, estadual e federal. O que esperar do combate a corrupção se na maior capital do país, num estado também campeão na corrupção com seus rodoaneis, metrôs, varrições e privatarias, o partido da mudança estende a mão a alguém que se sair do país é preso pela Interpol? Penso que uma aliança com o PCC de Marcola poderia também ser útil dentro da propalada realpolitik. Ou ele já está comprometido com o outro candidato?
Esse jeitão de fazer política enfraquece a democracia, pois consolida em milhares de eleitores a certeza de que os políticos são todos ‘farinha do mesmo saco’. E democracias enfraquecidas se tornam um prato cheio para aventuras golpistas. Honduras, Paraguai, nuvens escuras em horizontes bolivianos e a hidra tenta botar a cabeça de fora. Quem paga para ver? A realpolitik?
Espero, sinceramente, que Fernando Haddad vença as eleições para a prefeitura de São Paulo. Se assim for, com toda a certeza isso não terá sido pela aliança com o PP de Maluf. Esta, a aliança, manchará a biografia do ex-presidente Lula para sempre, queriam ou não os defensores da realpolitik. E não adianta tampar o sol com a peneira.
Repito aqui uma das minhas frases favoritas e que foi enunciada pelo grande Albert Einstein: “a grande diferença entre um estúpido e um gênio, é que o gênio tem seus limites”.
Izaías Almada, escritor e dramaturgo. Escreve a coluna mensal Pensando Alto.Recentemente lançou o romance Sucursal do Inferno, editora Prumo.
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