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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Racismo no Brasil e afetos correlatos

por Cidinha da Silva*

Pilar, a vilã e Pitanga, a mocinha negra
Na novela Lado a lado três personagens femininas são centrais para pensar o tema do racismo. Laura (Marjorie Estiano), mocinha branca, filha da vilã, professora idealista e mulher divorciada, melhor amiga da mocinha negra. Constância (Patrícia Pillar), baronesa cruel, saudosa dos tempos escravistas e Isabel (Camila Pitanga), mocinha negra, arrojada, bela, libertária e pertencente a uma comunidade negra. Três excelentes atrizes potencializadas por belos papeis. Patrícia e Camila conseguem ser magistrais e ratificam o lugar de seguidoras de grandes atrizes como Fernanda Montenegro, demonstrado nas múltiplas e surpreendentes personagens que ambas vêm interpretando com competência ao longo da carreira.

Constância é protótipo da elite escravista decadente que manteve o poderio econômico, a mentalidade de subjugo aos negros e que consegue se reinventar na política, da corte imperial a família migra para o Senado.

Laura faz oposição à mãe: é humana, honesta, respeita as outras pessoas, acredita em uma sociedade igualitária e empenha-se para construí-la nas mínimas atitudes. Isabel é a rainha negra, a mulher que vence pelo trabalho artístico e emprega o dinheiro economizado durante seis anos no exterior para comprar uma casa, um teatro e construir uma escola para as crianças do Morro, do qual também é originária.

Marjorie (à dir): filha da vilã
e amiga da mocinha negra
Isabel tem um filho, fruto de relação acidental com o filho da vilã. O recém-nascido é raptado no momento do parto e trocado por um bebê morto entregue à parturiente enfraquecida pelo clorofórmio. Tudo isso planejado por Constância e executado por suas comparsas, a saber, a empregada branca e pobre que, por sua vez, contrata um homem branco que compra o corpo de um bebê para trocar pelo nascido vivo; uma parteira, também branca, reconhecida pela “habilidade” de matar crianças indesejadas no momento do nascimento e outra mulher (branca) que ajuda a parteira ao fugir com o bebê de Isabel.

Talvez o leitor ou a leitora tenha sentido certo desconforto na reiteração da branquitude das personagens da novela Lado a lado, escrita por Cláudia Lage e João Ximenes Braga. Paciência! Mas considerem que pela primeira vez há mocinhas e vilãs negras e brancas, portanto, é necessário distingui-las.

Os autores, de maneira inaugural na teledramaturgia tupiniquim rasgam, dilaceram, escancaram os privilégios dos brancos brasileiros alicerçados na exploração reiterada e arraigada dos negros ao longo de séculos. Eu não queria estar no lugar dos brancos, deve ser desconfortável mesmo. Digo isso porque outro dia, em uma dessas listas de comentários sobre o texto de alguém, li um rapaz branco reclamando do absurdo de pretenderem “culpar os brancos de hoje pelo que os de ontem fizeram, foram outros tempos e agora é bola para frente, sem olhar para o passado.” Quanto a isso, não dá para ter paciência.

Há também os que jogam no time de Laura e transformam o desconforto em atitude de mudança, em desconstrução dos privilégios da branquitude. Para estes, como para os autores da novela, flores, em que pese o tema dos afetos que ainda obsta entendimento pleno da questão.

Qual é o laivo de humanidade de Constância? O declínio da decisão de matar o neto, resolvendo entregá-lo a uma mulher (irmã da vilã negra) que pudesse criá-lo, financiada por sua generosidade. Aqui começa o problema do afeto e sua convivência harmônica com o racismo no Brasil. Constância tem pena de matar o neto mestiço (existe sentimento maternal difuso por ele), mas não titubeia em roubá-lo da mãe negra, mero ventre parideiro sem qualquer valor humano, como o ventre das mulheres outrora escravizadas por ela. E como um filho de mulher escravizada, real ou simbolicamente, também o é, Constância rouba o bebê da mãe negra, singelo capricho de senhora branca escravizadora.

ERA assim lá, naqueles tempos, e permanece assim cá, nos tempos de hoje. A discriminação racial é relativizada pelo afeto do branco pelo negro, é o carinho do senhor pelo escravo

Elias (Afonso Nascimento Neto) recebe da avó-megera quinhões mensais de atenção: dinheiro suficiente para garantir a sobrevivência de uma mulher adulta, dois adolescentes e uma criança, além de propina para a tia Berenice (Sheron Mennezes), intermediadora do negócio – cabe aqui a observação de que não deve ser muito dinheiro, é que pretos, naquela época e ainda hoje, vivem com muito pouco.

Elias recebe também olhares carinhosos. Ele é tão bonito, um tanto escurinho, é verdade, mas uma graça de menino. Às vezes até, o garotinho mestiço tem o beneplácito de aproximar-se daquela beleza radiante da avó e trocar duas ou três palavras com ela. Certa feita recebe um doce como presente e é fulminado pelo olhar de nojo da tia-avó Carlota (Christiana Guinle), também presente à cena.

Era assim lá, naqueles tempos, e permanece assim cá, nos tempos de hoje. A discriminação racial é relativizada pelo afeto do branco pelo negro, é o carinho do senhor pelo escravo, como disse tia Jurema (Zezé Barbosa). Ou você vê alguma diferença entre a postura de Constância e das patroas (sabidamente brancas) que tratam as empregadas domésticas (negras majoritariamente, não porque eu queira, mas porque assim atestam as estatísticas) como seres a quem fazem o favor de pagar salário irrisório, negam direitos trabalhistas e como compensação, doam roupas velhas e retalhos de carne para levar à casa nos finais de semana? Afora as humilhações, os palavrões, toda sorte de maus tratos e a possível iniciação sexual dos filhos ou assédio dos decrépitos maridos!

Outro aspecto importante para compreender a dinâmica do afeto como reforço da assimetria nas relações raciais, principalmente no Brasil, é a postura de Laura que, mesmo sabendo o quanto a mãe é peçonhenta, tenta relativizar o processo preparatório do veneno junto à Isabel, principal alvo da crueldade materna. Laura ouve as justificativas e explicações da mãe e surpreendentemente, tomada por amor filial, dá crédito a elas e tenta amainar o coração da amiga em relação à genitora. Isabel não aceita sequer ouvir, não tem paciência (como eu), mas Laura prossegue, é a representação da mulher branca não-racista que não compreende a ignomínia do racismo e por isso rejeita o fato de que uma igual, a mãe, a quem ela percebe como um ser humano ruim, mas humano, possa ser tão racista.

E, se Laura continuar assim, com a visão ingenuamente obliterada pelo afeto, não caminhará a humanidade, pois haverá, sempre, o carinho do escravizador pelo escravizado.


* escritora, Cidinha da Silva estreia hoje sua coluna mensal Dublê de Ogum.

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