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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quinta-feira, 31 de maio de 2012

musas & múmias

Devemos à Grécia Antiga a invenção das musas - nove entidades mitológicas capazes de inspirar a arte e a ciência. O templo delas era o Mouseion, palavra que nos deu museu e música.

Até hoje a imagem da musa inspiradora continua popular. No Brasil ao menos. Vira e mexe, aparece uma. Para ganhar o título é necessário ser jovem (de corpo e de cara), bonita (de acordo com o padrão dominante) e estar em evidência (o mouseion atual é a mídia).

É possível criar musas para qualquer categoria. Uma juíza em evidência, jovem e bonita, pode se tornar a musa do Judiciário. Se uma moça catadora de lixo virar notícia, for vistosa e ter menos de trinta, batata, ela será batizada a musa dos catadores de lixo.

Trata-se de um automatismo. Jornalistas preguiçosos adoram, pois é para lá de fácil descrever uma musa. O público em geral delira com uma cara bonita num corpo bonito. E a musa aproveita a fama instantânea. Só a inspiração é quem fica a ver navios.

Não estou exagerando. Por esses dias, apareceu uma nova musa nos noticiários nacionais. A musa da CPI do Cachoeira. Andressa Mendonça, 30 anos, roubou os holofotes em uma sessão da Comissão Parlamentar de Inquérito.

Quem é ela? A companheira de Carlinhos Cachoeira, réu principal da CPI. Ele é dono de vários créditos: traficante, bicheiro, lobista, chantagista, fonte de jornalistas, amigo de governadores e empresários, chefe de quadrilha. Em que a musa Andressa pode inspirar a CPI? Ao fracasso naturalmente.

Faz vinte anos, houve um momento gravíssimo na vida nacional. O presidente da República, devido ao clamor popular e ao trabalho da imprensa, foi impedido de seguir governando. Também aí surgiu uma musa. Seu nome, Thereza Collor. Seu título, musa do impeachment.

Numa tragicomédia – outra contribuição grega – Thereza era mulher de Pedro, irmão do presidente Fernando Collor. Pedro denunciou publicamente esquemas de corrupção do irmão. Fernando caiu. Pedro morreu de um câncer no cérebro. Thereza se casou com o empresário Gustavo Halbreich.

Daí pergunto: a musa Thereza inspirou o quê mesmo?
Mas é claro que há musas e musas. Nara Leão (1942-1989) ganhou o selo de musa da bossa nova. E foi. Ela gravou centenas de canções, se apresentou com seu violão em outras centenas de shows, descobriu e divulgou talentos incríveis.

Nara foi uma musa que inspirou! Participou da vida pública dando opiniões e indo a passeatas, numa época em que se expressar politicamente era se candidatar ao xilindró. Eram os anos da ditadura militar.

E as múmias? Ah, sobre essas e esses eu não preciso escrever. Você já deve ter feito uma lista generosa.

fernanda pompeu, webjornalista e redatora freelancer, colunista do Nota de Rodapé e do Yahoo. Escreve às quintas. Ilustração de Carvall, especial para o texto.

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Do Comando Vermelho para Jesus

Aquele nome esdrúxulo engarrafado por vogais não me parecia ser oriundo do latin e nem de nenhum outro idioma arcaico. Pedi para repetir e só então me caiu a ficha de que o nome era mesmo aquele. "Audidudima Salles, au seu dispor", se apresentou gentilmente o pastor da igreja evangélica Assembléia de Deus.

Numa outra pauta, semana atrás, fui abordado por um cozinheiro a respeito da vinda do Pastor Salles a São José dos Campos, indagando se não seria conveniente produzir uma matéria sobre ele, ex-integrante da facção criminosa carioca Comando Vermelho. Pensei que seria uma boa oportunidade de conhecer a história de vida de um importante membro do mundo do crime que agora prega a palavra de Deus.

Tudo acertado para uma sexta-feira a noite. O frio corta a avenida central enquanto as palavras firmes do pastor ecoam pela noite a fora. Me aproximo da igreja, que mais parece um salão de eventos, e noto a presença de aproximadamente 60 fiéis. Todos com uma vestimenta semelhante que oscila entre as saias a baixo do joelho das damas e o terno dos rapazes. Entro no culto sendo anunciado pelo pastor Salles: "o colega da imprensa vem prestigiar a casa de Deus nesta noite, amém". Me sinto um peixe fora d'água. Desde pequeno escuto pensamentos comunistas que contrariam a exitência de um Deus. Mas os fiéis parecem contradizer minha crença com tamanha vitalidade que me sinto acanhado.

Naquela noite, Audidudima arrecadou 500 reias de seus fiéis com argumentos como: "A igreja gasta com hotéis, passagens de avião. Se você gosta de ouvir o pastor Salles, este que vos fala, então coçe o bolso e faça sua fé." Aquilo me parecia como um consórcio, um leilão, onde todos depositavam suas economias para pleitear um lugar no céu. Pensei na grandeza e na onipresença das igrejas evangélicas em todo território nacional e relembrei da marca diária de 2 milhões de exemplares que a Folha Universal imprime, deixando para trás todos os maiores jornais do país.

O culto avança e de repente, eu estava distraído com a fisionomia do pastor, mulheres (exclusivamente) iniciam uma espécie de teatro do possuído. Se esparramam pelo chão como se estivessem tomadas por uma força maligna, defendida pela igreja como a dominação do capeta àquele corpo puro. Caretas e contorsões. Uma mulher se debate no chão invocando palavras desconhecidas em português. Pastor Salles se aproxima e com algumas palavras como "saia deste corpo agora" parece exorcizar aquela moça, que se levanta em seguida como se nada tivesse acontecido.

Me lembro dos mágicos charlatões antigos e das peças de teatro que vi em toda minha vida. Mergulho na história de vida defendida pelo pastor, acusado de matar mais de 70 pessoas em sua carreira criminosa. "Eu fui condenado a 300 anos de prisão mas o então presidente da república, Fernando Henrique Cardoso me deu um indulto. Cumpri 10 anos pelos meus crimes e hoje dou palestra no mundo inteiro", conta com orgulho Audidudima. Penso que a Justiça no Brasil é algo extremamente imparcial e volto a fotografar o discurso do pastor responsável por orientar Fernandinho Beira Mar e Escadinha.


Victor Moriyama é repórter fotográfico do Jornal O Vale, em São José dos Campos, cidade que reside atualmente. Mantém a coluna mensal Fotógrafo-escreve.

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Mirella carrega o legado da ditadura

Em tempos de Comissão da Verdade, um caso recente, que estourou nas redes sociais – dessas coisas que acontecem com frequência razoável –, nos faz pensar por que é importante desencavar os ossos das vítimas da ditadura brasileira. A violência que impera hoje, principalmente, nas periferias, as ultracomuns violações de direitos humanos no sistema carcerário, não terá fim, nem sequer vai diminuir, sem desvelarmos esse passado de nossa história que alguns setores da sociedade insistem em que fique trancafiado.

O caso a que me refiro é o da repórter baiana Mirella Cunha. Repórter da pior estirpe, reproduziu o jornalismo mais canalha e violento em uma matéria para um programa local da Bahia, da Rede Bandeirantes, a versão local do “Brasil Urgente”. Está pagando o pato, atualmente, sozinha, pelo seu péssimo trabalho, ainda que ela tenha apenas parcela da responsabilidade por sua bárbara tortura psicológica contra um detido.

 Mirella da Bandeirantes e entrevistado humilhado
Mirella Cunha entrevistava um suspeito de assalto e estupro. O jovem de 18 anos, preso no dia 31 de março (que bela comemoração do aniversário do golpe de 1964), estava algemado, com marcas de violência absolutamente visíveis no rosto. Ele cresceu nas ruas, nunca se alfabetizou, vendeu balas em ônibus. Na tela, a chamada da matéria já condenava o jovem: “Chororô na delegacia: acusado de estupro alega inocência”. Ou seja, ele alegar inocência é “chororô”.

Mirella já foi mais direta, chamando-o de “estuprador”. O jovem confessa que assaltou uma mulher, que roubou um celular e uma corrente dela, mas mostra desespero ao dizer que não a estuprou, e que não tinha essa intenção.

A repórter pergunta da marca que ele tem no rosto, e o jovem conta que foi espancado. A informação passa batido. Um jovem de 18 anos que é espancado enquanto está sob custódia do Estado não levantou NENHUMA curiosidade na repórter, NENHUM questionamento.

O vídeo é conhecido, sua versão mais curta, com cerca de um minuto, já teve mais de um milhão de visualizações no YouTube. A versão maior mostra os comentários do apresentador do programa, Uziel Bueno, brincando insistentemente com o fato de o garoto topar fazer um exame de próstata. Em determinado momento, Uziel enrola uma folha de papel ao redor de dois dedos da mão, transformando-o num símbolo fálico, e diz que é urologista nas horas vagas e vai ajudar a fazer o exame.

Os abusos continuam, com a repórter humilhando e rindo do jovem, que não sabia o nome ou o tipo de exame a que teria que se submeter para comprovar sua inocência. Mirella e Uziel Bueno aumentam o tom das piadinhas quando ele se dispõe a fazer o exame de próstata, com provocações absurdamente homofóbicas. Lembrando da dificuldade que é convencer a maioria da população masculina de fazer tal exame. E lembrando da quantidade de homens que morrem todos os anos por câncer de próstata, um tipo comum, mas tratável, de câncer.
O apresentador Uziel do Brasil Urgente da Bandeirantes

Esse tipo de jornalismo policial que é, na verdade, policialesco, mostra como a cobertura jornalística, em especial de televisão e rádio, do que se convencionou chamar (principalmente pelo setor mais “intelectual e enlevado” dos jornalistas) de “programas sensacionalistas” reproduz uma lógica afinada com o que há de mais despudoradamente violento nas forças policiais. E isso é uma herança direta de um passado que se tenta deixar “quieto”.

Segundo a pesquisadora Kathryn Sikking, que conduziu estudos sobre respeito aos direitos humanos e como isso é diferente onde há diferenças ao se lidar com a históricos ditatoriais em mais de 100 países, “a quantificação de índices de respeito aos direitos humanos (elaborado pela Anistia Internacional) permite a afirmação de que os países que revisitaram seu passado e julgaram os perpetradores de tortura têm, hoje, um grau maior de respeito aos direitos humanos” (Correio da Cidadania, 5 de agosto de 2009). Os que não revisitaram têm “Brasil Urgente”, têm Mirella, têm Uziel.

Ou seja, ela afirma que há uma ligação direta nos países que souberam lidar melhor com seus esqueletos nos armários (ou nas valas) e buscaram a verdade e o respeito aos direitos humanos. Já nos países onde se varreu para baixo um passado de violência por parte do Estado, há uma herança perene, que permanece até hoje, e que faz com que haja muito menos percepção e, consequentemente, respeito aos direitos humanos. Esse é, claramente, o caso do Brasil, onde a forma de a polícia lidar com a população resguarda fortíssimas semelhanças com a da época da ditadura. Essa falta de “revisitar o passado” faz com quem não haja crítica, em um perpétuo “não se ver” o que acontece. A Polícia Militar, hoje, não se sente compelida em nenhuma medida a respeitar qualquer tipo de direito.

Segundo o site da revista Época, após a divulgação do vídeo, a Defensoria Pública da Bahia publicou o seguinte sobre o entrevistado por Mirella: “É réu primário, vive nas ruas desde criança, apesar de ter residência em Cajazeiras 11. Tem seis irmãos, é analfabeto e já vendeu doces e balas dentro de ônibus. Ao ser questionado sobre como se sentiu durante a entrevista, ele diz: ‘Eu me senti humilhado, porque ela ficou rindo de mim o tempo todo. Eu chorei porque sabia que eu iria pagar por algo que não fiz, e que minha mãe, meus parentes e amigos iriam me ver na TV como estuprador, e eu sou inocente’” (Da coluna de 28 de maio de Eliane Brum, no site da revista Época).

Como bem disse Eliane Brum nessa mesma coluna, o caso que estourou está longe de ser exceção. Ele foi apenas mais um desses fenômenos de internet que estoura de uma hora para outra. Mas esse tipo de comportamento pode ser visto todos os dias. Na televisão e, principalmente, no rádio – esse meio de comunicação que é “primo pobre” mas que tem enorme penetração.

Não é incomum, nas redações de jornais, a editoria de Polícia ficar parada quando os policiais fazem greve. Porque essa editoria só funciona para reproduzir o que a assessoria de imprensa da polícia envia. É a única versão aceitável, e quando não há essa versão, não há nada a ser escrito. Vi isso com meus próprios olhos.

A Band afirmou que Mirella será demitida. Como se a reportagem e sua veiculação tivessem sido fruto da cabeça tresloucada da repórter, e não de uma cadeia de produção jornalística que tenta ser “do agrado do povão”, da fictícia “nova classe média”, que é um setor mais despolitizado e conservador que a média da população. Que é a favor da pena de morte e, contraditoriamente, contra o aborto por “defender a vida”. Que acha que suspeito que está algemado na delegacia “não é nenhum inocente” e, por isso, precisa ser humilhado, apanhar, “sofrer as consequências de seus crimes”; que não tinha “ninguém bonzinho” entre os mais de 111 presos do Carandiru.

Os arquivos que são mantidos fechados no Brasil não são referentes apenas à ditadura. Há documentos com mais de 130 anos, que vêm desde a Guerra do Paraguai, segundo a historiadora Ângela Mendes de Almeida. Ângela conta, em entrevista ao Correio de Cidadania em 2009, que “pouca gente percebe que aquele passado oculto pelo exército tem tudo a ver com a violência hoje, e ninguém quer enxergar a violência por parte do Estado. Ainda por cima temos uma opinião pública obscurantista que defende o extermínio dos pobres, ou faz alguns espetáculos de civilização que são inócuos.” Ora, estaria ela falando de Mirella três anos antes?

Rodrigo Mendes de Almeida, jornalista e editor de livros, especial para o Nota de Rodapé

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Todos os caminhos levam à Estação Central

As minhas reações não são novas, mas é como se fossem. Um novo revisitado, como dizem os gringos.

Tudo é muito. Nas lojas de comida pronta, seus balcões intermináveis dão a impressão de que a cidade toda vem comprar ali, de tanta coisa à venda, seja qual for a hora. Mas tem três delas em cada quarteirão. E pra todo lado, em tudo que é lugar que vende comida, e também nas embalagens de alimentos, te avisam que aquilo é saudável, fresco, feito em casa, recém preparado, tem baixa caloria e pouco sal, não contém açúcar, é orgânico e vem direto da fazenda. O boi dorme na primeira frase. Estamos cansados de saber que esse país é o campeão mundial da comida processada e da obesidade – que é simplesmente chocante, há décadas.

Nos supermercados, lojas de roupa e de artigos para a casa, farmácias, delicatessen de cada esquina, em qualquer uma delas, há muito mais coisas do que jamais serei capaz de identificar, mesmo que viva cento e vinte anos. As gôndolas dão vertigens. Como escolher entre vinte marcas e cinquenta variedades de mostarda, por exemplo? Com exceção de alguns alimentos, tudo o mais é fabricado na China. Tudo mesmo.

Aqui não existe a expectativa de que alguém te ajude com algum esforço físico. Para coisas como abastecer o carro, fazer mudança, carregar qualquer tipo de volume, limpar e arrumar, cada um que se vire como puder. A ajuda até que existe, mas sempre vai custar um bom dinheiro. E não se trata de pura sovinice ou grosseria, mas de um trato com o custo das coisas muito diferente do nosso.

Na publicidade, nos jornais e na TV, por exemplo, a palavra dinheiro e expressões como ganhar dinheiro, poupar dinheiro, gastar dinheiro e usar bem o dinheiro saltam aos borbotões. A ironia do momento é que, nos últimos tempos, quem tem irrigado bastante a moneycultura deles somos nós, os brasileiros.

Estamos por toda parte. Comprando. Nas lojas de roupas femininas, ouço o tempo todo as expressões de admiração e felicidade das minhas patrícias, que levam tudo em duplicata ou triplicata. Impressionante! Famílias inteiras de brasileiros perambulando pela rua com quantidades inacreditáveis de sacolas das grandes lojas. Os preços geralmente compensam, apesar das recentes mexidas no câmbio, mas bom mesmo é a sensação de vir pra Nova York, voltar com as malas explodindo e ter assunto pra várias semanas no café do escritório. Essa vida de novo rico é muito boa!

O que tem pouco aqui é americano, mas a cidade impõe seu estilo a quem chega. Nos últimos anos – e não só aqui – as pessoas caminham com o celular grudado no ouvido, falando sem parar. Muitos usam os fones sem fio, o que sempre me dá a primeira impressão de que estão falando sozinhos. Ou teclam furiosamente, sozinhos ou em grupos, cada um no seu celular. Talvez seja uma maneira de estar conectado com alguém o tempo todo e driblar a sensação de como é difícil encarar esta solidão de concreto anglo-saxão. Solidão povoada de instruções detalhadas, informações, esclarecimentos, advertências e ordens escritas em tudo que é lugar. E ai de quem as ignorar. Os analfabetos que se danem, e também quem não sabe inglês.

As coisas boas? São muitas. Caminhar numa cidade plana e com calçadas impecáveis é um grande prazer, ainda maior se for sem destino, só curtindo a paisagem urbana e humana cuja diversidade em si já é um grande programa, que me encanta sempre. Bibliotecas e museus maravilhosos, eventos culturais às pencas, jardins e parques ostentando a exuberância da primavera e muito mais.

Aqui pros lados onde me localizo melhor, a vida gira em torno de Estação Central, aquela cujo enorme saguão principal aparece muito nos filmes, por causa de abóbada de vitrais. Lá dentro, trens e metrôs em constante movimento podem muito bem ser esquecidos. Tem um comércio fervilhante, restaurantes, mercado, uma mega loja de computadores e muita, muita gente. Qualquer coisa que se precise, se não encontrar antes, haverá na Estação Central. Então, é melhor ir lá logo de uma vez, como acabei de fazer, porque está chovendo e fica difícil sassaricar na rua. Encontrei tudo e mais muita diversão por algumas horas. Como era o Conjunto Nacional nos começos de Brasília. Vixe, viajei legal!

Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo no NR.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

histórico no último

Na quarta-feira passada, zanzando pelo centro de Sampa acabei entrando no Ponto Chic do Largo do Paissandu. É claro, pedi um bauru. Afinal esse sanduíche, nativamente paulistano e conhecido em todo o país, nasceu exatamente no bar Ponto Chic do Paissandu.

O Ponto Chic foi inaugurado em 1922, o ano da Semana de Arte Moderna. Contam que muitos modernistas comiam e bebiam por lá. Entre eles, as pintoras Tarsila do Amaral e Anita Malfatti, os escritores Oswald de Andrade e Mario de Andrade.

Este último em um poema genial pede aos amigos que quando ele morrer espalhem pedaços de seu corpo pela cidade: "No Paissandu deixem meu sexo". O pedido do poeta fazia sentido. O Largo era uma Vila Madalena dos anos 20. O epicentro da vida boêmia sampalina.

Antes dos modernistas, o Largo do Paissandu já havia sido palco de várias manifestações da cultura popular. Lugar onde o povo se encontrava para se entreter, muito antes do rádio e da televisão. Por lá passaram circos, danças afro-brasileiras, faquires, elefantes da Índia.

Hoje o Paissandu, como 90% do outrora belo centro de São Paulo, está caidão. O poder público e a maior parte dos paulistanos deram as costas para a região. Existem garotas e garotos com menos de trinta anos que jamais circularam pelo Largo do Paissandu, com exceção dos amantes do pop, pois lá também está a Galeria do Rock.

No Paissandu, ainda sobrevive a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Construída por volta de 1908, em sistema de mutirão, por mulheres e homens negros. Por razões óbvias, a dos Homens Pretos tem um significado especial para a população negra. Também é verdade que garotas e garotos negros pouco sabem disso.

O Ponto Chic resiste no Paissandu, atende a uma clientela eclética, como eclética é a cidade de São Paulo. Talvez de todas as capitais, Sampa seja a que mais entenda a palavra diversidade. Por aqui navegam todos os tipos, tipinhos e tipões. Do motorista de Brasílias amarelas aos de Tucsons prateados.

A história oficial da criação do bauru no Ponto Chic é a seguinte: um estudante de direito de outro largo, o de São Francisco, apelidado pelos colegas de Bauru por ter nascido nesta cidade, pediu ao sanduicheiro: "Pão com queijo, rosbife, tomate e pepino".

Agradou a receita! A turma da Faculdade de Direito entrava e pedia um bauru. Daí o sanduba pegou. Outros bares e padarias passaram a fazer esse combinado. Verdade que na imensa maioria saiu o rosbife, entrou o presunto. E o pepino sumiu.

Digo história oficial, pois há outra versão. Mais proletária. Ela conta que o sanduíche teria sido inventado por um garçom do Ponto Chic, o Bauru, também ele nascido na cidade a 345 km de Sampa.

Convivem essas duas versões. Duas caras como a do próprio Largo do Paissandu. Duas caras como a do próprio Brasil. Uma de um representante da elite, futuro advogado. Outra, de um representante do trabalho duro e mal remunerado. Ao fim, nós brasileiros, somos um sanduíche!

fernanda pompeu, webjornalista e redatora freelancer, colunista do Nota de Rodapé e do Yahoo. Escreve às quintas.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

O entendimento de cada um

– Quer CPF na nota?
– Não, obrigado. Não quero nada de nota fiscal paulista, nem mineira, baiana, gaúcha...
– Nota Fiscal Paulista é preconceito, né?
– Claro que não. É porque estamos em São Paulo, por isso tem esse nome.
– Será? Acho que é preconceito... devia ter outro nome.
– Imagina, imagina. Preconceito é outra coisa...
(fim de papo)

O diálogo acima se deu entre um senhor grisalho a fazer compras e uma caixa de supermercado. Eu vinha logo atrás, com uma tulipa em mãos, a presentear uma amiga de minha esposa, aniversariante naquele dia. O que soa engraçado na cena – e é, sem dúvida, inusitado – me fez pensar no significado que cada um dá as coisas.

A moça do supermercado, meio sem jeito, seguiu no atendimento dos poucos gatos pingados. Pensava, acho, no que tinha acabado de dizer. E eu, imaginava, o que ela pensava sobre o que havia dito.

Uma versão possível para mim é que, de certa forma, preconceito é tudo aquilo que não entendemos (ou não queremos entender) e, portanto, rechaçamos sem mais pensar. É o que podemos descobrir, compreender e conviver e, sem mais, ignoramos por comodismo, ignorância, desinformação. Em alguns por ideologias intolerantes.

A caixa do supermecado, a meu ver, respondeu no automático uma intervenção de um cliente que pretendia ser engraçado. Ela tentou interagir. Quando o cliente viu que sua intenção não foi recebida como tal, recuou, afinal, a discussão passava para algo mais complexo.

Em geral a reflexão requer dedicação. E temas importantes da sociedade costumam ser deixados de lado, em segundo plano. Mas a cena em questão me criou uma ideia curiosa: um diálogo entre a caixa e o senhor grisalho em que todos na fila acabariam se envolvendo. Os temas: nada de trânsito, futebol ou clima. Por que não trabalho escravo, aborto, política educacional ou cotas em universidades?

Não seria interessante e também engraçado? Um avanço, sem dúvida.

Thiago Domenici, jornalista

terça-feira, 22 de maio de 2012

Sem espaço para vida e morte

Não é novidade. No jornalismo, nada dura muito. A correria insana por manchetes torna velho o que ocorreu há uma semana. A tragédia do dia ocupa o degrau mais alto no pódio das publicações e emissoras, mais ainda quando a ordem é virar a página de um Pinheirinho ou qualquer outra coisa ligada a movimentos populares. Assim foi com o paraense de Abaetetuba, José Roberto Viana Farias.

Desde o dia 3 de maio, quase nada foi dito sobre o operário de 25 anos de idade. Na data, no canteiro de obras da Usina Hidrelétrica de Jirau, em construção no Rio Madeira, Rondônia, o funcionário da mega empreiteira Camargo Corrêa – parte do consórcio Energia Sustentável do Brasil, vencedor da licitação do Governo Federal e condutor do projeto – trabalhava acelerado. Como sempre, os gritos dos chefes exigiam “produção”, “produção”.

Sinaleiro de guindaste, José Roberto se equilibrava no topo de estruturas metálicas, servindo como os “olhos” dos motoristas das máquinas.

Estava há dois dias sem dormir. No dia 3, foi receber o pagamento e pagar contas em Porto Velho, capital do Estado, distante 135 quilômetros das obras. Voltou para o batente à noite, sem nenhum período de descanso, naquele que seria o último turno da sua vida.

A inexistência de bandejas de proteção no perímetro da estrutura, além da ausência de cabo guia para fixação do cinto de segurança, fizeram desaparecer a proteção ao trabalhador. O óbvio esgotamento físico e mental, se não foram definitivos, formam parte do cenário que provocou a queda fatal de José Roberto.

Histórias que poucos contam


No grupo de obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do Governo Federal, a Usina de Jirau foi palco recente de greves em que operários protestavam contra falsas promessas na contratação, descumprimento de acordos, maus-tratos físicos, ameaças, desvios de função, falta de equipamento de segurança, não pagamento de horas extras, treinamento insuficiente e até a existência de um cartão bônus de R$ 600 para quem, entre outras coisas, não tirasse folgas para visitar familiares e não ficasse doente.

Dado impactante é que o consórcio Energia Sustentável do Brasil recebeu aproximadamente mil autuações da Superintendência Regional do Trabalho desde o início das obras, em 2008. Entre os itens flagrados nas fiscalizações, há vários relacionados com falta de segurança para trabalhar.

No entanto, as polêmicas das grandes usinas geradoras de energia, como Jirau e Santo Antonio, em Rondônia, e Belo Monte, no Pará, são cercadas, quase que totalmente, por debates baseados na questão ambiental. Campanhas mobilizam atores globais e exigem respeito à diversidade de fauna e flora locais, muitas vezes, sem nenhuma atenção à ciência.

Nesse embate, em que predomina o tom moralistóide na abordagem de assuntos estratégicos, como a energia, a justificativa é da importância do macro. Nele, vence a desculpa de um jornalismo ocupado com “questões maiores”, onde as histórias de vida e morte de trabalhadores de grandes empresas brasileiras que morrem nas obras regadas a recursos públicos – saídos do Fundo de Garantia e do BNDES – não têm espaço.

Moriti Neto, jornalista, mantém a coluna mensal Escarafunchar

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Recordar

RECORDAR: do latim re-cordis, voltar a passar pelo coração (Extraído do “Livro dos Abraços”, de Eduardo Galeano)

Tenho enorme inveja (e alguma desconfiança) daqueles que possuem lembranças dos primeiros anos de vida. Há quem jura recordar situações de quando tinha dois anos ou menos. São casos extremos, quando o que parece comum são lembranças a partir dos quatro anos.

Sou uma exceção. Para mim é como se minha vida tivesse começado lá pelos sete anos. Antes disso não me lembro de quase nada, apenas alguns flashes. Não fossem fotos e uma fita cassete em que meus pais me gravaram (e também a minha irmã) falando e cantando, acreditaria que esses primeiros anos nunca existiram.

Escrevo sobre isso porque tenho pensado muito na minha avó, que anda bem doente. Tem 90 anos, a cabeça melhor do que a minha (e provavelmente do que a tua), mas o coração, o pulmão, o rim e afins, já não querem mais trabalhar. Longe que estou dela, restam-me as recordações. E justamente é ao lado dela que tenho a que, provavelmente, é a minha primeira – uma das poucas anteriores aos tais sete anos.

Meus pais tinham saído para uma festa (ou algo assim) e ela ficou encarregada de fazer com que os netos dormissem. Minha irmã caiu logo no sono e foi levada para a cama. Ficamos minha avó e eu na sala. Eu não queria dormir e ela concordou, mas me fez prometer que quando ouvíssemos o barulho do carro dos meus pais ela me levaria para a cama e diria que eu já estava dormindo há tempos – eu teria que fingir caso minha mãe fosse checar.

Passamos então a noite vendo um filme – bem possível que era em preto e branco – de uma história que se passava num presídio, havia um trem (tenho a impressão que os presos queriam fugir nesse trem).

Não chegamos ao final, porque meus pais apareceram antes, mas isso não importa nada, porque ficou gravada aquela imagem de minhas perninhas esticadas no sofá ao lado daquela senhora magrinha com pano na cabeça. Naquela época ela já me amava, daquele jeito dela, e eu começava a amá-la, desse meu jeito.

Parece que chegou a hora dela ir dormir. Por sorte já estou bem maior, e guardo lembranças de vários momentos ao seu lado. Só não posso coloca-la a dormir, mas de longe ficarei torcendo para que tenha o privilégio de escolher a hora de fechar os olhos, e que descanse tranquila.

Continuarei aqui, assistindo ao filme, com os olhos marejados, mas contente de ter podido passar bastante tempo do lado dessa avó capaz de feitos incríveis, como atravessar um riacho numa pontezinha feita com madeiras velhas e podres, e com sacolas de compras na mão, para visitar a irmã.

Não podia me levar porque era muito perigoso. E eu ficava em casa triste, torcendo pra ela não cair no rio e esperando ela voltar. E ela, por sorte, sempre voltou.

Ricardo Viel, jornalista, escreve às segundas, de Salamanca, Espanha.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Atitude

Você diz isto porque é branca, loura e paulista. Foi o que ouvi da amiga militante dos movimentos negros quando conversávamos sobre a minha trajetória profissional peculiar. Isto porque, apesar de não ter terminado o ensino médio, sempre trabalhei em bons empregos, bem remunerados. E eu estava dizendo a ela que a educação formal faz falta, sim, mas há maneiras de driblá-la, é só uma questão de investimento na formação pessoal e muito trabalho.

Mas ela tem razão. É preciso mais do que isso: tem que pelo menos saber se expressar na conversa e na escrita e ter atitude, algo sempre visto com naturalidade nos brancos. Pessoas negras “com atitude” ainda são um grande incômodo pra muita gente.

Sempre estudei em escola pública, desde o jardim de infância até o colegial inconcluso. Lá atrás, nos anos sessenta, tive vários colegas negros no jardim e no primário. Conforme íamos sendo aprovados, eles iam desaparecendo das classes. Uns porque não passavam de ano e desistiam da escola, outros porque tinham que trabalhar, geralmente os meninos na roça e as meninas em casa – na sua ou na dos outros. De qualquer maneira, eram negros e não se esperava nada deles além de mão de obra braçal. Aliás, sua permanência na escola era claramente desestimulada, pois seriam mais úteis fora dela.

As meninas negras não brincavam no recreio. Ficavam sentadas nos bancos do pátio olhando a brincadeira e cuidando dos agasalhos das colegas brancas que suavam na correria. Tudo muito “natural”. Como é que alguma delas poderia aprender a se lançar no mercado de trabalho como secretária bilíngue, como eu fiz aos dezoito anos? Com um inglês bem mambembe, mas com boa conversa, boa escrita e muita determinação. A tal “atitude”.

A partir da extinção da escravatura (da qual tenho uma vergonha ancestral profunda e irreparável), não foi necessária uma política formal de segregação ou exclusão dos negros no Brasil. A estrutura social e o descaso oficial foram suficientemente eficazes para mantê-los alijados dos meios de ascensão. E não pretendo me alongar sobre isto, há gente muito mais capacitada que eu discutindo o assunto. Isto sem falar na tragédia indígena.

O que eu preciso dizer é que não vejo um caminho de superar a discriminação que dispense a educação, e que pra que haja alguma reparação das terríveis injustiças do passado, as cotas para acesso de negros e negras às universidades têm um papel essencial a cumprir. Nos últimos anos, conheci várias jovens profissionais que usaram das cotas para chegar aos cursos superiores. São pessoas brilhantes, com uma energia, uma competência e uma garra muitas vezes já esquecidas pela juventude branca de classe média (os “branquinhos de shopping”, como diz a minha filha), que desde sempre teve sua cota garantida nas universidades e nas carreiras. A juventude negra geralmente teve não só escolas ruins, como também famílias com nível de instrução muito baixo, enquanto na minha casa fomos “adestrados” desde cedo. Hoje me divirto lembrando que, com nossa mãe professora, todos tínhamos que nos expressar corretamente, e ai de quem usasse uma crase errada ou tropeçasse na concordância.

Todos sabemos que há muito o que fazer pela educação no Brasil, se queremos preservar e consolidar as conquistas dos últimos anos. Nossas deficiências são muitas e profundas, mas nada que não possa ser superado com investimento, planejamento, seriedade e boa gestão. Mas não chegaremos a lugar nenhum se não formos capazes de trazer todo mundo junto. É a nossa chance de sermos um país desenvolvido de verdade. Com muita atitude.

Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo no NR.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

rio-niterói

Hoje as barcas que fazem a travessia Rio-Niterói, pela esplêndida baía de Guanabara, têm pouco a ver com as embarcações que faziam essa mesma travessia quarenta anos atrás. As atuais são mais confortáveis, ligeiras, e algumas têm até serviço de café expresso com bolinhos de chuva.

As que eu carrego na memória tinham bancos de madeira, além de mais pesadas e lentas. De alguma forma eram mais "primitivas" ou mais "selvagens". É claro, o serviço então não tinha concorrência (a alma do negócio para o consumidor), pois não existia a ponte de 13 km de asfalto ligando as duas cidades.

O fato é que fiz a travessia Rio-Niterói por um ano ininterrupto. Era 1970, com o Brasil fechado. Falava-se baixo, escrevia-se e lia-se por metáforas e entrelinhas. Comungava-se um temor tremendo dos militares, da polícia, do Estado. Os que não liam nada, pouco temiam e viviam numa quase total ignorância política e de direitos.

De maneira que os quase trinta minutos gastos na travessia eram uma espécie de tempo liberto. Uma forma de suspensão, quando a vista se deliciava com a beleza da paisagem e as narinas se embebiam de maresia. A baía de Guanabara é uma epifania geográfica.

Havia liberdade naquelas barcas, como se fossem um território à parte. E também tinha algo da alma suburbana que, excluída das benesses, se sente mais solta das formalidades. Acho que é assim até hoje. Quero dizer: as pessoas falavam alto e se expressavam com espontaneidade.

Me recordo de um dia de nevoeiro cerrado, quando o piloto perdeu o rumo. A barca ficou fazendo círculos, adiando a ancoragem. Pois uma senhora começou a gritar: "Estamos sendo sequestrados para Cuba!". O pânico dessa senhora tinha a ver com notícias de sequestros de aviões manchetados nos telejornais da época.

Também assisti à cena de um suicídio. Um homem se jogou nas águas da Guanabara. Correria. O marinheiro salva-vidas nervoso atirou uma boia e o homem a agarrou sofregamente. Foi resgatado. Nos meus quatorze anos, senti uma esperança tremenda.

O episódio mais saboroso, do qual me recordei muitas vezes nesses quarenta anos, foi protagonizado pelo locutor da barca. No momento em que ela atracava, uma voz pelo alto-falante avisava para os passageiros não esquecerem os pertences no interior da embarcação. Sempre a mesma frase com igual entonação.

Daí, um dia aconteceu. O locutor falhou: "Senhores passageiros, desembarquem com segurança e não esqueçam seus problemas no interior desta barca". A gargalhada foi imediata e coletiva. Um uníssono de centenas de gargantas. Simples e inesquecível.

fernanda pompeu, webjornalista e redatora freelancer, colunista do Nota de Rodapé e do Yahoo!. Escreve às quintas.

* Este texto marca a volta do nosso Observatório da Esquina. É dedicado às queridas e queridos leitores. E particularmente dedicado à memória de uma leitora fiel e amada, Wilma Monteiro (1952-2012).

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Contraponto

Caro rato de gabinete, homo sapiens de bunda murcha, barriga pochete e pinto encollhido. Caro gestor de recursos humanos, sapato e certezas quadradas, ser de mente obtusa, operador de Excel, comedor de bandejão, cheirador de ar-condicionado. Em suma, caro burocrata. Este texto foi escrito para você.

E pela paciência dos que agonizam na fila do INSS, pela alma dos que sonham com o seguro desemprego, pelo tempo desperdiçado dos que surfam no site da Receita, espero que essas linhas tenham o efeito de uma escarrada no café morno e melado que você ingere em dozes homeopáticas pra alimentar a azia.

Atenção, caro burocrata, tire o olho do jogo de paciência e preste atenção!
Porque a revelação a seguir abalará as estruturas de seu intelecto de ondas curtas, dissolverá a cola de seus post-its, desbotará o azul Royal de suas esferográficas. Pois o fato, caro engravatado analógico, é que o relógio de ponto, esse objeto tão idolatrado por sua raça, esse instrumento de dominação, controle remoto dos assalariados não controla realmente nada.

É apenas um veneno para a alma humana, um ácido de intensidade moderada, que lentamente corrói a vontade do trabalhador e que um dia, quiçá, fará ruir todo o seu sistema arquivado em fichas alfanuméricas.

Confesso, caro burocrata, que demorei alguns meses para perceber a perversidade dessa maquineta de fazer bundões. A princípio achei que seria uma boa. Sete horas por dia, intercaladas por uma de intervalo (que, verdade seja dita, nunca ocorre realmente), total de quarenta horas semanais. Uma jornada suave, leve e arejada para nós jornalistas, acostumados a plantões, pescoções, jornadas adrenalizadas de doze, treze, catorze horas diárias com a circulação no talo, em potência máxima.

Portanto achei bom a princípio. Um reloginho mágico, leitor de digitais embutido, que limitava meu trabalho àquele intervalo fixo de tempo. Oito horas diárias. Nem mais nem menos.

Mas as semanas foram se enfileirando e algo começou a mudar. Em certos dias, o trabalho passou a acabar antes da jornada de oito horas. E conforme fui me habituando às tarefas, adquirindo traquejo e experiência, isso se tornou mais comum. Aos olhos do reloginho eletrônico, contudo, nada havia mudado. E aqui, caro burocrata, é que seu sistema se mostra obtuso e perverso. Pois ele não recompensa a eficiência. É cego e burro. É pela quantidade, não pela qualidade. É uma incubadora de fleumáticos preguiçosos.

Porque quando sobra tempo, a tendência natural do ser humano é gastá-lo com o ócio. Assim, após alguns meses de cabresto, numa tarde como outra qualquer, me flagrei postergando tarefas qual um funcionário público à espera da aposentadoria, preguiçosamente rolando a barra lateral do Facebook, falando sobre coisa alguma em intermináveis conversas de G-talk.

Afinal, por que fazer hoje o que se pode deixar para depois? Por que fazer rápido se ganhamos o mesmo para fazer devagar? Por que fazer bem feito se o que vale, se o que conta, na soma de descontos e benefícios do holerite, é o tempo que passamos nas dependências da firma?

Esses poderem maléficos do cartão de ponto se espalham rápido e atingem a todos. Qual um Ebola da vontade, corroem também a vitalidade de meus colegas. Os efeitos são perceptíveis a olho nu e não é difícil separar os trabalhadores que batem cartão dos que têm jornadas livres. Os escravos do ponto, caro burocrata, se movem em câmera lenta.

Eu, de minha parte, tento resistir. Faço meu trabalho com a máxima eficiência, com amor à criação. Ergo a voz contra seu sistema de autômatos bovinos, berro a meus superiores apontando a idiotice, mas também eles estão presos, caminhando com dificuldade no caramelo de burocracias que lhes imobiliza as pernas.

Qual um Robin Hood dos recursos humanos, tento roubar os rabichos de tempo. Fiquem com meu corpo porque minha alma e minha mente seguirão livres, cumprindo a jornada que quiserem e quando quiserem, penso comigo mesmo. Mas quem dera fosse tão simples. Porque eu tento, me empenho em outras funções, escrevo manifestos e contrapontos. Só que cada vez que pressiono o dedo sobre a luzinha do leitor de digitais, sinto que uma parte da minha humanidade, da minha juventude, da minha disposição para criar, inovar e sair pelo mundo de peito aberto se perdeu.

Cada vez que recolho o papelzinho amarelado com o horário da minha entrada ou saída eu me sinto mais parecido com você, caro burocrata de bunda murcha.

Tomás Chiaverini é autor do romance Avesso (Global), e dos livros reportagem Cama de Cimento e Festa Infinita (ambos pela Ediouro). Mantém a coluna mensal Abelha na Orelha. Ilustração retirada do blog do xilogravurista Murilo Silva, Esferografias.

terça-feira, 15 de maio de 2012

A bandidagem quer nos controlar?

A polícia e Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte andam atrás de explicações para uma determinada reunião realizada na cobertura de um apartamento em Natal, cujo proprietário é senador da república.

Segundo um vídeo gravado com o depoimento de um dos participantes dessa reunião, tal senador teria recebido um milhão de reais de dinheiro obtido ilegalmente para sua última campanha eleitoral. De quem?

Até aí parece não haver muita novidade sobre o jeitinho de se fazer política no Brasil, isto é, você apoia a minha campanha e depois eu favoreço sua empresa em determinadas licitações. O pior é que tal prática faz parte das nossas campanhas eleitorais há anos e anos e permeia quase todos os partidos do nosso espectro político partidário.

O que chama a atenção é que os envolvidos na tal reunião em Natal tratavam, entre outros negócios, sobre a instalação naquela cidade do sistema Controlar, essa taxa inventada em São Paulo nos últimos anos, onde os veículos automotivos têm que passar por uma inspeção para ver se estão ou não contribuindo para o aumento do nível de poluição ambiental.

Um dos participantes da reunião da cobertura teria vindo a São Paulo com um bom numerário para conseguir a desistência da empresa privada paulista que administra essa fiscalização em nome da prefeitura da cidade, ou seja, viajou com o propósito de fazer um bom negócio para outro grupo, provavelmente ligado ao tal senador da república. Encontro, diga-se de passagem, com o próprio prefeito de São Paulo.

Cabe lembrar, a propósito, que o número de carros de outras cidades e estados que passam pela cidade de São Paulo em um mês ou mesmo um ano é tão grande ou maior quanto os que são obrigados ao tal selinho da Controlar. E qual a razão de ser dessa demoníaca invenção que – ao que consta – ainda não apresentou relatórios e nem os resultados concretos da sua criação, se é que existem? Em outras palavras: algum esperto descobriu mais uma taxa para cobrar do contribuinte paulistano e ganhar muito dinheiro e assim ficamos todos com a consciência ecológica aliviada e os malandros com o bolso cheio.

Cercado pela pseudo seriedade com que se fabricam algumas leis e portarias no Brasil, protegido mais uma vez pela imprensa corporativa e venal, a inspeção de veículos do Controlar é, na prática, mais uma dessas maracutaias bem montadas para tirar dinheiro do incauto contribuinte paulistano. E, pelo visto, a ser exportada para os contribuintes em Natal no Rio Grande do Norte e explorada por alguma empresa que comprou sua participação no negócio afastando a empresa paulistana com um bom numerário trazido na mala de um ‘lobista’.

Na reunião da cobertura do apartamento potiguar, um senador ficou de receber quatro cheques de 250 mil reais para sua última campanha eleitoral. Dinheiro para lá, dinheiro para cá. Do sul para o norte do norte para o sul. Leis e portaria que acabaram por permitir, por exemplo, que em 2012, com o pagamento de uma taxa de R$44,50, o Controlar paulistano fature ao redor de 135 milhões de reais ou mais... Nada mal gastar alguns desses milhões com deputados, senadores, prefeitos, juízes e aumentar o negócio pelo Brasil, não?

Quando se assiste a alguns telejornais no horário nobre; quando se lê os principais jornais do país ou algumas revistas semanais que fazem informação de mão única, há uma pergunta que não quer calar: a bandidagem, com o apoio da mídia, quer nos controlar?


Izaías Almada, dramaturgo e escritor, colunista do NR. Lancou seu novo romance, Sucursal do Inferno, editora Prumo.

* A coluna Revoltas Cotidianas, de Fernando Evangelista, voltará na próxima terça-feira.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Dedo na ferida

[para visualizar melhor clique na ilustração]




Caco Bressane, ilustrador e arquiteto, colaborador do NR

Colecionando pérolas

Se tem alguma coisa de que posso me gabar na vida é ter conhecido muita gente interessante nessas já mais de três décadas de existência. O fato de ter me mudado muito, de ter viajado bastante e também a profissão que escolhi acho que ajudam, mas creio mesmo que tenho um imã pra atrair gente bacana. E nesses encontros, nessas andanças, eu vou, como posso, colecionando pérolas alheias. Pensamentos de uma profundidade e clareza que espantaria os filósofos gregos e que são ditos em uma mesa de bar, numa conversa durante uma comida, num café no intervalo de uma aula ou trabalho; ditas, dizia eu, como quem pede uma cerveja mais (trincando, por favor!).

Como já disse em texto anterior, sou totalmente favorável à apropriação de ideias alheias, quanto mais quando elas podem acrescentar algo à vida dos demais. Posto isso, trago à colação algumas dessas pérolas que fui recolhendo pelo caminho.


Da ditadura da felicidade

Tese que escutei de uma amiga, mas que na realidade era de um terceiro, motivo pelo qual me sinto livre pra teorizar sobre sem muito medo de não estar sendo fiel ao original. Pois a ditadura da felicidade é resultado desse mundo em que vivemos, o mundo das aparências. O povo taca botox na cara pra ficar parecendo mais jovial, mais belo e, por consequência, mais feliz. E fica mais estragado, feio e com cara de nádega (sim, porque bunda pode ser, e muitas vezes é, bonita). Neguinho só coloca foto supimpa no facebook, onde todo mundo exala alegria e beleza, e sempre faz programas interessantes e divertidos com seus centenas de amigos gente fina. Enfim, a teoria é de que hoje em dia somos obrigados – assim como o capitalismo nos impõe o consumo desenfreado – a ser felizes. Pois não nos dobremos, há espaço no mundo para a melancolia, a tristeza e a contemplação. Contra-ataquemos!

Da simpatia suspeita

De certo modo relacionada com a teoria anterior, diz respeito àquelas pessoas que estão todos os dias e o dia todo “felizes”. Sempre sorridentes, sempre solicitas, olham nos teus olhos quando perguntam se está tudo bem. Pois bem, suspeite! Ninguém é feliz 24 horas por dia. Essas pessoas são as que estão em um jantar, dizem que vão ao banheiro, e se trancam para chorar e se entupir de medicamentos, para logo voltar à mesa com o sorriso mais artificial do planeta. Há que desconfiar desses simpáticos!

Sobre o imbecil com atitude

Os imbecis com atitude são um perigo. Estão em todas partes e são facilmente identificáveis. Exemplo foi o garçom que tentou passar meu cartão de crédito diversas vezes sem conseguir que fosse lido. Até que em um momento passou com tamanha forca que simplesmente partiu-o ao meio. “Não há nada pior do que um imbecil com atitude”, sentenciou meu amigo Santiago, um verdadeiro pensador pós-moderno. Moral da história: nunca dê nenhum tipo de poder a um estúpido pró-ativo. Caso ele já o tenha, manter distância.

Das misérias humanas

Caetano disse que de perto ninguém é normal. Um amigo mexicano fala que todos somos miseráveis e que essas misérias você vai descobrindo quando conhece melhor as pessoas. Pois as misérias humanas são essas fraquezas que escondemos. O professor renomado que não consegue se controlar diante de uma saia. A mulher linda e sedutora incapaz de se desvestir diante de um homem. O “amigo” que torce contra você por que todos merecemos uma vida de merda, como a que ele criou para si. Essas mazelas, meus/minhas car@s, há que combatê-las; se não for por caridade, que seja porque um dia os miseráveis tocarão nossas portas, saquearão nossas dispensas e, famintos, comerão da nossa bondade.

segue… (ou não)

Ricardo Viel, jornalista, colunista do Purgatório e do NR, escreve às segundas, direto de Salamanca, Espanha.
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