No início dos anos 2000 dei cabo da minha biblioteca. Não eram estantes com livros frugais ou ganhos em festinhas de amigos-secretos. Era uma biblioteca de fina estampa. Com os clássicos, com os modernos consagrados, com os contemporâneos bem avaliados pela fortuna crítica.
Por décadas, eu a considerei o meu patrimônio. Tudo bem que eu não tivesse carro, lençóis de linho puro, bracelete de ouro. Eu tinha meus queridos livros. Para cada casa que eu mudava, a biblioteca ia junto. Só era um dissabor para os carregadores dos caminhões de mudança. Um deles praguejou: "Meu Jesus, para que tanto papel?"
Esses papéis encadernados eram meu orgulho. Alguém comentava sobre Pedro Páramo. Eu tinha. Em espanhol. Orlando da Virginia Woolf? Não apenas. Lá estavam as Ondas, Rumo ao Farol, Um teto todo seu, Mrs. Dalloway. O teatro de Martins Penna? Tinha a obra completa. Haicais? Lá estavam Bashô, Issa, Leminski, Alice Ruiz.
Meu amor pelas bibliotecas nasceu de uma perda. Em 1966, houve uma monumental enchente no Rio de Janeiro. Morávamos na Tijuca em frente ao rio Maracanã. Um rio pequeno que transbordou lama, pedras, geladeiras, bonecas e corpos. A água invadiu a casa, subiu três metros e transformou a biblioteca do meu avô, um tenentista morto em 1938, em páginas de lama.
Foram embora grandes livros. Alguns autografados. Entre eles, o Memórias do Cárcere. Graciliano Ramos e meu avô se conheceram na prisão, sob a ditadura de Getúlio Vargas. Para o lixão também foram volumes autografados do José Lins do Rego, da Eneida – essa maranhense tão boa quanto esquecida. Por fim perdeu-se um livro do próprio avô, o Ceará Colônia.
Algum tempo depois, nos meus treze anos, me tornei uma leitora obsessiva-compulsiva. Uma rata de páginas. Bastava ter letrinhas, eu as comia. Junto com o amor à leitura veio a paixão por colecionar livros. Minha biblioteca começou humilde. Em 1970, a Abril Cultural lançou a coleção Imortais da Literatura Universal. Eram tomos de capa vermelha com letras douradas.
Lembro que eu enchia a paciência da minha mãe para que comprasse semanalmente um livro da coleção. Nessa época, a grana da família era curta. Mas eu usava de veemente insistência. Consegui todos os títulos. Havia, é claro, a cumplicidade do meu pai. Ele também um leitor inveterado. Foi assim que conheci Dickens, Colette, Camus, Pirandello, Balzac, Flaubert, as Brontë e 43 mais.
Mudei de cidade. Mudei de hábitos. Mudei de computadores. Mudei de gêneros de escrita, mas segui colecionando livros. Sofistiquei a coisa. Criei estantes específicas para livros de cinema, teatro, ensaio, futebol, biografia, história. A literatura, então majoritária, ocupava as prateleiras mais nobres – nem muito altas, nem muito baixas.
Acumulei. Finalmente formei uma biblioteca digna do nome. Ficou até famosinha. Os mais chegados se referiam à biblioteca da Fê. A cada aniversário, a cada Bienal do Livro, a cada viagem eu aumentava o acervo. Até que num entardecer, no comecinho do século XXI, tive um siricutico. Chamei alguns amigos e distribui os livros. No espaço de dois dias, me desfiz de uma biblioteca montada volume a volume, década a década.
Num surto de lucidez, lampejei: não aguentava mais ter os monstros sagrados espiando, por cima dos meus ombros, as frases que eu construía na telinha do meu PC. Juro que ouvia o Machado de Assis rindo dos meus diálogos. Juro que via o Borges balançar negativamente a cabeça para os meus enredos. Sentia ao meu lado o espírito de Clarice Lispector sussurrando: não é assim.
Ora! Para eu ter a minha própria voz. Para eu eleger meus temas e minhas formas. Para escrever do meu jeito. Fosse torto, fosse reto, fosse tosco, fosse acabado, eu tinha que me libertar de todos eles. Tinha que abrir par em par as janelas e obrigá-los a partir. Só assim, eu me daria a chance de errar com alegria.
fernanda pompeu, escritora e redatora freelancer, colunista do Nota de Rodapé, escreve às quintas. Ilustração de Carvall, especial para o texto. Nossas crônicas voltam no 12 de janeiro de 2012. Um fabuloso ano novo para todos!
quinta-feira, 22 de dezembro de 2011
quarta-feira, 21 de dezembro de 2011
Notas sobre Praga
No avião meu pensamento era “Praga é indescritível”. Por n razões, acho que é mesmo. Aterrissamos no aeroporto Ruzyne por volta das 10h da manhã. Ao chegar a República Tcheca o primeiro estranhamento é sua moeda, a Coroa (ou Koruna, em tcheco).
O bilhete do aeroporto ao centro custava 32, saquei então 300 para toda a viagem. Engano ao qual percebi quando passei pela casa de câmbio: uma Libra equivale a 30 coroas. Ou seja, o dinheiro não vale nada, e passei toda a viagem fazendo cálculos difíceis (para minha cabeça de jornalista) a fim de descobrir quando as coisas realmente custavam.
O bilhete incluía ônibus e metrô até a estação aonde deveríamos descer. Nenhum dos dois tem catraca, como alguns outros países por aqui, apenas um pequeno poste para validar o tíquete.
Durante o percurso via ônibus vejo o orvalho pela grama e grades, mas minha esperança de ver neve não se confirmou. Nosso destino, Staromestská, no coração da cidade, de onde passamos pelo café Kafka até a praça central – ali estão a igreja de Nossa Senhora de Tyn e o relógio astronômico. Este está instalado numa torre de onde vê-se toda a cidade, e tive a sorte de subi-la num momento mágico de luz.
Outro ponto famoso é o castelo de Praga, numa encosta de onde é possível admirar a cidade e o rio Vltava. Meus pés quase congelaram com -1oC, todavia faria novamente todo o trajeto. Na verdade tal temperatura não é tão insuportável, apenas no dia seguinte troquei o casaco de dentro por um mais quente, coloquei duas meias e minha bermuda de dormir por baixo da calça.
A hospitalidade dos habitantes locais é inversamente proporcional às belezas da cidade. Aprendi três palavras para ser cordial, ahoj (oi), dekuji (obrigado) e prosím (por favor), que a recepcionista do hostel nos ensinou sem muita vontade.
Mesmo assim o atendimento não muda muito – em quaisquer estabelecimentos fui tratado como se estivesse pedindo um favor dificílimo de ser feito. Mesmo que quisesse apenas comprar um refrigerante. Não há supermercados, mas pequenos mercadinho estilo “de bairro”.
Ao comprar uma bolacha e verificar que me devolveram 100 coroas a menos, tentei polidamente requerer o montante. A mulher não somente olhou dentro da minha carteira para ver se não tinha dado a quantia certa como ao me entregar resmungou algo tipo “cai fora daqui”. Já a garçonete do café no castelo, questionada sobre quando custava um chocolate quente, respondeu-nos em tcheco, falou meia dúzia de coisas, trouxe a conta, disse mais um monte de palavras que não faço ideia e apenas compreendi “pay, pay, pay”.
Dois figuras no entanto foram muito gente-fina. Um, Richard, um angolano que entregava flyers de um restaurante e nos ajudou a encontrar o hostel. Ficou feliz ao ver que retornamos à noite ao seu restaurante para jantar; casado com uma tcheca e com dois filhos (cuja foto nos mostra no celular), fala um pouco de sua vida na República Tcheca.
O outro, Jan, encontramos no bistrô mánes (fiz uma foto em homenagem à manezada da ilha). Ele deve ter uns 60 anos, trabalha ali e em um restaurante, dois empregos numa cidade a qual considera cara. No mapa nos mostra um bom caminho para passear, além de sua casa.
Pergunto sobre um drinque local, ele sugere Becherovka. Seu inglês não é muito bom, entretanto se esforça para nos entender. Pelo que percebo, a bebida é feita com algum arbusto cultivado ao leste da República Tcheca. Saborosa.
Os Tchecos adoram vinho quente – algo muito similar ao nosso quentão. A propósito, a feira da praça central é praticamente uma festa junina, várias barraquinhas, palco, comilanças. Eles fazem um doce que lembra uma massa de croissant enrolada num cilindro metálico que fica assando na brasa, o ceske trdlo.
Também lombo suíno e uma espécie de nhoque sem molho, feito na chapa com cebola e bacon. Bem sem graça. A cerveja é Pilsner Urquell, bastante encorpada e saborosa. Impressionou-me também a quantidade de luvas perdidas pela rua, se juntasse todas teria uns quatro pares.
Dormi confortavelmente no aeroporto esperando o vôo das cinco da matina. E vi as duas policiais mais bonitas da minha vida, tentei tirar uma foto com ambas, sem sucesso. Realmente, Praga é inesquecível.
Pedro Mox, fotógrafo, especial para o NR
A faxina urgente e necessária
O ano de 2012 oferece ao eleitor brasileiro, ao eleitor paulista e ao paulistano em particular, a excelente oportunidade de iniciar uma providencial e necessária faxina no governo da cidade de São Paulo.
E em 2014 no Palácio dos Bandeirantes, desalojando a gestão incompetente que lá está há quase vinte anos.
Confrontada com a sua indigência programática e com as sucessivas derrotas eleitorais nos últimos dez anos no plano federal, a atual oposição brasileira, aquela que majoritariamente se abriga sob as siglas do PSDB, DEM, PPS e agora do noviço PSD, cuja hipócrita defesa da alternância do poder não leva em consideração quando se trata de seus próprios interesses, tem que ser derrotada no Estado de São Paulo, sob o risco de o estado continuar a servir de estorvo ao espírito progressista assumido pelo país nos últimos anos. Tanto na capital em 2012, como no governo estadual em 2014.
E por quê? Pela simples razão de que essa oposição representa um perigo para o modelo desenvolvimentista brasileiro, para a soberania do país e para a própria democracia.
Começaria aí o verdadeiro sentido da faxina, quer do ponto de vista da alternância do poder, como tanto defendem em nível federal, quer do ponto de vista ético, com o desmonte de uma engrenagem viciada, com a limpeza das inúmeras falcatruas domésticas no estado, quando dezenas de CPIs são engavetadas na assembléia estadual e ignoradas pela mídia e que fariam destampar de vez o caldeirão do cinismo e da hipocrisia daqueles que já não têm alternativas a oferecer ao novo Brasil, a não ser as da sua própria incompetência.
Como afirmou o jornalista Mino Carta em recente simpósio em Salvador, “São Paulo é o estado mais reacionário da federação”. Sempre foi, aliás. Não há aqui o que contestar. Desde as famosas marchas em 1964 para não irmos mais atrás à História pátria, São Paulo continua sendo o depositário maior do espírito da Casa Grande em detrimento da Senzala.
Provas da afirmação do jornalista, a qual endosso, vão se acumulando no dia a dia da política brasileira, ganhando patamares perigosos para o próprio exercício da democracia, repito, mesmo que ainda incipiente e tutelada, após os anos de ditadura.
Quartel da direita
É em São Paulo que se localiza o quartel general da direita brasileira, aquela que representa de fato o atraso, a submissão a interesses estrangeiros, aquela que não perde a sua formação aculturada, o seu preconceito contra pobres, negros e nordestinos, por exemplo.
Aquela que morde o próprio cotovelo de inveja ao não querer reconhecer que um metalúrgico sem diploma universitário, sem plumas e paetês, tirou o país da condição de devedor passando-o a emprestador internacional. Oposição no mais puro estilo quinta coluna.
É em São Paulo também que se localiza o centro mais reacionário da mídia corporativa que diariamente apostou suas fichas contra o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante oito anos e agora continua a apostar contra o governo da presidenta Dilma Roussef na esperança de que possa encontrar motivos políticos para enfraquecê-la e preparar o terreno onde, numa eventual regresso ao governo federal, façam o Brasil voltar ao mercado de negócios e interesse escusos em que transformaram o país enquanto governaram, bem como o Estado de São Paulo que governam há anos e agora a capital do estado.
Tal qual na mitologia grega, o eleitor paulista entre outros tem que fazer um dos trabalhos de Hércules e ir cortando as cabeças da Hidra, tantos anos ignorada, e que insiste em renascer sob novos disfarces. Uma dessas cabeças, talvez a mais perigosa, reúne jornais, revistas e emissoras de televisão.
Seu centro criativo e ideológico está em São Paulo, onde editoriais e jornalistas de aluguel destilam seus preconceitos ideológicos e sociais com o apoio do setor rentista, de grandes agências de publicidade, bancos, latifúndios muitos deles grilados, sucursais de empresas multinacionais, cujos interesses defendem sem qualquer escrúpulo e com a aceitação a conivência de grandes setores de uma classe média fascista.
A promiscuidade desses atores do espectro econômico com seus representantes nas câmeras de vereadores, assembléias estaduais e principalmente em Brasília, por meio de lobbies com polpudas verbas nos bolsos vai, a cada ano que passa, transformando São Paulo numa peça cada vez mais encardida e rançosa no mapa político do país nesse início de século XXI, com o arcabouço administrativo da cidade e do estado engessado pela concepção econômica neoliberal e pela mesmice de quadros políticos que têm um olho político em nosso passado ditatorial e outro, econômico, na possibilidade de amealhar grandes fortunas no uso de tecnologias do futuro e não só, num jogo que beneficia os governantes de plantão e os seus apaniguados mais próximos.
Nesse audacioso jogo de assalto ao patrimônio público, onde o exercício da política quase que anula a procura pelo bem estar da coletividade, não é difícil enxergar, cada vez com maior nitidez os fios trançados entre os já nem tanto obscuros interesses econômicos e políticos da imprensa das quatro famílias (Marinhos, Civitas, Mesquitas e Frias), onde não se descarta sempre a possibilidade de um hipotético, mas não de todo imprevisível golpe de estado, não aquele tradicional com soldados na rua, fechamento do Congresso, toques de recolher etc., mas um golpe que, sob certo aspecto, é mais perverso: o da desinformação, quando não da repetição pura e simples de uma suposição, de uma acusação irresponsável ou mesmo de uma mentira.
Privataria tucana
Nesse aspecto, o impressionante e minucioso relato contido no livro A Privataria Tucana do jornalista Amaury Ribeiro Jr. não deixa dúvidas quanto à necessidade do eleitor paulista e paulistano darem início àquela que seria a verdadeira e necessária faxina para que o país iniciasse nova jornada de recuperação ética.
Arrumar a casa em São Paulo e dar o exemplo para o resto do país, pois o denuncismo seletivo e irresponsável que emana de certas redações paulistas recebeu agora um duro golpe, pois aqui não se trata de denúncia sem provas.
São tantas as denúncias de práticas criminosas nos anos 90 que fica difícil escolher qual a mais impressionante. Contudo, é curioso ver que os principais beneficiários, econômicos e políticos, são paulistas, o que não vem a ser exatamente uma coincidência, mas um jogo perverso pela manutenção do poder político, e o pior deles: o poder de assaltar o patrimônio público.
No meu entender, o eleitor paulista e paulistano têm o dever de fazer uma mudança ética e política das mais rigorosas no Palácio dos Bandeirantes e na Prefeitura da Capital, devolvendo o Estado de São Paulo ao leito do novo país que começa a se erguer na América Latina e no mundo. Não se trata de comparar corrupções onde as houver, mas de combatê-las com o rigor da lei quando provadas.
E provas não faltam no livro citado, provavelmente, a mãe de todas as corrupções entre nós nos últimos anos pós-ditadura. Nada mal que se pense numa CPI da Privataria, pois além dela convocar – com toda certeza – a juízo público os principais personagens da dilapidação de grande fatia da riqueza nacional para que expliquem o que fizeram, é muito provável que surjam sólidos motivos jurídicos para se pensar em uma ação de recuperação para o Estado de uma empresa como a Vale, por exemplo.
Isso sem falar na necessidade de se estabelecer maior rigor na defesa de nossa soberania e na urgente reforma da Lei de Imprensa. Com a palavra o Brasil progressista e genuinamente democrático.
Izaías Almada, dramaturgo, escritor, colunista do NR. A coluna faz uma pausa e volta em 2012.
E em 2014 no Palácio dos Bandeirantes, desalojando a gestão incompetente que lá está há quase vinte anos.
Confrontada com a sua indigência programática e com as sucessivas derrotas eleitorais nos últimos dez anos no plano federal, a atual oposição brasileira, aquela que majoritariamente se abriga sob as siglas do PSDB, DEM, PPS e agora do noviço PSD, cuja hipócrita defesa da alternância do poder não leva em consideração quando se trata de seus próprios interesses, tem que ser derrotada no Estado de São Paulo, sob o risco de o estado continuar a servir de estorvo ao espírito progressista assumido pelo país nos últimos anos. Tanto na capital em 2012, como no governo estadual em 2014.
E por quê? Pela simples razão de que essa oposição representa um perigo para o modelo desenvolvimentista brasileiro, para a soberania do país e para a própria democracia.
Começaria aí o verdadeiro sentido da faxina, quer do ponto de vista da alternância do poder, como tanto defendem em nível federal, quer do ponto de vista ético, com o desmonte de uma engrenagem viciada, com a limpeza das inúmeras falcatruas domésticas no estado, quando dezenas de CPIs são engavetadas na assembléia estadual e ignoradas pela mídia e que fariam destampar de vez o caldeirão do cinismo e da hipocrisia daqueles que já não têm alternativas a oferecer ao novo Brasil, a não ser as da sua própria incompetência.
Como afirmou o jornalista Mino Carta em recente simpósio em Salvador, “São Paulo é o estado mais reacionário da federação”. Sempre foi, aliás. Não há aqui o que contestar. Desde as famosas marchas em 1964 para não irmos mais atrás à História pátria, São Paulo continua sendo o depositário maior do espírito da Casa Grande em detrimento da Senzala.
Provas da afirmação do jornalista, a qual endosso, vão se acumulando no dia a dia da política brasileira, ganhando patamares perigosos para o próprio exercício da democracia, repito, mesmo que ainda incipiente e tutelada, após os anos de ditadura.
Quartel da direita
É em São Paulo que se localiza o quartel general da direita brasileira, aquela que representa de fato o atraso, a submissão a interesses estrangeiros, aquela que não perde a sua formação aculturada, o seu preconceito contra pobres, negros e nordestinos, por exemplo.
Aquela que morde o próprio cotovelo de inveja ao não querer reconhecer que um metalúrgico sem diploma universitário, sem plumas e paetês, tirou o país da condição de devedor passando-o a emprestador internacional. Oposição no mais puro estilo quinta coluna.
É em São Paulo também que se localiza o centro mais reacionário da mídia corporativa que diariamente apostou suas fichas contra o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante oito anos e agora continua a apostar contra o governo da presidenta Dilma Roussef na esperança de que possa encontrar motivos políticos para enfraquecê-la e preparar o terreno onde, numa eventual regresso ao governo federal, façam o Brasil voltar ao mercado de negócios e interesse escusos em que transformaram o país enquanto governaram, bem como o Estado de São Paulo que governam há anos e agora a capital do estado.
Tal qual na mitologia grega, o eleitor paulista entre outros tem que fazer um dos trabalhos de Hércules e ir cortando as cabeças da Hidra, tantos anos ignorada, e que insiste em renascer sob novos disfarces. Uma dessas cabeças, talvez a mais perigosa, reúne jornais, revistas e emissoras de televisão.
Seu centro criativo e ideológico está em São Paulo, onde editoriais e jornalistas de aluguel destilam seus preconceitos ideológicos e sociais com o apoio do setor rentista, de grandes agências de publicidade, bancos, latifúndios muitos deles grilados, sucursais de empresas multinacionais, cujos interesses defendem sem qualquer escrúpulo e com a aceitação a conivência de grandes setores de uma classe média fascista.
A promiscuidade desses atores do espectro econômico com seus representantes nas câmeras de vereadores, assembléias estaduais e principalmente em Brasília, por meio de lobbies com polpudas verbas nos bolsos vai, a cada ano que passa, transformando São Paulo numa peça cada vez mais encardida e rançosa no mapa político do país nesse início de século XXI, com o arcabouço administrativo da cidade e do estado engessado pela concepção econômica neoliberal e pela mesmice de quadros políticos que têm um olho político em nosso passado ditatorial e outro, econômico, na possibilidade de amealhar grandes fortunas no uso de tecnologias do futuro e não só, num jogo que beneficia os governantes de plantão e os seus apaniguados mais próximos.
Nesse audacioso jogo de assalto ao patrimônio público, onde o exercício da política quase que anula a procura pelo bem estar da coletividade, não é difícil enxergar, cada vez com maior nitidez os fios trançados entre os já nem tanto obscuros interesses econômicos e políticos da imprensa das quatro famílias (Marinhos, Civitas, Mesquitas e Frias), onde não se descarta sempre a possibilidade de um hipotético, mas não de todo imprevisível golpe de estado, não aquele tradicional com soldados na rua, fechamento do Congresso, toques de recolher etc., mas um golpe que, sob certo aspecto, é mais perverso: o da desinformação, quando não da repetição pura e simples de uma suposição, de uma acusação irresponsável ou mesmo de uma mentira.
Privataria tucana
Nesse aspecto, o impressionante e minucioso relato contido no livro A Privataria Tucana do jornalista Amaury Ribeiro Jr. não deixa dúvidas quanto à necessidade do eleitor paulista e paulistano darem início àquela que seria a verdadeira e necessária faxina para que o país iniciasse nova jornada de recuperação ética.
Arrumar a casa em São Paulo e dar o exemplo para o resto do país, pois o denuncismo seletivo e irresponsável que emana de certas redações paulistas recebeu agora um duro golpe, pois aqui não se trata de denúncia sem provas.
São tantas as denúncias de práticas criminosas nos anos 90 que fica difícil escolher qual a mais impressionante. Contudo, é curioso ver que os principais beneficiários, econômicos e políticos, são paulistas, o que não vem a ser exatamente uma coincidência, mas um jogo perverso pela manutenção do poder político, e o pior deles: o poder de assaltar o patrimônio público.
No meu entender, o eleitor paulista e paulistano têm o dever de fazer uma mudança ética e política das mais rigorosas no Palácio dos Bandeirantes e na Prefeitura da Capital, devolvendo o Estado de São Paulo ao leito do novo país que começa a se erguer na América Latina e no mundo. Não se trata de comparar corrupções onde as houver, mas de combatê-las com o rigor da lei quando provadas.
E provas não faltam no livro citado, provavelmente, a mãe de todas as corrupções entre nós nos últimos anos pós-ditadura. Nada mal que se pense numa CPI da Privataria, pois além dela convocar – com toda certeza – a juízo público os principais personagens da dilapidação de grande fatia da riqueza nacional para que expliquem o que fizeram, é muito provável que surjam sólidos motivos jurídicos para se pensar em uma ação de recuperação para o Estado de uma empresa como a Vale, por exemplo.
Isso sem falar na necessidade de se estabelecer maior rigor na defesa de nossa soberania e na urgente reforma da Lei de Imprensa. Com a palavra o Brasil progressista e genuinamente democrático.
Izaías Almada, dramaturgo, escritor, colunista do NR. A coluna faz uma pausa e volta em 2012.
Marcadores:
debate político,
eleições,
izaías almada,
livros,
Opinião,
pensando alto,
Política
segunda-feira, 19 de dezembro de 2011
Notas de amor
Gustavo e Ana jogam um jogo que só ele gosta e domina.
Gustavo esconde bilhetes nos lugares mais improváveis – como dentro de um maço de cigarros ou no porta-luvas do carro de Ana – na esperança de que ela os encontre e o ame um pouco mais.
O problema é que Ana não tem sensibilidade (é o que diz Gustavo) para entender quando e onde procurar pelas notas de amor. Mesmo com as pistas, é comum acontecer dela não encontrar um bilhete e acaba por jogar fora, por exemplo, um pedacinho de papel que dizia “quer passar o fim de semana na praia?”.
Também acontece dela achar a mensagem, mas não entender o teor. Se é uma poesia, invariavelmente ela pergunta a Gustavo sobre o significado, e isso faz com que ele se questione se quer passar a vida com alguém incapaz de compreender Fernando Pessoa.
Ana até se esforça para participar do jogo, mas é uma tarefa difícil. Primeiro, porque acha a brincadeira boba, infantil. Segundo, porque exige muito esforço para um resultado previsível (assim ela pensa).
Às amigas, ela se queixa de que Gustavo a ama em demasia ou “diz que ama”. Cada vez que encontra um bilhete escrito “te amo” ou “você me faz feliz”, Ana se questiona se quer passar a vida toda ao lado de alguém incapaz de entender o peso da palavra amor.
O sonho de Gustavo é de um dia encontrar, quem sabe na caixa dos seus óculos escuros ou embaixo do vidro de perfume, uma notinha dizendo “te amo, você me faz feliz”. Mas isso nunca vai acontecer, pelo menos com Ana. Ela não gosta da brincadeira dos bilhetes e é totalmente contra a banalização do amor.
Ricardo Viel escreve às segundas no NR e no Purgatório. A coluna faz uma pausa e volta em janeiro de 2012.
Gustavo esconde bilhetes nos lugares mais improváveis – como dentro de um maço de cigarros ou no porta-luvas do carro de Ana – na esperança de que ela os encontre e o ame um pouco mais.
O problema é que Ana não tem sensibilidade (é o que diz Gustavo) para entender quando e onde procurar pelas notas de amor. Mesmo com as pistas, é comum acontecer dela não encontrar um bilhete e acaba por jogar fora, por exemplo, um pedacinho de papel que dizia “quer passar o fim de semana na praia?”.
Também acontece dela achar a mensagem, mas não entender o teor. Se é uma poesia, invariavelmente ela pergunta a Gustavo sobre o significado, e isso faz com que ele se questione se quer passar a vida com alguém incapaz de compreender Fernando Pessoa.
Ana até se esforça para participar do jogo, mas é uma tarefa difícil. Primeiro, porque acha a brincadeira boba, infantil. Segundo, porque exige muito esforço para um resultado previsível (assim ela pensa).
Às amigas, ela se queixa de que Gustavo a ama em demasia ou “diz que ama”. Cada vez que encontra um bilhete escrito “te amo” ou “você me faz feliz”, Ana se questiona se quer passar a vida toda ao lado de alguém incapaz de entender o peso da palavra amor.
O sonho de Gustavo é de um dia encontrar, quem sabe na caixa dos seus óculos escuros ou embaixo do vidro de perfume, uma notinha dizendo “te amo, você me faz feliz”. Mas isso nunca vai acontecer, pelo menos com Ana. Ela não gosta da brincadeira dos bilhetes e é totalmente contra a banalização do amor.
Ricardo Viel escreve às segundas no NR e no Purgatório. A coluna faz uma pausa e volta em janeiro de 2012.
sexta-feira, 16 de dezembro de 2011
A espera de um milagre
O desabafo de uma mãe que tem um filho usuário de crack. Me escreveu: “Me sinto perdida, agora escurece e estou aqui, olhando meu filho dormir sob efeito de remédios e de crack.”
Talvez fosse mais uma destas curiosas misturas linguísticas tão comuns na cultura brasileira, onde se nomeiam os filhos a partir de uma junção simples do nome do pai com o nome da mãe.
Mãe Aline, morena de pele escura e fala agitada, o Pai, Sinval, respeitado jogador de truco do bairro das lamentações. Ou quem sabe seria apenas uma adaptação de um nome francês ou inglês. O fato é que Sinvaline bateu a minha porta virtual no início dessa semana.
Acabo de voltar de férias e ao conferir meu correio eletrônico me deparo com uma inesperada e triste surpresa. Minhas imagens haviam provocado lágrimas em uma mãe sofredora. O motivo? A principal epidemia contemporânea, o Crack, batera a sua porta e se alastrará no coração de seu filho.
[clique para ampliar as imagens] |
“Olá, me deparei com suas fotos tentando aliviar a dor de uma noite de terror. Escrevi, fotografei as mazelas da miséria humana e essa noite eu estive de frente com o crack dentro da minha casa. Meu filho, alucinado, olhos virados, nem me via…. E aí? O Vício não tem cura, eu não tenho o que fazer… abraços.”
Aprendi com o mestre Robert Capa a célebre frase: “Se a foto não ficou boa o suficiente, é porque você não estava próximo o suficiente do objeto” ou algo parecido. A proximidade implica em se relacionar, em se abrir para o novo, em trocar seja lá o que for.
Quando se opta por fotografar determinado tema com uma grande angular escancarando a realidade, interagindo com a situação, os resultados são viscerais e autênticos. O Crack sempre me intrigou, me fez conhecer muitos usuários e viver o mundo assombrado destas pessoas atormentadas pelo vício.
Os efeitos do uso para a saúde, como bem se sabe, são devastadores, mas é o sofrimento subjetivo das famílias que choca o pensamento de quem olha de perto este problema. Uma sopa insalubre de sentimentos negativos inunda o coração de Sinvaline.
Eu me disponho a ser seu confidente, seu amigo virtual para as horas de tentativa de consolo, porque a dor que ela sente, só uma mãe nessa condição pode sentir.
“Ajudar? O que você poderia fazer? Me sinto perdida, agora escurece e estou aqui, olhando meu filho dormir sob efeito de remédios e de crack.”
Esperança já se torna uma sentimento abstrato, tão distante quanto o planeta Marte. O novo programa de Combate ao Crack, lançado na semana passada pelo governo federal, prevê uma série de ações na tentativa de estancar a epidemia. Consultas ao ar livre e internações involuntárias fazem parte desta medida. Mas os efeitos sociais causados pela droga ainda estão longe de serem conhecidos. O que se sabe de fato, é o seu imenso poder de destruição familiar e individual.
“Desculpe se o importuno… A visão é turva pela tristeza, a impotência baixa o semblante, nada tem sentido agora. São muitos anos de luta, uma vida de sentimentos tristes, alegres e na maioria de muito trabalho. Uma corrida contra o nada. Quando nasce, só se sabe que irá morrer um dia, o resto é incerteza. A certeza de agora é um mundo enorme e nossa pequenez. A mulher forte se abate diante da fumaça que turva tudo. Sorrir como? Tudo se esvai aos poucos, o corpo, a mente, a esperança… Refém de situações alheias, uma prisão com grandes ferrolhos. O Relógio bate, a noite vai passando, os gemidos se fazem maiores até que o clarão do dia nasce amarelo e triste. No quintal, as árvores crescem, a terra coberta de folhas secas. Na rua, o asfalto cheio de lixo, crianças, cavalos, cachorros, mendigos, engraxates são vítimas do descaso social. E aqui, no fundo de casa, somos vítimas em sucessão de um todo desigual. Abraços e obrigada.”
Quando o estado se ausenta de suas funções: sociais, sanitárias e educacionais, o fundo do poço parece estar cada vez mais próximo das pessoas, em especiais, as desfavorecidas economicamente. A solidão e o desamparo tomam suas personalidades.
Victor Moriyama, 26 anos, é repórter fotográfico do Jornal O Vale, em São José dos Campos, cidade que reside atualmente. Mantém a coluna Fotógrafo-escreve no NR.
quinta-feira, 15 de dezembro de 2011
As notícias em Lego
O casamento real inglês; a morte de Osama bin Laden, a revolta dos jovens ingleses; a queda de Gaddafi. Eis alguns fatos retrospectivos dos últimos 12 meses criados em Lego – o brinquedo – e postados nas páginas do Guardian.co.uk.
Abaixo, a foto e a montagem em Lego da equipe de Obama vendo a captura e morte de Osama. Para ver as outras, clique aqui.
Abaixo, a foto e a montagem em Lego da equipe de Obama vendo a captura e morte de Osama. Para ver as outras, clique aqui.
Devemos tanto a ela
Qual a década de sua estimação? Para a maioria das pessoas, a década escolhida é aquela que as encontrou na juventude. Fácil de entender. Na mocidade estamos com os poros, os hormônios e a percepção tinindo. É um venha a mim o mundo, e eu o receberei com o corpo e o coração abertos.
Se o século XX fosse uma pessoa, qual seria a década da juventude dele? Arrisco todas as minhas fichas nos anos 1960. Pois eles semearam tantas e tão importantes mudanças, que a sociedade globalizada, mesmo sem lhe dar os créditos, ainda colhe de sua cultura e bebe do seu leite.
É claro que não havia internet, nem redes sociais, nem portais, nem blogs. Mas, curiosamente, foi a década dos encontros e dos enredos. Década das comunidades hippies que, embaladas na deliciosa utopia do "paz e amor", fumaram muita marijuana e inalaram quilos de incenso de patchouli. Mas não só isso. Também experimentaram o sexo livre e a moradia compartilhada.
Os 60 foram os anos, por excelência, do rock. Tendo como símbolo os Beatles. Aliás, os garotos de Liverpool começaram no iniciozinho dos 60 e se dissolveram no último ano da década. Quem achasse eles caretinhas, podia mudar a estação para a irreverência dos Rolling Stones ou para a loucura agridoce de Janis Joplin e Jimi Hendrix. Todos a cara dos 60.
Mas a década não sobreviveu só de Woodstock, ácido lisérgico, cinema, sandálias de dedo, teatro, granola, literatura e panfletos mimeografados. Ela também foi a mais vigorosa para os movimentos pelos direitos civis e estudantil.
Lembrem-se das manifestações de Maio de 68. Cabeludos e cabeludas fazendo barricadas no centro de Paris e cunhando slogans maravilhosos como "A imaginação no poder", "É proibido proibir". E o magnífico: "Somos todos judeus alemães".
Certamente vieram os contragolpes. Na cidade do México, em plena Plaza de Las Tres Culturas, o exército e a polícia abriram fogo contra milhares de estudantes e trabalhadores, deixando o saldo de centenas de mortos e feridos. Nos Estados Unidos, em Memphis, o pastor negro Martin Luther King foi abatido com um tiro de rifle.
Aqui, na graciosa Pindorama, os anos 60 ofertaram luzes e sombras. No primeiro de abril de 1964, os militares deram uma rasteira na democracia e sentaram as botas no poder por mais de duas décadas. Os bem-pensantes reagiram. Os estudantes foram às ruas, culminando na famosa Passeata dos 100 Mil no coração do Rio de Janeiro.
A truculência derrubou o avião da história, no 13 de dezembro de 1968, com a decretação do AI-5. Todos os poderes ao ditador de plantão. Fechamento do Congresso Nacional. Suspensão do habeas corpus. Prisão, tortura e morte para os opositores. Instauração da censura à imprensa, à música, ao teatro, ao cinema, aos livros, ao rádio e à televisão.
Também teve muito brilho: a revista Realidade com suas primorosas, e até hoje inigualáveis, fotografias e reportagens. O Tropicalismo refrescando a música brasileira. O Cinema Novo desequilibrando a câmera e a estética vigente. Os teatros Arena, Opinião, Oficina. Os festivais de música arregalando a audição do público.
Houvesse um título para décadas, a de 60 ganharia o de Década da Contracultura. Pois nunca tanta gente, de variadas formas, desafiou com tamanha paixão o sistema político-econômico e o autoritarismo das instituições, entre elas, a família e a Igreja Católica.
Agora, passado largo tempo, fazendo um balanço despretensioso, creio que o mais revolucionário dos anos 60 foram a comercialização da pílula anticoncepcional libertando as mulheres da fatalidade da gravidez, tornando-a uma escolha. E a revelação de que a única canoa que não fura é aquela feita pela madeira da diversidade.
fernanda pompeu, escritora e redatora freelancer, colunista do Nota de Rodapé, escreve às quintas. Ilustração de Carvall, especial para o texto.
Marcadores:
carvall,
cronetas,
cronicas,
garatujas,
ilustração,
observatorio da esquina
quarta-feira, 14 de dezembro de 2011
Hoje não tem crônica
Fiquei acordado até tarde da noite à procura, num tomo grosso entre os que ultimamente ando me atrevendo a ter, de um final para esta minha primeira crônica no Nota de Rodapé – delicada trincheira de bom jornalismo com a qual passo a colaborar mensalmente cheio de imensas alegria e honra.
Pois preguei as pestanas crente de ter achado o dito cujo – qual seria uma fala do inesgotável Gabriel García Márquez. Mas cometi o pecado de não ter marcado a página onde creio ter achado a citação, de modo que já se vão duas horas que folheio, sem nem encontrar rastro dela, as 768 páginas do compêndio de suas Crônicas. Portanto, em não havendo final, convém que não haja crônica.
Uma pena, porque havia já há um par de semanas definido que começaria recordando uma outra, de Fernando Sabino, e daí passado a empreender uma colagem mental de meia dúzia de outras referências esparsas e desorganizadas sobre o assunto. Urdida, quem sabe tivesse ficado bonita.
Começaria, como disse, lembrando a crônica de Sabino intitulada “Aqueles alegres rapazes da imprensa”. Era assim que Joel Silveira se referia à geração de Sabino, lá por volta dos anos 40. “Com isso se referia não tanto à nossa condição de jornalistas, ou à nossa mocidade, mas à alegria com que exercíamos a profissão: uma alegria de amadores.”
Falaria de minha comoção ao saber, por Sabino, que sim houve tempos em que “a redação do jornal era o abrigo natural para quem tivesse vocação (ou simples veleidade) literária”.
Tempos em que eram raros nas redações os que não cultivavam, em paralelo à de jornalista, outra atividade – fala-se em teatrólogos, poetas, contistas, romancistas, ensaístas, músicos e por aí vai.
Tempos trocados por outros, por esses tempos de hoje do “espírito do jornalismo moderno, ou seja, uma profissão cujo exercício não exige apenas que se saiba escrever (condição às vezes até dispensável), mas para a qual hoje em dia se tira diploma em cursos especializados nas universidades e que não tem mais nada a ver com a literatura”.
Anotaria, citando ainda Sabino, que naqueles tempos havia dois caminhos para quem começava numa redação: o da notícia, voltado para grandes apurações e off the records, denúncias e certo envolvimento mais direto com política até; e o da crônica assinada. “Quem quisesse ser escritor, ia para as colunas assinadas, recebendo como simples colaborador. A única condição exigida em ambos os casos era a de saber escrever. Frequentemente fazíamos uma coisa e outra”, até que uma das duas falasse mais alto.
Endossaria então, com certa veemência, a fala de Sabino, pelo difícil que se tornou hoje, num jornal, ler quiçá um texto bem escrito. Pelo impossível que virou hoje, num jornal, viver da função de cronista.
Coluna parece que virou sinônimo de grife: para ter uma tem que ser selado, registrado, carimbado, avaliado, rotulado se quiser voar. Começar no jornalismo pela via da crônica, hoje nem mais isso existe – virou pretensão imberbe, audácia de principiante.
Salvo se o candidato for tetradiplomado aos 22 anos, ou tiver pai famoso, ou for membro de alguma patota, ou tiver bombando no twitter e no face, ou (mas aí já é coisa mais rara) for amigo do filho do dono, talvez filho de um amigo dele.
E sustentaria que me questiono sinceramente sobre se, nas condições em que atualmente nascem os jornalistas, teria o jornalismo parido um Rubem Braga da vida.
Cronista desde os dezesseis ou dezessete anos, o Velho Braga provavelmente não teria encontrado hoje espaço para forjar logo cedo seu ofício da vida toda.
Citaria o próprio, na emenda: “O cronista de jornal é como o cigano que toda noite arma sua tenda e pela manhã a desmancha, e vai”, diz em sua crônica “Manifesto”, à guisa de estabelecer a diferença entre cronistas e escritores “que fazem livros que são verdadeiras casas, e ficam”.
Alertaria para a modéstia de Rubem – na verdade, a do Velho Braga, personagem de si mesmo que emerge da vastidão solitária de suas crônicas, “obra que talvez se conte entre as poucas de lugar assegurado na literatura brasileira contemporânea”, para encerrar com Sabino.
Lembraria que a modéstia não é só de Rubem, mas traço dos grandes cronistas. Feito a de Stanislaw Ponte Preta (ou Sérgio Porto, nunca sei quem criou quem).
E reproduziria, conduzindo descaradamente o leitor no rumo de minha tese, uma nota de rodapé de seu “Perfil da Tia Zulmira”: “Certa vez um cronista mundano, para valorizar as próprias besteiras, disse que Proust, antes de ser Proust, foi cronista mundano. Tia Zulmira gozou a coisa, dizendo que Lincoln também foi lenhador e, depois dele, nenhum outro lenhador conseguiu se eleger presidente da República.”
Já pensando em concluir, lamentaria a falta que faz a boa crônica, bem franca e desabrida, provocado pelo que afirma Fabiana Moraes, jornalista e socióloga, em sua colaboração para o número de novembro de “Pernambuco”, suplemento literário da ótima revista “Continente”.
Atenta aos avanços de certo “jornalismo da lareira”, feito para agradar o leitor de maneira, digamos, cuti-cuti, ela questiona “uma profissão que hoje parece se dirigir muito mais a um consumidor/espectador, e não a um leitor que pode reorganizar suas práticas a partir do que está escrito – inclusive questionando o que está colocado”.
E indagaria, sorrateiro: “Será por falta (crônica) de crônica?” Ciente de que o espaço é sempre mais curto que a compridez do assunto – regra de ouro, aliás, da boa crônica –, apressaria um arremate. Entraria justo aqui o trecho de García Márquez que achei ontem e perdi hoje.
Folheando, vi até outros bons, inclusive um bonito em que ele diz que o objetivo de suas crônicas para jornal – com as quais começou a ganhar a vida aos vinte – é “que sempre estejam bem escritas (…), pois sempre acreditei que a boa escrita é a única felicidade que se basta a si mesma”.
Mas esse trecho não serve. Queria mesmo era um pezinho de página preciso em que ele diz que não entende o porquê de se fazer hoje em dia, via de regra, jornalismo com tanta pressa e tão parcas inteligência, criatividade, alegria. E transcreveria o par de linhas em que ele diz que preferia o tempo em que se fazia jornalismo para se falar de como são as pessoas.
Azar o meu de não ter marcado a página – crônica é assim, coisa ligeira: se não fisgar direito, foge da gente, que nem peixe querendo voltar pra dentro d’água.
Ou quem sabe aquele trecho nem exista, e talvez eu o tenha sonhado. E então, nesse caso, minha crônica perderia o sentido – razão pela qual a de hoje vou-lhes ficar devendo.
Ricardo Sangiovanni, jornalista, coordena o blog O Purgatório e estreia hoje no NR a coluna Mistério do Planeta, com um texto mensal toda primeira quarta-feira do mês corrente.
Pois preguei as pestanas crente de ter achado o dito cujo – qual seria uma fala do inesgotável Gabriel García Márquez. Mas cometi o pecado de não ter marcado a página onde creio ter achado a citação, de modo que já se vão duas horas que folheio, sem nem encontrar rastro dela, as 768 páginas do compêndio de suas Crônicas. Portanto, em não havendo final, convém que não haja crônica.
Uma pena, porque havia já há um par de semanas definido que começaria recordando uma outra, de Fernando Sabino, e daí passado a empreender uma colagem mental de meia dúzia de outras referências esparsas e desorganizadas sobre o assunto. Urdida, quem sabe tivesse ficado bonita.
Começaria, como disse, lembrando a crônica de Sabino intitulada “Aqueles alegres rapazes da imprensa”. Era assim que Joel Silveira se referia à geração de Sabino, lá por volta dos anos 40. “Com isso se referia não tanto à nossa condição de jornalistas, ou à nossa mocidade, mas à alegria com que exercíamos a profissão: uma alegria de amadores.”
Anos 60: da esquerda, em pé: Paulo Mendes Campos, Rubem Braga, Fernando Sabino e José Carlos de Oliveira; sentados: Vinicius de Moraes, Sérgio Porto e Chico |
Tempos em que eram raros nas redações os que não cultivavam, em paralelo à de jornalista, outra atividade – fala-se em teatrólogos, poetas, contistas, romancistas, ensaístas, músicos e por aí vai.
Tempos trocados por outros, por esses tempos de hoje do “espírito do jornalismo moderno, ou seja, uma profissão cujo exercício não exige apenas que se saiba escrever (condição às vezes até dispensável), mas para a qual hoje em dia se tira diploma em cursos especializados nas universidades e que não tem mais nada a ver com a literatura”.
Anotaria, citando ainda Sabino, que naqueles tempos havia dois caminhos para quem começava numa redação: o da notícia, voltado para grandes apurações e off the records, denúncias e certo envolvimento mais direto com política até; e o da crônica assinada. “Quem quisesse ser escritor, ia para as colunas assinadas, recebendo como simples colaborador. A única condição exigida em ambos os casos era a de saber escrever. Frequentemente fazíamos uma coisa e outra”, até que uma das duas falasse mais alto.
Endossaria então, com certa veemência, a fala de Sabino, pelo difícil que se tornou hoje, num jornal, ler quiçá um texto bem escrito. Pelo impossível que virou hoje, num jornal, viver da função de cronista.
Coluna parece que virou sinônimo de grife: para ter uma tem que ser selado, registrado, carimbado, avaliado, rotulado se quiser voar. Começar no jornalismo pela via da crônica, hoje nem mais isso existe – virou pretensão imberbe, audácia de principiante.
Salvo se o candidato for tetradiplomado aos 22 anos, ou tiver pai famoso, ou for membro de alguma patota, ou tiver bombando no twitter e no face, ou (mas aí já é coisa mais rara) for amigo do filho do dono, talvez filho de um amigo dele.
Gabo : “sempre acreditei que a boa escrita é a única felicidade que se basta a si mesma”. |
Cronista desde os dezesseis ou dezessete anos, o Velho Braga provavelmente não teria encontrado hoje espaço para forjar logo cedo seu ofício da vida toda.
Citaria o próprio, na emenda: “O cronista de jornal é como o cigano que toda noite arma sua tenda e pela manhã a desmancha, e vai”, diz em sua crônica “Manifesto”, à guisa de estabelecer a diferença entre cronistas e escritores “que fazem livros que são verdadeiras casas, e ficam”.
Alertaria para a modéstia de Rubem – na verdade, a do Velho Braga, personagem de si mesmo que emerge da vastidão solitária de suas crônicas, “obra que talvez se conte entre as poucas de lugar assegurado na literatura brasileira contemporânea”, para encerrar com Sabino.
Lembraria que a modéstia não é só de Rubem, mas traço dos grandes cronistas. Feito a de Stanislaw Ponte Preta (ou Sérgio Porto, nunca sei quem criou quem).
E reproduziria, conduzindo descaradamente o leitor no rumo de minha tese, uma nota de rodapé de seu “Perfil da Tia Zulmira”: “Certa vez um cronista mundano, para valorizar as próprias besteiras, disse que Proust, antes de ser Proust, foi cronista mundano. Tia Zulmira gozou a coisa, dizendo que Lincoln também foi lenhador e, depois dele, nenhum outro lenhador conseguiu se eleger presidente da República.”
Já pensando em concluir, lamentaria a falta que faz a boa crônica, bem franca e desabrida, provocado pelo que afirma Fabiana Moraes, jornalista e socióloga, em sua colaboração para o número de novembro de “Pernambuco”, suplemento literário da ótima revista “Continente”.
Azar o meu de não ter marcado a página – crônica é assim, coisa ligeira: se não fisgar direito, foge da gente, que nem peixe querendo voltar pra dentro d’água.
Atenta aos avanços de certo “jornalismo da lareira”, feito para agradar o leitor de maneira, digamos, cuti-cuti, ela questiona “uma profissão que hoje parece se dirigir muito mais a um consumidor/espectador, e não a um leitor que pode reorganizar suas práticas a partir do que está escrito – inclusive questionando o que está colocado”.
E indagaria, sorrateiro: “Será por falta (crônica) de crônica?” Ciente de que o espaço é sempre mais curto que a compridez do assunto – regra de ouro, aliás, da boa crônica –, apressaria um arremate. Entraria justo aqui o trecho de García Márquez que achei ontem e perdi hoje.
Folheando, vi até outros bons, inclusive um bonito em que ele diz que o objetivo de suas crônicas para jornal – com as quais começou a ganhar a vida aos vinte – é “que sempre estejam bem escritas (…), pois sempre acreditei que a boa escrita é a única felicidade que se basta a si mesma”.
Mas esse trecho não serve. Queria mesmo era um pezinho de página preciso em que ele diz que não entende o porquê de se fazer hoje em dia, via de regra, jornalismo com tanta pressa e tão parcas inteligência, criatividade, alegria. E transcreveria o par de linhas em que ele diz que preferia o tempo em que se fazia jornalismo para se falar de como são as pessoas.
Azar o meu de não ter marcado a página – crônica é assim, coisa ligeira: se não fisgar direito, foge da gente, que nem peixe querendo voltar pra dentro d’água.
Ou quem sabe aquele trecho nem exista, e talvez eu o tenha sonhado. E então, nesse caso, minha crônica perderia o sentido – razão pela qual a de hoje vou-lhes ficar devendo.
Ricardo Sangiovanni, jornalista, coordena o blog O Purgatório e estreia hoje no NR a coluna Mistério do Planeta, com um texto mensal toda primeira quarta-feira do mês corrente.
terça-feira, 13 de dezembro de 2011
O cafezinho italiano continua imbatível…
O amigo e jornalista Júlio Cruz Neto esteve na Itália recentemente e fez um texto saboroso sobre como o italiano tem lidado com a crise no seu dia a dia. Convido os leitores do NR a conhecerem seu blog e, de lambuja, lerem o texto completo..."16 anos de jornalismo e publiquei minha primeira crônica (com pitadas de reportagem, claro, que isso é um vício difícil de controlar...) É sobre a maneira como os italianos estão lidando com a crise."
"Onde se pode tomar um bom café aqui perto, pergunto após fazer a barba, como se fosse difícil encontrar café bom na Itália. Qualquer posto de gasolina de beira de estrada serve um expresso melhor que o de qualquer padaria de São Paulo, e mais barato.
O elegante senhor trajando terno responde de bate-pronto (todo italiano que se preze tem seu “melhor café da cidade”, seja qual for a cidade) e estende o braço com o cartão de visita. Agradeço e me viro para ir embora, mas ele interrompe: “Vou te acompanhar”. Tento argumentar que pode aparecer algum cliente, mas é em vão.
“Me ne fotto”, responde de boca cheia, enfatizando cada palavra e gesticulando com a mão esquerda, antes de colar um “Ritorno subito” na porta da barbearia e chamar o vizinho para avisar que volta logo, caso alguém apareça.
Me ne fotto equivale a dane-se, não estou nem aí, de maneira mais vulgar. Uma vulgaridade gentil, no entanto, porque dá a entender que nosso cafezinho vale mais que qualquer serviço perdido.
Este não é um mero relato sobre como os barbeiros são simpáticos na Itália. É o início de uma crônica com pitadas de reportagem que escrevi sobre como os italianos estão lidando com a crise."
Para ler o texto completo, basta clicar aqui.
segunda-feira, 12 de dezembro de 2011
À opinião pública
O jornalista e sociólogo, Lúcio Flávio Pinto, entrevistado pelo NR na última semana sobre o Plebiscito paraense, enviou o texto abaixo em que relata ameaças que sofreu por conta de mais uma denúncia em seu Jornal Pessoal.
Os valores morais estão mesmo invertidos no Brasil. Ontem, um cidadão que emitiu notas fiscais frias para dar cobertura a uma fraude, praticada pelos donos do principal grupo de comunicação da Amazônia, O Liberal, afiliado à Rede Globo de Televisão, através da qual tiveram acesso a dinheiro público da Sudam, me ameaçou de agressão e tentou me intimidar.
Meu “crime” foi o de ter denunciado a fraude em meu Jornal Pessoal, que se transformou em denúncia do Ministério Público Federal, aceita pela justiça federal, mas arquivada em 1º grau sob a alegação de que o crime prescreveu.
O juiz responsável pela sentença, Antônio de Almeida Campelo, titular da 4ª vara criminal federal de Belém, tentou me impor sua censura, para que não pudesse mais escrever a respeito do processo. Como a ordem era ilegal, não a acatei.
Cinco dias depois, diante da reação pública, o juiz voltou atrás e revogou a sua determinação. Mas o incidente de ontem mostra que as tentativas de me intimidar prosseguirão.
Eu saía do almoço em um restaurante no centro de Belém, às 15:15, quando um cidadão se aproximou de mim subitamente. Ele parecia ter esperado o momento em que fiquei só no caixa.. Como se postou bem ao meu lado, o cumprimentei, mesmo sem identificá-lo de imediato. Ele reagiu de forma agressiva. Como minha saudação tinha sido um “Tudo bem?”, ele respondeu: “Vai ver o que fizeste contra mim no teu jornal”.
“O quê?”, disse eu. Ele se tornou mais agressivo ainda: “Da próxima vez eu vou te bater, tu vais ver”. Aí me dei contra de tratar-se de Rodrigo Chaves, dono da empresa, a Progec, que cedera as notas fiscais frias para os irmãos Romulo Maiorana Júnior e Ronaldo Maiorana, donos do projeto para implantar em Belém uma indústria de sucos regionais, no valor (atualizado) de sete milhões de reais, projeto esse aprovado pela Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia, em 1995.
Observei que o cidadão estava com um copo de vidro cheio de refrigerante e que o apertava com força. Deixando o salão do restaurante com o copo, tornava-se evidente que, com seu tom agressivo, planejava usá-lo contra mim.
Mantive-me calmo, sem reagir. Paguei e saía, quando ele começou a gritar, me chamando de palhaço. Continuei seguindo e fui até a seccional da polícia civil, onde apresentei queixa contra a ameaça de agressão física. O procedimento deverá ser instaurado amanhã.
Colarinho
branco
A primeira reportagem do Jornal Pessoal sobre a fraude praticada pelos irmãos Maiorana saiu em maio de 2002, na edição 283. Desde então, venho acompanhando o assunto. Nunca fui contestado pelos Maiorana, nem por Rodrigo Chaves. Ao ser intimado a comparecer à Receita Federal, ele admitiu serem frias as nove notas fiscais e dois recibos que emitiu entre 1996 e 1997 para a Indústria Tropical Alimentícia.
Com esses papéis, a empresa justiçou a construção de um galpão, onde funcionaria a fábrica de sucos. A estrutura teria sido posta abaixo por um vendaval, que teria ocorrido na área, mas atingiu apenas a construção dos irmãos Maiorana.
Com base em vasta documentação, comprovando a fraude com as notas e o desvio de recursos públicos, a Receita Federal encaminhou o inquérito ao Ministério Público Federal, em 2000.
O MPF fez a denúncia em 2008, enquadrando os Maiorana em crime contra o sistema financeiro nacional (mais conhecido como crime de colarinho branco).
Nessa época, a fraude de 1995 já havia prescrito. Por isso, o crime não podia mais ser punido. Restavam as manobras que permitiram aos Maiorana receber colaboração financeira dos incentivos fiscais da Sudam em 1996 e 1997.
No total, em valor da época, os irmãos tiveram acesso a R$ 3,3 milhões. O projeto, ao final, absorveria R$ 20 milhões de então. Para receber o dinheiro, eles tinham que entrar com 50% de capital próprio. Mas não tiraram um centavo do bolso.
No dia da liberação do recurso pela Sudam, eles emprestavam de um banco privado o valor equivalente, que devia ser a contrapartida de recursos próprios, mas só o mantinham em conta por um dia. No dia seguinte o dinheiro era devolvido ao banco.
O MPF só fez a denúncia pelo crime de fraude para a obtenção de dinheiro público. Não imputou aos Maiorana o outro delito, o de desvio de recursos públicos, caracterizado pela fraude na construção do galpão que o inusitado vendaval teria destruído. A prova da construção eram as notas fiscais fornecidas pelo cidadão que me ameaçou de agressão física.
A ameaça foi perpetrada num dia histórico para o Pará, a primeira unidade da federação brasileira a decidir, pelo voto direto e universal dos seus cidadãos, se aceitava ou não a divisão do seu território, o 2º maior do país, para a criação de dois novos Estados, de Carajás e Tapajós.
O próprio presidente do Tribunal Superior Eleitoral, o também ministro do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowsi, veio testemunhar pessoalmente esse momento histórico.
Foi a primeira vez que um presidente do TSE participou de uma sessão do TRE do Pará. Mas não chegou a testemunhar um ato representativo de como age e pensa parte da elite paraense que monopoliza o poder na capital e, pensando só em si, dá motivos às regiões mais distantes de tentar se separar do Estado para conseguir maior atenção e cuidados, numa terra marcada pela desigualdade social, violência e a impunidade. E onde ficou famosa a frase de um caudilho: de que, por aqui, “lei é potoca”.
O grupo de comunicação dos irmãos Maiorana tomou parte na campanha, dizendo-se intérprete da vontade da população. Já publicou dezenas de editoriais contra o ex-senador Jader Barbalho, acusando-o de ter enriquecido apropriando-se de dinheiro público, com destaque para o dinheiro da Sudam, que teria desviado para os próprios bolsos. Mas os Maiorana, que cometeram o mesmo crime, não querem que ninguém escreva sobre seus atos.
Um deles, Ronaldo Maiorana, beneficiário das notas frias do meu quase agressor, me agrediu fisicamente quase sete anos atrás, em janeiro de 2005, tendo a cobertura de dois militares da ativa da PM paraense, que transformou em seus capangas.
Por ironia, essa agressão se consumou em outros dos restaurantes da rede Pomme d’Or, onde agora fui ameaçado por um integrante da confraria dos Maiorana. Por outra ironia, tive que ir de novo à mesma seccional onde dei a primeira queixa.
As agressões, ameaças e intimidações prosseguirão? O poder público fará a sua parte, de fazer respeitar a lei e dar garantias ao cidadão do exercício de seus direitos?
Aguardo as respostas, que cobro como um simples cidadão, às vezes sozinho, mas convicto do seu direito. E da obrigação que sua profissão lhe impõe: dizer a verdade. Mesmo que ela incomode poderosos e truculentos.
Lúcio Flávio Pinto, Editor do Jornal Pessoal (Belém/PA 11/12/2011)
Música: promoção de fim de ano NR e MCD
Nota de Rodapé e a gravadora MCD vão sortear no dia 22 de dezembro DOIS kits com três cds Putumayo. Saiba mais sobre a coleção.
GANHADORES
@marcelo_grilo
@sinistro171
(Link do sorteio bit.ly/sIuCQE)
Acoustic Café |
Jazz |
Rumba, Mambo, Cha cha chá |
@marcelo_grilo
@sinistro171
(Link do sorteio bit.ly/sIuCQE)
Como participar via Twitter:
● O sorteio será pelo sistema sortei.me;
● Para participar é necessário seguir o Nota de Rodapé no Twitter (twitter.com/notaderodape), e “curtir” nossa página no Facebook (facebook.com/notaderodape).
● Publique a seguinte mensagem no seu perfil do Twitter:
#Promoção. Quero ganhar do @notaderodape e da @gravadoramcd o Kit da Putumayo Word Music: http://kingo.to/Vuf
Regras gerais:
● Perfis criados exclusivamente para concorrer em promoções não serão considerados;
● O sorteio será realizado no dia 23 de dezembro(sexta) e divulgado no blog no mesmo dia;
● O(a) ganhador(a) deverá mandar os dados para envio em até 48 horas após a divulgação do resultado. Caso o(a) ganhador(a) não entre em contato nesse prazo, novo sorteio será realizado;
● Ao tuitar a mensagem o internauta já estará participando da promoção e terá, automaticamente, aceitado os termos acima.
Notas sobre desaparecidos
Fernando dobrou a esquina e avistou o amigo com sua inseparável bicicleta.
Vinha em sua direção, mas desviou o caminho, pedalou com força rumo à calçada oposta, e passou veloz, sem parar, sem nem sequer cumprimentá-lo.
Metros depois, atou a bicicleta em uma árvore e seguiu caminho sem olhar para trás.
Fernando demorou para entender que naquele dia o amigo não falou com ele para salvar sua vida. Estava sendo vigiado, seguido, e não queria entregar nenhum companheiro. Foi a última vez que Fernando o viu. A bicicleta passou dias estacionada no mesmo lugar. O amigo desapareceu.
Na Argentina daquela época pessoas eram desaparecidas.
Facundo e Martín eram Montoneros e lutavam contra a ditadura. Naquele domingo jogavam Boca e River. A equipe da casa acabava de marcar um gol na Bombonera. Facundo, torcedor fanático xeneize, decidiu telefonar para o amigo para tirar sarro.
O telefone tocou, tocou e ninguém atendeu. Facundo achou estranho, mas não deu muita importância. No dia seguinte, como combinado, foi ao bar encontrar o amigo para praticar mais uma ação. Martín nunca chegou. Desapareceu.
Calcula-se que 30 mil pessoas “desapareceram” durante a ditadura argentina.
Jorge Rafael Videla, chefe da Junta Militar e presidente da Argentina entre 1976 e 1981, preferia chamar os desaparecidos de incógnita. “Se reaparecesse, teria um tratamento X. E se a desaparição se convertesse em certeza da morte, teria um tratamento Z.
Mas enquanto esteja desaparecido não pode ter nenhum tratamento especial, é uma incógnita, é um desaparecido, não tem identidade, não está… nem vivo, nem morto. Está desaparecido”.
Manolo é espanhol, mas morou na Argentina. Trabalhava no restaurante de um tio e todas as manhãs ia até ao açougue da esquina comprar carne. A conversa com o jovem açougueiro sempre começava igual: ¿Cómo andás, gallego? ¿Qué pasó, pibe?
Entre o corte da carne, a pesagem e o pagamento, conversavam sobre futebol, mulheres e amenidades. Nunca sobre política. Um dia Manolo foi ao açougue e só encontrou a faca usada pelo pibe. Estava pendurada, do outro lado do balcão não havia ninguém. Nunca mais se soube do açougueiro.
Em 1978 a Argentina sediou o Mundial de futebol. Enquanto todas as redes de televisão do mundo transmitiam a abertura da Copa, uma cadeia holandesa acompanhava a marcha de umas mulheres que buscam seus filhos. Diante da câmera, uma delas clama.
“Já não sabemos a quem recorrer. Consulados, embaixadas, ministérios, igrejas. Todos nos fecharam as portas. Por isso rogamos a vocês: por favor, ajudem-nos. São nossa última esperança”.
Ricardo Viel, jornalista, colunista do NR e do Purgatório, escreve às segundas
Vinha em sua direção, mas desviou o caminho, pedalou com força rumo à calçada oposta, e passou veloz, sem parar, sem nem sequer cumprimentá-lo.
Metros depois, atou a bicicleta em uma árvore e seguiu caminho sem olhar para trás.
Fernando demorou para entender que naquele dia o amigo não falou com ele para salvar sua vida. Estava sendo vigiado, seguido, e não queria entregar nenhum companheiro. Foi a última vez que Fernando o viu. A bicicleta passou dias estacionada no mesmo lugar. O amigo desapareceu.
Na Argentina daquela época pessoas eram desaparecidas.
Facundo e Martín eram Montoneros e lutavam contra a ditadura. Naquele domingo jogavam Boca e River. A equipe da casa acabava de marcar um gol na Bombonera. Facundo, torcedor fanático xeneize, decidiu telefonar para o amigo para tirar sarro.
O telefone tocou, tocou e ninguém atendeu. Facundo achou estranho, mas não deu muita importância. No dia seguinte, como combinado, foi ao bar encontrar o amigo para praticar mais uma ação. Martín nunca chegou. Desapareceu.
Calcula-se que 30 mil pessoas “desapareceram” durante a ditadura argentina.
Jorge Rafael Videla, chefe da Junta Militar e presidente da Argentina entre 1976 e 1981, preferia chamar os desaparecidos de incógnita. “Se reaparecesse, teria um tratamento X. E se a desaparição se convertesse em certeza da morte, teria um tratamento Z.
Mas enquanto esteja desaparecido não pode ter nenhum tratamento especial, é uma incógnita, é um desaparecido, não tem identidade, não está… nem vivo, nem morto. Está desaparecido”.
Manolo é espanhol, mas morou na Argentina. Trabalhava no restaurante de um tio e todas as manhãs ia até ao açougue da esquina comprar carne. A conversa com o jovem açougueiro sempre começava igual: ¿Cómo andás, gallego? ¿Qué pasó, pibe?
Entre o corte da carne, a pesagem e o pagamento, conversavam sobre futebol, mulheres e amenidades. Nunca sobre política. Um dia Manolo foi ao açougue e só encontrou a faca usada pelo pibe. Estava pendurada, do outro lado do balcão não havia ninguém. Nunca mais se soube do açougueiro.
Em 1978 a Argentina sediou o Mundial de futebol. Enquanto todas as redes de televisão do mundo transmitiam a abertura da Copa, uma cadeia holandesa acompanhava a marcha de umas mulheres que buscam seus filhos. Diante da câmera, uma delas clama.
“Já não sabemos a quem recorrer. Consulados, embaixadas, ministérios, igrejas. Todos nos fecharam as portas. Por isso rogamos a vocês: por favor, ajudem-nos. São nossa última esperança”.
Ricardo Viel, jornalista, colunista do NR e do Purgatório, escreve às segundas
sábado, 10 de dezembro de 2011
Pará: plebiscito e interesses...
O significado de uma vitória do “sim” sobre a criação dos novos Estados de Carajás e Tapajós, no território do Pará, marcado para hoje, dia 11, alteraria não só o mapa brasileiro, mas uma série de interesses econômicos e políticos.
Segundo o IPEA, caso se decida pela separação, os três estados nascerão deficitários. “Enquanto o Pará registra atualmente um superávit anual de aproximadamente R$ 300 milhões, subtraindo suas despesas da receita orçamentária, Carajás terá déficit de pelo menos R$ 1 bilhão anual, Tapajós, de R$ 864 milhões, e o Pará remanescente, de R$ 850 milhões.”
Para entender mais, o NR entrevistou, por e-mail, Lúcio Flávio Pinto, 61 anos, paraense, jornalista e sociólogo, editor do Jornal Pessoal, feito por ele e seu irmão, Luiz Pinto. “Há razões reais e fortes para a emancipação das duas regiões, mas os projetos são falhos e os interesses decisivos são políticos e empresariais".
Considerado uma referência sobre a Amazônia na imprensa brasileira, Lúcio Flávio é vítima constante de violenta perseguição por denunciar os pormenores do poder paraense o que já lhe rendeu 33 processos e quatro condenações na justiça de lá.
Por Moriti Neto
NR – Como você analisa as reais motivações do plebiscito de domingo, que pode dividir o Pará em três estados?
Lúcio Flávio – Há muitos anos tramitam pelo Congresso Nacional vários projetos de redivisão do Pará. Os alvos foram, primeiro, Tapajós, em seguida, Carajás. Por ter maior articulação política, Carajás passou à frente. Aprovado, por uma manobra parlamentar, atraiu Tapajós. Ambos os projetos, de autoria de políticos que não têm base eleitoral no Pará, um, senador de Roraima; outro, do vizinho Tocantins, foram aprovados por votação simbólica de sete líderes de partidos, sem ir a plenário.
Há razões reais e fortes para a emancipação das duas regiões, mas os projetos são falhos e os interesses decisivos são políticos e empresariais. As duas novas unidades federativas são uma das expressões do atual modelo de ocupação econômica da Amazônia, colonial e explorador. Uma das maiores expressões é a destruição da floresta, processo que se expandiria com a aprovação dos projetos.
NR – Quem são os maiores interessados nessa divisão?
É interessante observar que são fazendeiros os autores dos dois projetos, Mozarildo Cavalcante (PTB-RR) e Eleomar Quintanilha (PMDB-TO), e os principais líderes do movimento pró-Carajás, como o deputado federal Giovanni Queiroz (PDT-PA). É a categoria mais influente nessa campanha, junto com os madeireiros. Eles formaram propriedades através do desmatamento, que se tornou possível pela abertura de estradas. É o modelo que querem continuar a desenvolver.
NR – Como ficará a formatação de território e população de cada estado se a proposta for aprovada?
O Tapajós se tornaria o terceiro maior estado da federação, atrás apenas do Amazonas e Mato Grosso. Com uma população de 1,2 milhão de habitantes, enfrentaria os mesmos problemas que levaram os habitantes a querer se desvencilhar do Pará.
Teria as últimas grandes reservas florestais do Pará, mas as principais atividades econômicas na região oeste são justamente voltadas ao desmatamento e não à preservação ou ao uso inteligente. Provavelmente, Tapajós seria uma versão pouco menor, mas agravada, do atual Pará.
Quanto a Carajás, as características de enclave do Pará se tornariam ainda mais acentuadas nesse novo estado. Ele nasceria sob forte ingerência federal, já que boa parte das terras está sob o domínio da União, e da antiga Companhia Vale do Rio Doce, responsável por grande parte do PIB interno.
“Eles [os interessados na divisão] formaram propriedades através do desmatamento, que se tornou possível pela abertura de estradas. É o modelo que querem continuar a desenvolver.”
NR – Como e com quem fica o poder político em cada estado?
As elites políticas são as mesmas. Dividem-se apenas em função da disputa pelo poder e não por projetos para o estado. São muito mal preparadas. Não estão à altura dos desafios de um estado que é o quinto maior exportador do Brasil, o segundo com maior saldo de divisas, o segundo maior minerador, o quinto maior produtor de energia elétrica.
NR – E as relações econômicas, serão concentradas em quais grupos – e de que maneira – no formato proposto?
As novas atividades econômicas no Tapajós são a mineração, sobretudo de bauxita, a produção de soja e de madeira, que deverão abrir novas frentes. A atividade florestal ainda é incipiente e de futuro duvidoso. Carajás se concentra na mineração, na pecuária e na madeira, com o grande peso da Vale.
NR - Quais as consequências negativas que a população pode sofrer consideradas as especificidades de cada parte envolvida?
A grande massa da população já sofre bastante. Não só pela desassistência do poder público. Também por suas próprias deficiências e insuficiências estruturais. Só de minério de ferro, hoje o seu principal produto, o Pará exportou no ano passado cinco bilhões de dólares. Nenhum centavo de ICMS, a principal renda do Estado, foi recolhido.
Há apenas as compensações financeiras, que não chegam a representar 2% do que se podia arrecadar. Inversamente, o Pará é o 3º destino migratório do Brasil. Milhares de pessoas chegam todos os anos atrás das promessas de empregos, que inexistem. O resultado é uma enorme demanda social para recursos que não podem atendê-las.
O Pará, nono em população, é o 13º em IDH e o 21º por PIB per capita da federação. Um enorme descompasso entre valores quantitativos e qualitativos. E ainda há uma insuportável taxa de corrupção na administração pública. Com um ou três estados no território, a população paraense continuará na mesma.
NR - Pode ocorrer um abalo na estrutura cultural da população em geral? Por quê?
Sendo um estado de imigração, o Pará se torna cada vez mais diversificado culturalmente. O grande perigo é perder a cultura típica, uma das mais originais e de raízes mais profundas do país. É a cultura com maior influência indígena remanescente. Mas que é estranha à região que pretende se transformar no estado de Carajás. Nessa área as culturas predominantes são do Centro-Oeste e do Nordeste. Mas não é um problema apenas - nem principalmente - cultural.
A cultura reflete as mudanças econômicas e sociais. Onde havia floresta, uma civilização florestal, surgem as pastagens, as fazendas, o rodoviarismo. Mais sertão, menos Amazônia. Esta é uma realidade, que se aprofundará com a emancipação de Carajás. Não se pode fazer nada para pelo menos impedir o avanço? Acho que é possível. Mas o governo nada está fazendo nesse sentido.
“Infelizmente a cobertura da mídia tem sido deficiente. A maioria dos eleitores votará desinformada.”
NR – O que muda na Amazônia se a proposta for aprovada?
Vai se tornar mais favorável fazer o que se tem feito de predominante nas áreas dos dois estados propostos: ampliar o desmatamento, converter a cultural local pela importada, consolidar o colonialismo – interno e externo.
NR – Há aspectos positivos a serem ressaltados na proposta?
Agora não se pode mais colocar para baixo do tapete a questão da territorialidade no Pará, na Amazônia e, em certa medida, no Brasil. Os políticos, em cujas mãos foi colocado o monopólio da condução do debate, têm uma responsabilidade muito grande.
Não podem continuar a se comportar com a mesma leviandade que levou à aprovação do atual plebiscito. E o poder público tem que por fim a esse monopólio conferido aos políticos profissionais. Nos próximos plebiscitos é preciso que a sociedade civil participe do comando da campanha.
NR – A mídia corporativa, em âmbito nacional, trata a questão superficialmente. Na maioria das vezes, até a ignora. Por quê?
Porque a atenção à Amazônia é episódica, quase sempre restrita ao exótico, bizarro, escandaloso. O entendimento da Amazônia requer cuidado permanente e uma capacidade ampla de absorção de informações. Ao contrário do que o Brasil pensa, a Amazônia é a parte mais internacionalizada do país. Sempre foi. É brasileira tardiamente.
NR – E a mídia local, como tem se posicionado? A cobertura está a contento? Defende interesses de grupos específicos?
Infelizmente a cobertura da mídia tem sido deficiente. Como os principais veículos defendem posição política e interesses comerciais, não contribuíram como podiam para melhor esclarecer a população. A maioria dos eleitores votará desinformada.
Como ficaria a nova configuração
Dentro do que é o Pará a divisão em três novos Estados |
O Pará, hoje com área de 1.247.689 quilômetros quadrados, ficará com 17% desse território. Carajás, ao sul do estado, com 35%, e Tapajós, localizado a oeste, com 58%.
Os decretos legislativos aprovados este ano pelo Congresso Nacional estabelecem que o futuro estado do Carajás poderá ser composto por 39 municípios tendo Marabá como capital, e população estimada em 1,6 milhão de habitantes.
Já o estado de Tapajós, poderá ter 27 cidades, tendo Santarém como capital, e população em cerca de 1,2 milhão de habitantes.
O Pará, que pode ficar com 17% do seu atual território, seria composto por 78 municípios, e com população de 4,6 milhões de habitantes, com a cidade de Belém como capital.
Moriti Neto, jornalista, colunista do Nota de Rodapé.
(Com informações da Agência Brasil. Imagem de abertura de Rogério Uchôa, DiárioOnline)
Marcadores:
brasil,
Entrevista,
entrevista exclusiva,
escarafunchar,
nordeste,
Opinião,
Pará,
plebiscito popular
sexta-feira, 9 de dezembro de 2011
A "neurogênesis" dos taxistas londrinos
O estudo do cérebro dos taxistas virou especialidade da ciência neurológica. |
Os testes e treinamentos levam até três a quatro anos antes dos exames finais. Quase a metade dos candidatos é rejeitada. Os aprovados devem saber de cor a localização de aproximadamente 25 mil ruas e 20 mil pontos importantes de referência, como monumentos, parques, museus e hotéis.
Evidentemente nenhum barbeiro ou displicente com as leis do trânsito são sumariamente eliminados. Ficha limpa também é essencial.
Mas o mais curioso é que o estudo do cérebro dos taxistas londrinos tornou-se uma importante especialidade de ciência neurológica, que não pode ser feita rigorosamente em nenhum outro lugar do mundo.
Um longo estudo publicado na edição de 8 de dezembro da revista Current Biology mostra que o longo aprendizado e perícia dos taxistas londrinos muda a estrutura de seus cérebros, em comparação com a população em geral e dos candidatos que tomaram bomba nos exames para licença.
“Os resultados são animadores para as práticas de aprendizado contínuo e também da reabilitação após acidentes cerebrais”, diz Eleanor Maguire da University College London.
O estudo envolveu tomografia cerebral comparativa de muitos voluntários taxistas, reprovados e pessoas comuns.
Maguire descobriu que os taxistas apresentaram mais massa cinzenta na parte posterior da região cerebral do hipocampo, onde, acredita-se, reside o principal centro de memória definitiva da mente. O hipocampo é essencial para a navegação espacial e memória tanto em humanos como em outros animais.
A pesquisa mostrou que no início do treinamento para obter a licença os cérebros eram iguais em todas as categorias. Mas três anos depois os candidatos aprovados mostravam substanciais mudanças no hipocampo.
Contrariando um dogma tradicional da neurociência, de que adultos não desenvolvem novos neurônios, o estudo mostrou que a região do hipocampo pode, além de recrutar mais neurônios, criar novos, um fenômeno chamado “neurogênesis”.
Outra importância do estudo é que as medicações antidepressivas, baseados num mecanismo de recaptura de serotonina, também fazem nascer novos neurônios, mas de maneira relativamente rápida ( poucos meses), mas à custa de desagradáveis efeitos colaterais.
O estudo reforça a evidência para o tratamento de depressão por técnicas terapêuticas complementares às medicações da psiquiatria.
Flávio de Carvalho Serpa, jornalista, especial para o NR
quinta-feira, 8 de dezembro de 2011
Juro que vivi
"Manga, carambola, pitanga, goiaba, sapoti, abiu." Minha mãe de tanto descrever as frutas que havia no quintal da casa de sua infância, na rua Barão de Mesquita, na carioca Tijuca, fez com que abiu, sapoti, goiabada, pitanga, carambola, manga fossem frutas da minha infância transcorrida em quintais sem árvores.
Meu pai de tanto descrever o impacto que a notícia do fim da Segunda Guerra teve em seu coração de quinze anos, fez com que eu sentisse o louco entusiasmo que arrepiou as cabeleiras dos vivos naquele maio de 1945. De tanto ler e escrever sobre o 8 de Março, quase me convenço que estive presente no Congresso de Mulheres, Copenhague / 1910, onde a comunista Clara Zetkin propôs a criação da data.
A memória dos outros é poderosa quando contada e recontada. Ela penetra, sem cerimônia e impetuosa, no hipocampo cerebral de quem ouve ou lê. Por isso sou capaz de sentir o gosto do abiu, a euforia do final da guerra e a então subversão de um bando de mulheres. Faz menos de um mês, visitando a Fortaleza de Santa Cruz em Niterói, voltei a essa experiência de transferência de memória.
O recruta Patresi, nosso guia na Fortaleza, descreveu com tamanho brilho a fuga do preso político Juarez Távora, que vi o tenentista descer o íngreme paredão em direção ao mar, amarrado em uma corda de cânhamo de 25 metros de comprimento. De uma forma mágica, a fuga daquele fim de tarde de 1930 voltou a acontecer na manhã de um domingo deste 2011.
Memórias mortas são as não contadas. Aquelas envoltas em segredos de Estado, entocadas em pastas top secret, ou as memórias trancafiadas em diários que seus donos e donas atiram ao fogo. Porque os que têm a boca grande ou aqueles, como a minha mãe, que reprisam e reprisam suas lembranças são mensageiros e guardiões da grande memória. Memórias que a gente já não sabe a quem pertence. São de quem viveu os fatos e de quem ouviu contar.
Sempre que subo as escadarias do Teatro Municipal de Sampa, revisito a Semana de Arte Moderna de 1922. Semana – de três dias – que poria o modernismo dos paulistas no mapa cultural do país. Batata: vejo Oswald de Andrade descendo de um Ford Bigode. Mario de Andrade saltando do bonde. Villa-Lobos esvoaçado sua partitura e a ousada e tímida Anita Malfatti na companhia de um homem amarelo.
Para os leitores que não me conhecem, esclareço que não sou tão antiga quanto o modernismo. Nasci em 1955, ano em que os brasileiros elegeram Juscelino Kubitschek. O cara dos 50 anos em 5. O presidente da República que peitou a construção de Brasília. Minha tia Marlene andou por lá, quando a cidade era um enorme campo de obras e sonhos.
Pois de tanto ela contar suas lembranças, toda vez que aterrisso no Distrito Federal vejo novamente os barracões, a terra vermelha, os candangos – homens e mulheres – que meteram os pés no barro e as mãos no concreto armado. Vejo os operários suspendendo os anjinhos no teto da Catedral. Os jardineiros plantando as primeiras sementes nos canteiros do Plano Piloto.
Mas voltando ao Modernismo e ao Municipal, o que mais me recordo é da abertura da Semana com o poema do recifense Manuel Bandeira falando de sapos – sapo tanoeiro, sapo-boi, sapo-pipa – para uma plateia entre incrédula e ruidosa. Essa plateia saíra dali contando e implantando, na cabeça dos que viriam a nascer, suas memórias.
fernanda pompeu, escritora e redatora freelancer, colunista do Nota de Rodapé, escreve às quintas. Ilustração de Carvall, especial para o texto.
Meu pai de tanto descrever o impacto que a notícia do fim da Segunda Guerra teve em seu coração de quinze anos, fez com que eu sentisse o louco entusiasmo que arrepiou as cabeleiras dos vivos naquele maio de 1945. De tanto ler e escrever sobre o 8 de Março, quase me convenço que estive presente no Congresso de Mulheres, Copenhague / 1910, onde a comunista Clara Zetkin propôs a criação da data.
A memória dos outros é poderosa quando contada e recontada. Ela penetra, sem cerimônia e impetuosa, no hipocampo cerebral de quem ouve ou lê. Por isso sou capaz de sentir o gosto do abiu, a euforia do final da guerra e a então subversão de um bando de mulheres. Faz menos de um mês, visitando a Fortaleza de Santa Cruz em Niterói, voltei a essa experiência de transferência de memória.
O recruta Patresi, nosso guia na Fortaleza, descreveu com tamanho brilho a fuga do preso político Juarez Távora, que vi o tenentista descer o íngreme paredão em direção ao mar, amarrado em uma corda de cânhamo de 25 metros de comprimento. De uma forma mágica, a fuga daquele fim de tarde de 1930 voltou a acontecer na manhã de um domingo deste 2011.
Memórias mortas são as não contadas. Aquelas envoltas em segredos de Estado, entocadas em pastas top secret, ou as memórias trancafiadas em diários que seus donos e donas atiram ao fogo. Porque os que têm a boca grande ou aqueles, como a minha mãe, que reprisam e reprisam suas lembranças são mensageiros e guardiões da grande memória. Memórias que a gente já não sabe a quem pertence. São de quem viveu os fatos e de quem ouviu contar.
Sempre que subo as escadarias do Teatro Municipal de Sampa, revisito a Semana de Arte Moderna de 1922. Semana – de três dias – que poria o modernismo dos paulistas no mapa cultural do país. Batata: vejo Oswald de Andrade descendo de um Ford Bigode. Mario de Andrade saltando do bonde. Villa-Lobos esvoaçado sua partitura e a ousada e tímida Anita Malfatti na companhia de um homem amarelo.
Para os leitores que não me conhecem, esclareço que não sou tão antiga quanto o modernismo. Nasci em 1955, ano em que os brasileiros elegeram Juscelino Kubitschek. O cara dos 50 anos em 5. O presidente da República que peitou a construção de Brasília. Minha tia Marlene andou por lá, quando a cidade era um enorme campo de obras e sonhos.
Pois de tanto ela contar suas lembranças, toda vez que aterrisso no Distrito Federal vejo novamente os barracões, a terra vermelha, os candangos – homens e mulheres – que meteram os pés no barro e as mãos no concreto armado. Vejo os operários suspendendo os anjinhos no teto da Catedral. Os jardineiros plantando as primeiras sementes nos canteiros do Plano Piloto.
Mas voltando ao Modernismo e ao Municipal, o que mais me recordo é da abertura da Semana com o poema do recifense Manuel Bandeira falando de sapos – sapo tanoeiro, sapo-boi, sapo-pipa – para uma plateia entre incrédula e ruidosa. Essa plateia saíra dali contando e implantando, na cabeça dos que viriam a nascer, suas memórias.
fernanda pompeu, escritora e redatora freelancer, colunista do Nota de Rodapé, escreve às quintas. Ilustração de Carvall, especial para o texto.
Marcadores:
carvall,
cronetas,
cronicas,
garatujas,
história,
ilustração,
lembranças,
Literatura,
observatorio da esquina
quarta-feira, 7 de dezembro de 2011
Sócrates no Céu
Tadeu Breda, jornalista, especial para o NR, também faz sua homenagem ao Dr. Sócrates em dois desenhos singelos e graciosos.
terça-feira, 6 de dezembro de 2011
A arte dos fotógrafos
Antropólogo, fotógrafo, professor, fotojornalista, gremista e ator. Foram três horas de conversa e assunto que não acabava mais. O irriquieto “Luiz, com z , Robinson Achutti” só pausava entre um trago de cigarro e outro: “o problema é que falo demais...”.
Entre seus alunos, do curso de Artes Visuais da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), é recorrente ouvir a expressão “ando meio achuttiano” em referência ao seu estilo clássico – e dos melhores – de fotografar.
“Sou sempre cobaia de mim mesmo”, brinca quando digo que ele será o primeiro entrevistado da coluna Faço Foto. Achutti tem uma trajetória bastante heterogênea. Começou como repórter fotográfico no Coojornal em Porto Alegre em 1978, mesmo ano em que fincou raízes na faculdade de Ciências Sociais onde fez mestrado e doutorado em antropologia. Em 1996 ficou conhecido como o “pai da fotoetnografia” quando propôs uma nova utilização das imagens no terreno das Ciências Humanas.
Aos 35 anos ingressou como professor do Instituto de Artes da UFRGS onde segue até hoje. Para ele não servem categorias como fotojornalista, antropólogo ou artista. É uma honra abrir a maratona de entrevistas em texto e vídeo da coluna com Achutti que aos 53 anos de idade comemora 35 de carreira.
Por Ana Mendes
Por Ana Mendes
Em 1978, Achutti se torna repórter fotográfico |
Achutti: Me chamo Luiz, com z , Robinson Achutti, tenho 53 anos, nasci em Porto Alegre e sou gremista. É isso? Petista no momento, quer dizer, sempre fui. Signo capricórnio, não que eu acredite nessas coisas... e cor predileta: azul.
NR: Quero que tu me fale um pouco sobre o início da tua história com a fotografia.
Isso remonta ao meu avô que era fotógrafo não profissional em Santa Maria [RS]. Ele nasceu no final do século 19. E ali com 20 anos ele já tinha câmera e fotografava tudo que acontecia em Santa Maria. Quando eu era pré-adolescente passava as férias de julho com ele e, às vezes, ia pro laboratório que ele mantinha nos fundos de casa.
Ele se escondia lá, um laboratóriozinho todo enjambrado. E não sei, mas pelos 15 anos decidi que queria fazer um curso de fotografia. Meu pai não ficou muito contente e minha mãe ficou mais ou menos contente. Daí fui no Foto Cine Clube fazer um curso. Em paralelo, em 1975 comecei a fazer teatro e a primeira peça que fiz foi o Matadouro. Fiz as fotos do cartaz da peça para mandar pra divulgação e fiquei nessa, teatro e fotografia.
NR: E o curso de Ciências Sociais?
Em 1978 eu passei no vestibular e entrei nas Ciências Sociais. No primeiro ano da faculdade recebi um convite para ir no Coojornal substituir um cara e ser freelancer. Daí passei o dia com medo, "vou não vou..." e a Ondina [Fachel Leal, antropóloga], minha colega, disse “Vai, deixa de ser bobo!”. Daí eu fui e ali começou minha escola de fotojornalismo.
NR: Antropologia e jornalismo começaram juntos?
Sim. Estou na faculdade de Ciências Sociais e não tinha descoberto a antropologia ainda. Eu questionava os professores: “sou fotógrafo e faço Ciências Socias. Como junto as duas coisas?” Te confesso que, em 1978, nem tinha ouvido falar em antropologia visual. Já tinha gente falando sobre, óbvio, mas eu não. Estava focado na sociologia, só depois é que me bandeei para a antropologia. Então, tudo nasceu junto, né?
De Homem pra Homem - Vila Dique, Porto Alegre/RS, 1995 |
NR: Como é a utilização de imagens pela antropologia?
Na antropologia tem um campo chamado antropologia visual que é mais forte, digamos assim, no cinema etnográfico. Na fotografia, tirando algumas utilizações, era um campo muito tímido e pouco aceito. E a Ondina foi a primeira a usar um capítulo só de fotos numa tese de mestrado.
Quando entrei no mestrado ela ia ser minha orientadora e me incentivou desde o início. Foi clareza dela: “tu tem que tratar a questão da narrativa porque usar foto em trabalho de antropologia todo mundo usa”. O Malinowski [considerado um dos fundadores da antropologia social e fundador da escola funcionalista] e o Levi-Strauss, em 1934, usaram nos Tristes Trópicos. E nesse meio tempo eu tive aquela coisa meio ovo de Colombo (até provem o contrário eu que inventei) e criei a fotoetnografia.
Chamo de fotoetnografia quando o “foco” da documentação fotográfica é mais no que pega o espectro da antropologia e com o jeito de olhar da antropologia. E o que é? É sempre tentar ir mais profundamente. Buscar razões que estão lá embaixo. Eu sempre cito Geertz: “a cultura é a teia de significado que sustenta uma sociedade” então, tu tem que se oferecer para essa teia, investiga-la e trazer dali a riqueza e a particularidade de determinado grupo social-humano.
Em 1996 fiz o mestrado narrando a realidade das separadoras de lixo da Vila Dique no Rio Grande do Sul, não só por palavras, mas também imagens. E fiz de forma autônoma, porque não queria que a imagem fosse uma ilustração do texto como sempre. Queria um momento para o texto e outro para a imagem.
São dois vieses. Hoje pode parecer meio óbvio, mas havia muita resistência nessa época em que defendi o mestrado. Ainda tem gente que não engole, mas não tem como pensar o mundo de hoje e atuar no mundo de hoje só com a palavra escrita. É um absurdo.
"Chamo de fotoetnografia quando o ´foco´ da documentação fotográfica é mais no que pega o espectro da antropologia e com o jeito de olhar da antropologia"
NR: Existe um discurso por traz de qualquer imagem. E parece que a fotoetnografia exacerba isso por colocar diversas fotografias em sequência, não é?
A frase que me irrita quando ouço é “ todo mundo vê o que quiser numa fotografia”. Dá até para discutir se ela é muito aberta, mas pega o parágrafo de um livro: tu escreve uma coisa e o cara lê outra? Qual é a garantia de que a palavra é entendida completa e precisamente e a imagem não? Um grupo de fotos associadas é diferente de uma foto sozinha. E outra é um grupo de fotos fotografadas e pensadas para serem usadas em grupo. Cada uma tem que se valer sozinha, mas a soma delas faz um todo que também tem que ser importante. Não é aleatório, é uma construção.
Como o texto é uma construção, o cinema é uma construção. Tu vai fazer teu trabalho de campo e anota num cantinho, "entrevista não sei quem". Tu chega em casa e constrói uma narrativa tentando convencer o cara que vai te ler que tu foi lá e viu tal coisa e que analisa assim o fenômeno cultural daquele meio.
NR: Acho bem interessante essa (des)construção de olhar vinda de um fotojornalista. Porque o jornalismo ultimamente trabalha com a utilização de uma foto e nada mais.
Acho que o fotojornalismo em função das grandes agências está ficando cada vez mais ilustrativo e menos descritivo. O tsunami que ocorreu no Japão, por exemplo, em vez de fazer a foto do tsunami, não, o cara faz uma foto piegas de uma boneca que sobrou lá. Só está ilustrando uma avalanche absurda que recuou, matou gente e tudo a sua volta, incluindo a boneca. O tsunami, em si, o texto conta.
De toda maneira, os jornais e revistas nunca tiveram muito espaço, então é da escola do fotojornalismo tentar resumir o assunto em uma ou duas fotos. Para começar, a capa é uma foto só e todo mundo pensa só em capa.
E é por isso que o jornalismo, às vezes, morre só nas aparências, por falta de tempo e de espaço. Pega só um clichê do que está rolando. E não estou falando em desonestidade e reacionarismo do jornal, que é mais grave ainda e tem muito, a gente sabe, falo em condições normais.
E aí vem toda a tradição da fotografia documental que é o sujeito que pode se dar ao luxo, ou porque cansou do jornalismo, ou porque é rico, ou porque vive franciscanamente, ou porque foi patrocinado e diz: “o sonho da minha vida é fazer uma super série, um ensaio enorme sobre a amazônia”.
Então o cara vai morar na amazônia ou vai cinco vezes para amazônia e só termina de fotografar quando acha que já fez tudo que tinha para fazer sobre o tema amazônia. Muitas vezes o fotógrafo documental não quer descobrir ou analisar uma coisa, ele quer esgotar um assunto interessante esteticamente, com o qual vai se mostrar um fotógrafo interessante para os outros. Ele traz um tesouro visual sobre um tema que elegeu.
Última Foto, R.F.F.S.A, Porto Alegre/RS, 1993 |
NR: Está criticando a fotografia documental?
Não, eu não estava querendo fazer crítica porque adoro e me acho um fotógrafo documental. Estou comparando ela com o fotojornalismo. Muitos jornalistas quando estão em férias vão fazer uma série de fotos de um tema que os interessa: carnaval, candomblé, futebol.
Aí sim, numa lógica de se dar tempo e não se limitar na quantidade de imagens. E é a fotografia documental que mais se aproxima da fotoetnografia Eu mesmo fiz trabalhos de cunho documental, como, por exemplo, segui a vida do Iberê Camargo durante um ano. Agora vou começar outro.
NR: Qual é o próximo trabalho?
Vou começar um projeto que faz 15 anos está na minha cabeça. É uma ação em nome da memória, mas dessa vez não é um personagem, é arquitetura. São as estações ferroviárias do Rio Grande do Sul que com a privatização estão todas maltratadas, quebradas. É um retrato do descaso, entendeu? É que como o Brasil é muito chique, muito moderno, ele não precisa de trem, acaba com o trem e fica só com gasolina e carro, pneu, estrada, asfalto e o que simbolizava o trem deixa saquearem, roubarem, em ruínas.
Tudo bem Porto Alegre e Santa Maria [ficarem sem], mas na época pré-internet o trem trazia o jornal, trazia parente, comida, né? Imagina a malha viária ruim numa cidadezinha pequena? Tudo que acontecia era via trem. E quando o trem cessa? Acabou o trem, ele não para mais lá, a cidade definha, o comércio acaba.
Então, deve ter restado nessas cidadezinhas, que não sei quais são ainda, uma memória, algum velho que ainda lembra como era no tempo do trem, a estação deve estar lá porque eles não deixam derrubar, mas eles vão deixando ficar de um jeito...
“Não tem como pensar o mundo de hoje e atuar nele só com a palavra escrita. É um absurdo”
NR: Outro dia olhando o teu facebook, vi que postou “vou sair depois da chuva, levar minha analógica para passear”. Sinto uma certa nostalgia em ti.
Fui para a França e voltei quatro anos depois com as minhas analógicas e me disseram: “olha meu, tu trata de comprar uma máquina digital, senão tu não consegue mais trabalho em lugar nenhum.” Eu vivia de freelancer, né? Teve fotógrafo que chegou a ameaçar largar a fotografia, eu não.
Mais tarde é que descobri os caras da minha geração que pegaram o digital e continuaram fotografando como [se fosse] analógica, ou seja, tentando resolver tudo na hora, não deixando para depois.
É menos tempo no photoshop e na analógica também, já que não vai reenquadrar depois no ampliador, né? Isso é uma escola, tu resolve a foto na hora de bater. Photoshop só dá uma arredondada.
Estive em Campinas dando uma oficina e conheci um gurizão, o Pedro David (tem um trabalho fantástico documental-arte, vale a pena ver) e para o meu espanto o cara me disse que “um monte de coisa que eu faço é analógico, faço 4x5"l. Ele gosta do mundo analógico e resolveu não se contentar com o digital. Fiquei pensando... Será que a gente não tá matando o analógico antes do analógico morrer? O Pedro David não. Eu me animei. O cara de 25 anos está mil vezes mais analógico do que eu.
Iberê Camargo, Porto Alegre/RS 1994 |
NR: Vou ler um trecho de um texto teu: “O mundo é álbum de facebook. Assim é e não o contrário. A lomografia trata-se de atirar sem apontar, anotem aí! A esmo...”. Tem muitos fotógrafos profissionais furiosos com este momento da fotografia onde todos se intitulam fotógrafos. Tu acha que se vulgarizou a fotografia?
Não é coisa de velho não. Só tenho achado que existe uma banalização. É tudo meio parecido ou tudo se vende como novidade e depois que encontra uma norminha acabou, tem que vir outra. Sociedade de consumo exacerbada é isso! Então tudo é uma fórmula.
O mundo da imagem está assim, tudo é em massa e é pra hoje. Amanhã já não vale mais. É só um durante que existe, não existe passado e o futuro ninguém está ligando. Até aí tudo bem, afinal ficar vivendo em função do futuro é meio trouxa. Só existe o durante e o que eu tô falando aqui amanhã ninguém sabe, ninguém viu. É um pouco na velocidade da atualização do facebook.
E nesse oba oba que é sociedade capitalista, tudo vai assim, tudo vale um monte agora e não vale nada daqui cinco minutos ou então vale o que tem embalagem e o que tem dentro ninguém tem tempo de ver.
A lomo começou como uma brincadeira e agora é um movimento mundial. É mais uma forma de sociabilidade e as pessoas se encontram e fotografam sem olhar, de qualquer jeito, quanto mais distorcido melhor.
Mas à luz disso, pense um fotógrafo que tem 35 anos de fotografia e que não consegue se fazer fake numa estética contemporânea porque não sabe (e porque não gosta) e que, às vezes, é preterido em nome de outros caras, mais novos, com menos tradição?
Já teve circunstâncias em que senti as pessoas me aposentando: “ah, vamos fazer a turminha dos contemporâneos, o Achutti e aquelas fotos dele meio caretas, meio documental...”
Tu lê toda hora curadores geniais de São Paulo e Rio fazendo artigos detonando a fotografia documental. Ela vai ser resgatada, talvez agora porque o campo da arte vai lá e vai assaltar a fotografia documental e redefiní-la com pitadas artísticas e vão dizer que foram eles que inventaram, assim como eles fizeram com a fotografia como um todo.
Os fotógrafos faziam fotografia, aí com a crise da pintura (estou fazendo uma generalização, né?) vários artistas foram para a fotografia, adotaram como meio e técnica e reconceituaram a fotografia, e vieram com a tal foto arte, né? É como diz o francês André Rouillé “uma coisa é fotografia dos artistas, outra coisa é a arte dos fotógrafos”.
Achutti - A arte dos fotógrafos from Naíla Andrade Sarkar on Vimeo.
Trabalhos mais importantes:
1986 – Cuba
1988 – Nicarágua, as cores de uma luta
1988 – Fotos a cores de um país dito cinzento [sobre Alemanha Socialista]
1991 – Morte da Alemanha Socialista
1994 – Iberê Camargo, homenagem
2004 – Berlim Oriental
2005 – Um olhar sobre a Biblioteca Nacional da França
2008 – Palácio Piratini
Livros:
1997 – Fotoetnografia, um estudo sobre cotidiano, lixo e trabalho
1997 – Luiz Eduardo Robinson Achutti, fotografias
2004 – Iberê Camargo por Achutti
2004 – Fotoetnografia da Biblioteca Jardim
2008 – A matéria encantada, Xico Stockinger por Achutti
Ana Mendes, 26 anos, gaúcha de nascimento, errante de coração e profissão. Fotógrafa e cineasta documental formada em Ciências Sociais. Trabalha como fotojornalista freelancer entre Brasília e Porto Alegre. A coluna Faço Foto, aqui no NR, debate o ofício de fotógrafos que trabalham com a temática social em fotos de caráter documental, jornalístico e artístico.
Marcadores:
Documentário,
documentos,
Entrevista,
entrevista exclusiva,
faço foto,
Fotografia
Assinar:
Postagens (Atom)