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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Valparaíso não merece


por Júnia Puglia      ilustração Fernando Vianna*

A ideia era passar dois ou três dias em Pucón por minha própria conta, mas acabei desistindo devido à chuva incessante que cai no sul do Chile. Decidi, então, conhecer Vaparaíso e Viña del Mar, onde, apesar das várias visitas anteriores ao país, ainda não havia chegado. É que eu vinha sempre a trabalho, na correria. Agora chego como uma turista à toa, tão à toa que decido entrar num tour de um dia, a bordo de uma van. (Desnecessário mencionar que sete dos dez passageiros são brasileños, incluindo o casal “japonês”.)

Valparaíso é o porto marítimo mais importante do Chile. Já teve seus dias de maior glória, pelo salitre, pelo cobre e por ter sido escala obrigatória dos navios que saíam de Nova York e outros portos espalhados pelo mundo, levando todo tipo de aventureiro para a corrida do ouro na Califórnia. Imagine que, para ir da costa leste à costa oeste dos Estados Unidos, a pessoa tinha que fazer a volta do continente americano, passando do Atlântico ao Pacífico pelas águas turbulentas do Cabo Horn, e parar no porto chileno para descansar e reabastecer o navio. Veio gente do mundo inteiro, no ritmo do frisson global retratado em muitos livros e filmes. A inauguração do Canal do Panamá, em 1914, acabou com o intenso tráfego de passageiros, mas, felizmente, as marcas dessa gente toda que passou por aqui já estavam impressas na cidade.

Nada pesquisado no Google, mas relatado pelo nosso compenetrado guia, à medida que nos aproximávamos da cidade. Num estalo, lembrei-me de já ter lido sobre isto, há muito tempo, num livro de Isabel Allende, “Retrato em sépia”, ambientado nessa Valparaíso da corrida do ouro, e que estava perdido no sétimo cérebro. É bom sentir que a memória ainda é minha amiga. Instantaneamente, voltou-me o clima do porto coalhado de desconhecidos mal encarados, hotéis sórdidos, bordéis, contrabandistas, pintores, poetas, escritores, bêbados, estivadores, falsários e piratas. O que vi hoje é ladeado por autopistas modernas e abriga uns navios grandões, sobre os quais se encaixam gruas, como num jogo de Lego em tamanho gigante.

Um emaranhado de ruas, ruelas, planos inclinados, praças, edifícios e casas de todo jeito acompanha o sobe e desce das dezenas de morros que compõem a cidade, misturando estilos e épocas até não poder mais, vigiados pela bruma estacionada sobre o Pacífico. Fiquei com uma vontade danada de me enfiar por aqueles labirintos, onde, tenho certeza, encontraria coisas do arco da velha. Já aprendi que muitas cidades são senhoras discretas, só revelam seus segredos a quem os procura. Mas essa vida de turista programada não permite improvisar, então me submeto aos desígnios do tour, volto para a van e vou ver o relógio de flores e o moai de Viña del Mar.

Diga-se de passagem, em momento algum avistamos qualquer vestígio do terrível incêndio que há poucas semanas consumiu mais de três mil casas aqui. Dizem que foi num ponto voltado para outro lado, aonde a nossa correria não permite chegar.

Dá para notar rapidinho que Viña está para Valparaíso como a Barra para o Rio, ou seja, é um lugar construído para acolher os ricos que não queriam mais conviver com o furdunço ao lado, só que em escala bem menor, e o mesmo espírito de Miami.

Você não merece esta visita ridícula, Valparaíso. Prometo voltar e te fazer justiça.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

2 comentários:

Anônimo disse...

Lavoisier já dizia :"Na natureza nada se cria; nada se perde, tudo se . transforma". Então, completo : até Valparaiso .
Bjs da Mummy Dircim

Carlos Augusto Medeiros disse...

Seus textos estão cada vez melhores. Eu me senti na van, batendo papo com o "Japa". Abraços,
Carlos

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