quarta-feira, 17 de dezembro de 2014
Até 2015
O Nota de Rodapé faz um pausa. Voltará em 2015 com novidades. E muitas. Aguardem. Boas festas a todos noss@s leitores e colaboradores.
sexta-feira, 12 de dezembro de 2014
Bem vivos
por Júnia Puglia ilustração Fernando Vianna
Mesmo que eu me esforce muito na formulação e na elaboração, sei, de partida, que será bem difícil ajustar o tom e expressar a profundidade do que quero dizer. A clássica frase dos discursos, de que “não tenho palavras”, aqui se encaixa justinha. Palavras me faltam até mesmo para começar. Mas insisto.
Durante rápida caminhada aqui perto de casa, o olhar do belo rapaz negro cravou em mim um largo e genuíno sorriso, acompanhado do melhor “bom dia” que eu poderia esperar. E despertou as borboletas dormidas no meu estômago.
Algumas semanas atrás, a seção brasileira da Anistia Internacional lançou a campanha “Jovem Negro Vivo” (https://anistia.org.br/campanhas/jovemnegrovivo/), uma iniciativa de conscientização da sociedade, anestesiada sobre a realidade do genocídio da juventude negra. Se você acha exagerado usar o termo “genocídio” para definir o que acontece, o Aurélio, em versão resumida, me acode: “destruição metódica de um grupo étnico pelo extermínio dos seus indivíduos”. O termo foi forjado no rescaldo da Segunda Guerra Mundial, para definir a eliminação sistemática de grupos étnicos praticada pelos nazistas.
Todas as pessoas que conhecem o Brasil e vivem aqui sabem do que estou falando, por mais que evitem ver. Nossa cegueira está calcada em séculos de desprezo por qualquer indivíduo que tenha ou aparente ter menos. Aqui, nascer negro ou negra define ter e ser menos, de saída. Simples assim. No rap “Haiti”, Caetano Veloso adverte sobre o cenário contemplado a partir do adro da Casa de Jorge Amado, no Pelourinho de Salvador: “a fila de soldados quase todos pretos dando porrada na nuca de malandros pretos... só pra mostrar... como é que pretos, pobres e mulatos e quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados”. Mas só pretos se importam com pretos. Só pretos choram os milhares de jovens pretos amputados de viver e realizar seu potencial e suas habilidades em benefício próprio.
Enquanto isso, nossa capacidade de copiar gringuices esquisitas parece inesgotável. Até Halloween e Black Friday entraram na lista de eventos apreciados por jovens brancos, que falam uma língua diferente da minha, salpicada de palavras inglesas adaptadas à força de customização, blutuf, delivery e companhia. Lá na gringolândia, a segregação e a discriminação dos negros foi muito mais profunda e escancarada do que aqui, é o argumento que os tolos usam para nos fazer sentir menos responsáveis pela nossa própria tragédia racial. Porém, se os branquinhos de shopping prestassem atenção nas imagens dos protestos que vêm acontecendo por conta dos recentes assassinatos de jovens negros por policiais nos Estados Unidos, veriam que há muito deixaram de ser manifestações só de negros. E estão sacudindo o país com sua indignação e clamor.
Isto, nem lhes ocorre imitar. Deixe quieto, aqui a gente tem outras prioridades de mobilização, atividade há pouco ressuscitada na nossa vida política. No topo da lista, o inconformismo com o resultado do jogo democrático, que inclui uma bizarra vertente chamando os carrascos militares de volta, por mais incrível que possa parecer.
Eu, na minha inescapável brancura, quero todos os meninos e meninas, de todas as cores, bem vivos. Você me acompanha? Então clique no link acima e veja mais sobre o que estou tentando falar.
* * * * * *
Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com
quinta-feira, 11 de dezembro de 2014
Réquiem caboclo
1964 + 50
Histórias de pessoas de carne e osso – e também de personagens de papel – que viveram na roda viva da ditadura militar. Episódios quinzenais toda quinta-feira.
(episódio 21)
por Fernanda Pompeu ilustração Fernando Carvall
Na manhã do 24 de agosto de 1954, Getúlio Dornelles Vargas atirou contra o próprio peito obtendo 100% de resultado, se tornando um estraga-prazeres, uma mala sem alça, uma pedra no sapato, um estorvo para militares e políticos que estavam prontinhos para surrupiar a presidência da República e sentar seus respeitáveis traseiros nas cadeiras do Palácio do Catete, no Rio de Janeiro.
Antes do tiro, a oposição tinha razão em acreditar que havia encurralado o pai-dos-pobres, a esfinge-dos-pampas, o velho, a raposa. Carlos Lacerda, o Corvo, não dava trégua. Acusava Getúlio de ser o mandante do atentado contra sua vida, que matou o major da aeronáutica Rubens Vaz. Este fazia a vez de segurança de Lacerda. O episódio ficou conhecido como o Atentado da Rua Tonelero, em Copacabana.
A oposição ao Raposa, liderada pelo Corvo, investigou parentes, auxiliares, e principalmente o chefe da guarda pessoal de Getúlio, Gregório Fortunato, que por seu cargo e cor da pele era chamado de o Anjo Negro. Os interrogatórios aconteciam na base área do Galeão, melhor dito, na República do Galeão - por conta do poder concentrado.
Também pipocaram denúncias de corrupção e arrepios da lei. Irmão, filho, genro, dono de jornal foram para a frigideira. É claro que o alvo era o presidente, mas no final não conseguiram provar sua participação em nada. Ao menos, não diretamente. Porém o estrago estava feito.
Hoje, há quem analise que a grande carta do jogo era a recém-criada Petrobras e o projeto da Eletrobras. Evidente que Getúlio Vargas queria uma petrolífera estatizada. Já altas patentes militares, grandes empresários, o Corvo, vários políticos desejavam um modelo aberto ao capital privado e, principalmente, ao capital americano. Argumentavam: “Tupiniquins não são capazes de gerir empresas complexas”.
O Brasil é complicado, mas sua elite política é simples. Ela sempre esteve dividida entre entreguistas e nacionalistas, pró-americanos e pró-cubanos, Miami e Paris, esquerda e direita. Sendo que em todos os governos, com variação de grau, o povo raramente é consultado para as grandes mudanças.
Aliás, no dia seguinte ao suicídio de Getúlio e após a divulgação de sua carta-testamento, finalmente o povo subiu ao palco. Sem pedir licença. Uma multidão chorou a cântaros a morte do três-em-um: revolucionário, ditador, democrata. Rapidamente o clima político favorecendo um Golpe se desfez. O presidente se tornou mártir. Com mitos não se brinca.Os golpistas tiveram esperar por dez anos.
Nesse ínterim, tiveram JK e Brasília, Jânio e a renúncia, Jango e as reformas de base. Até que, num quartel em Minas Gerais, um general tocou a corneta da alvorada de 1964. Tempo que voa. Todas as personagens dessa crônica: corvo, anjo, raposa, generais, presidentes, ditadores estão mortos. O único que segue vivo é a nossa vontade de saber e de contar.
Fernanda Pompeu é escritora e redatora. Fernando Carvall é o homem da arte.
Histórias de pessoas de carne e osso – e também de personagens de papel – que viveram na roda viva da ditadura militar. Episódios quinzenais toda quinta-feira.
(episódio 21)
por Fernanda Pompeu ilustração Fernando Carvall
Na manhã do 24 de agosto de 1954, Getúlio Dornelles Vargas atirou contra o próprio peito obtendo 100% de resultado, se tornando um estraga-prazeres, uma mala sem alça, uma pedra no sapato, um estorvo para militares e políticos que estavam prontinhos para surrupiar a presidência da República e sentar seus respeitáveis traseiros nas cadeiras do Palácio do Catete, no Rio de Janeiro.
Antes do tiro, a oposição tinha razão em acreditar que havia encurralado o pai-dos-pobres, a esfinge-dos-pampas, o velho, a raposa. Carlos Lacerda, o Corvo, não dava trégua. Acusava Getúlio de ser o mandante do atentado contra sua vida, que matou o major da aeronáutica Rubens Vaz. Este fazia a vez de segurança de Lacerda. O episódio ficou conhecido como o Atentado da Rua Tonelero, em Copacabana.
A oposição ao Raposa, liderada pelo Corvo, investigou parentes, auxiliares, e principalmente o chefe da guarda pessoal de Getúlio, Gregório Fortunato, que por seu cargo e cor da pele era chamado de o Anjo Negro. Os interrogatórios aconteciam na base área do Galeão, melhor dito, na República do Galeão - por conta do poder concentrado.
Também pipocaram denúncias de corrupção e arrepios da lei. Irmão, filho, genro, dono de jornal foram para a frigideira. É claro que o alvo era o presidente, mas no final não conseguiram provar sua participação em nada. Ao menos, não diretamente. Porém o estrago estava feito.
Hoje, há quem analise que a grande carta do jogo era a recém-criada Petrobras e o projeto da Eletrobras. Evidente que Getúlio Vargas queria uma petrolífera estatizada. Já altas patentes militares, grandes empresários, o Corvo, vários políticos desejavam um modelo aberto ao capital privado e, principalmente, ao capital americano. Argumentavam: “Tupiniquins não são capazes de gerir empresas complexas”.
O Brasil é complicado, mas sua elite política é simples. Ela sempre esteve dividida entre entreguistas e nacionalistas, pró-americanos e pró-cubanos, Miami e Paris, esquerda e direita. Sendo que em todos os governos, com variação de grau, o povo raramente é consultado para as grandes mudanças.
Aliás, no dia seguinte ao suicídio de Getúlio e após a divulgação de sua carta-testamento, finalmente o povo subiu ao palco. Sem pedir licença. Uma multidão chorou a cântaros a morte do três-em-um: revolucionário, ditador, democrata. Rapidamente o clima político favorecendo um Golpe se desfez. O presidente se tornou mártir. Com mitos não se brinca.Os golpistas tiveram esperar por dez anos.
Nesse ínterim, tiveram JK e Brasília, Jânio e a renúncia, Jango e as reformas de base. Até que, num quartel em Minas Gerais, um general tocou a corneta da alvorada de 1964. Tempo que voa. Todas as personagens dessa crônica: corvo, anjo, raposa, generais, presidentes, ditadores estão mortos. O único que segue vivo é a nossa vontade de saber e de contar.
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Fernanda Pompeu é escritora e redatora. Fernando Carvall é o homem da arte.
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quarta-feira, 10 de dezembro de 2014
O barbeiro machão
por Carlos Conte*
Esperava sentado numa cadeira escolar, quieto no meu canto, enquanto o Barbeiro (vou chamá-lo assim) cortava o cabelo de um homem velho, narigudo e careca – aqui na Vila Romana é um tipo clássico – até que, me olhando pelo reflexo no espelho, o Barbeiro ordenou:
– Não lê essa revista aí, meu! Tenho coisa melhor. Claro: pra quem gosta de mulher!
Sem largar a tesoura, abriu uma gaveta e tirou dali uma pilha de revistas de mulher pelada.
– Lá no armário tem mais! – jogou as revistas no meu colo. – Depois me fala qual é a melhor. Minha preferida é a Patrícia Jordane. Esse Neymar é um cara de sorte, você não acha?...
Patrícia Jordane, ex-affair do Neymar. Essa não conhecia. A edição era recente mas o exemplar estava tão surrado que não pude evitar um princípio de nojo. Muitos pares de mãos masculinas já tinham virado aquelas páginas, só espero que ninguém tenha lido no banheiro (sabemos que isso é quase impossível).
Talvez fosse apenas sua maneira de receber bem um cliente, pondo à sua disposição toda pornografia disponível a fim de agradá-lo. Mas fico com a hipótese de que ele queria me provar alguma coisa, marcar posição, com sua exibição testosterônica exagerada e sem sentido, além de muito constrangedora. Acho que na cabeça dele funciona assim: pelo fato de tocar um salão de beleza masculino – afinal, barbearia não deixa de ser isto: um salão de beleza masculino, sendo barbearia só o nome “macho” para distingui-lo dos salões femininos –, o Barbeiro precisava provar aos clientes que não jogava no “outro time”. Atitudes como a dele, afobadas, atrapalhadas, escondem na verdade um medo terrível. Medo de passar por “cabeleireiro”.
Ao mesmo tempo em que provava sua “macheza”, ele me testava. Notei que o Barbeiro, entre uma tesourada e outra, ficava me olhando pelo espelho enquanto eu folheava a revista. Dependendo da minha reação diante da Playboy, ficaria provado se eu jogava ou não no “time” dele.
– E aí, aprovou?
– Nada mal...
Quando perguntada pelo repórter se vale tudo entre quatro paredes (já que no futebol existem regras bem definidas), a Maria Chuteira não titubeou: “com certeza!”.
O problema dessas revistas é que as fotos são ruins e cheias de photoshop. Um pouco de olhar crítico já faz você perder o tesão. Tem que entrar no jogo, abstrair. Tipo futebol. Se você começa a pensar um pouco, já era. Por isso que na adolescência eu gostava tanto de revista de sacanagem. Hoje não sinto a menor emoção. E a Playboy já foi uma revista melhor.
– Viram a polêmica da Viviane Araújo? Lembrei disso agora porque o cara que aparece no vídeo é careca...
O cliente e eu nos entreolhamos pelo espelho.
– Não viram? Não acredito! Dá uma olhada nisso aqui... – e me empurrou o iPhone.
Eram imagens de uma câmera de vigilância, dessas que nos filmam pra lá e pra cá o dia todo. Um carro estaciona numa rua deserta, um homem e uma mulher saem do veículo, abrem a porta traseira, ela se debruça no banco de trás, ele fica em pé atrás dela, e então, sem desconfiar de nada, começam a fazer sexo ali mesmo. Tem uns 2 minutos. O homem é calvo. A mulher, de fato, é bem parecida com a garota do Fantástico 94. Nunca vou me esquecer dela apagando a lousa na Escolinha do prof. Raimundo.
Claro que no dia seguinte ela negou tudo. No Instagram, descolou um álibi: no mesmo dia e no mesmo horário, cumpria compromisso com uma escola de samba. Abri a edição do mês seguinte e comecei a ler uma entrevista com o deputado Jean Wyllys, em que ele conta da sua experiência com maconha, diz que já ficou com meninas e admite que é um cara feio. Já pensou se o Barbeiro descobre que eu estou lendo a entrevista do Jean Wyllys? Ia ser divertido. Corrijo: ia ser pavoroso. Mas nunca, nunca mesmo, se deve arrumar encrenca com um barbeiro. Caso você brigue com um, nunca mais ponha os pés lá. Quem está com a navalha é ele, não você. O pescoço é o seu, não o dele. Enfim, essas coisas do dia a dia às quais precisamos estar sempre atentos. E com garçom é a mesma coisa.
Chegou minha vez. O de sempre: diminuir o volume e fazer um corte “normal” (seja lá o que isso signifique), mas não tem muito o que inventar na minha vasta cabeleira.
– Gostou da Viviane? – ele insistiu.
– Gostei.
– Lembra quando o professor Raimundo chamava ela pra apagar a lousa?
Só queria dizer a ele que não precisava forçar tanto a barra para provar sua heterossexualidade. “Já entendi, cara. Você gosta de mulher, parabéns! Eu também. Mas isso agora não importa. Corta meu cabelo e dá um tempo!”.
Claro que não foi isso que eu disse. Melhor não contrariar quem está com a navalha na mão. Afinal, o pescoço é o meu, não o dele.
Carlos Conte, sociólogo, é também resenhista e cronista. Mantém a coluna mensal Casa de Loucos, uma homenagem aos mestres João Antônio e Lima Barreto.
Esperava sentado numa cadeira escolar, quieto no meu canto, enquanto o Barbeiro (vou chamá-lo assim) cortava o cabelo de um homem velho, narigudo e careca – aqui na Vila Romana é um tipo clássico – até que, me olhando pelo reflexo no espelho, o Barbeiro ordenou:
– Não lê essa revista aí, meu! Tenho coisa melhor. Claro: pra quem gosta de mulher!
Sem largar a tesoura, abriu uma gaveta e tirou dali uma pilha de revistas de mulher pelada.
– Lá no armário tem mais! – jogou as revistas no meu colo. – Depois me fala qual é a melhor. Minha preferida é a Patrícia Jordane. Esse Neymar é um cara de sorte, você não acha?...
Patrícia Jordane, ex-affair do Neymar. Essa não conhecia. A edição era recente mas o exemplar estava tão surrado que não pude evitar um princípio de nojo. Muitos pares de mãos masculinas já tinham virado aquelas páginas, só espero que ninguém tenha lido no banheiro (sabemos que isso é quase impossível).
Talvez fosse apenas sua maneira de receber bem um cliente, pondo à sua disposição toda pornografia disponível a fim de agradá-lo. Mas fico com a hipótese de que ele queria me provar alguma coisa, marcar posição, com sua exibição testosterônica exagerada e sem sentido, além de muito constrangedora. Acho que na cabeça dele funciona assim: pelo fato de tocar um salão de beleza masculino – afinal, barbearia não deixa de ser isto: um salão de beleza masculino, sendo barbearia só o nome “macho” para distingui-lo dos salões femininos –, o Barbeiro precisava provar aos clientes que não jogava no “outro time”. Atitudes como a dele, afobadas, atrapalhadas, escondem na verdade um medo terrível. Medo de passar por “cabeleireiro”.
Ao mesmo tempo em que provava sua “macheza”, ele me testava. Notei que o Barbeiro, entre uma tesourada e outra, ficava me olhando pelo espelho enquanto eu folheava a revista. Dependendo da minha reação diante da Playboy, ficaria provado se eu jogava ou não no “time” dele.
– E aí, aprovou?
– Nada mal...
Quando perguntada pelo repórter se vale tudo entre quatro paredes (já que no futebol existem regras bem definidas), a Maria Chuteira não titubeou: “com certeza!”.
O problema dessas revistas é que as fotos são ruins e cheias de photoshop. Um pouco de olhar crítico já faz você perder o tesão. Tem que entrar no jogo, abstrair. Tipo futebol. Se você começa a pensar um pouco, já era. Por isso que na adolescência eu gostava tanto de revista de sacanagem. Hoje não sinto a menor emoção. E a Playboy já foi uma revista melhor.
– Viram a polêmica da Viviane Araújo? Lembrei disso agora porque o cara que aparece no vídeo é careca...
O cliente e eu nos entreolhamos pelo espelho.
– Não viram? Não acredito! Dá uma olhada nisso aqui... – e me empurrou o iPhone.
Eram imagens de uma câmera de vigilância, dessas que nos filmam pra lá e pra cá o dia todo. Um carro estaciona numa rua deserta, um homem e uma mulher saem do veículo, abrem a porta traseira, ela se debruça no banco de trás, ele fica em pé atrás dela, e então, sem desconfiar de nada, começam a fazer sexo ali mesmo. Tem uns 2 minutos. O homem é calvo. A mulher, de fato, é bem parecida com a garota do Fantástico 94. Nunca vou me esquecer dela apagando a lousa na Escolinha do prof. Raimundo.
Claro que no dia seguinte ela negou tudo. No Instagram, descolou um álibi: no mesmo dia e no mesmo horário, cumpria compromisso com uma escola de samba. Abri a edição do mês seguinte e comecei a ler uma entrevista com o deputado Jean Wyllys, em que ele conta da sua experiência com maconha, diz que já ficou com meninas e admite que é um cara feio. Já pensou se o Barbeiro descobre que eu estou lendo a entrevista do Jean Wyllys? Ia ser divertido. Corrijo: ia ser pavoroso. Mas nunca, nunca mesmo, se deve arrumar encrenca com um barbeiro. Caso você brigue com um, nunca mais ponha os pés lá. Quem está com a navalha é ele, não você. O pescoço é o seu, não o dele. Enfim, essas coisas do dia a dia às quais precisamos estar sempre atentos. E com garçom é a mesma coisa.
Chegou minha vez. O de sempre: diminuir o volume e fazer um corte “normal” (seja lá o que isso signifique), mas não tem muito o que inventar na minha vasta cabeleira.
– Gostou da Viviane? – ele insistiu.
– Gostei.
– Lembra quando o professor Raimundo chamava ela pra apagar a lousa?
Só queria dizer a ele que não precisava forçar tanto a barra para provar sua heterossexualidade. “Já entendi, cara. Você gosta de mulher, parabéns! Eu também. Mas isso agora não importa. Corta meu cabelo e dá um tempo!”.
Claro que não foi isso que eu disse. Melhor não contrariar quem está com a navalha na mão. Afinal, o pescoço é o meu, não o dele.
* * * * * * *
Carlos Conte, sociólogo, é também resenhista e cronista. Mantém a coluna mensal Casa de Loucos, uma homenagem aos mestres João Antônio e Lima Barreto.
sexta-feira, 5 de dezembro de 2014
Lina Bo Bardi: a arquiteta-antropóloga
CENTENÁRIO: autora de projetos famosos, como os do Masp e do Sesc Pompeia, Lina Bo Bardi, que ainda na Itália juntou-se à resistência antifascista e se dizia “stalinista”, alcança um nível de reconhecimento que não teve em vida.
por Marcos Grinspum Ferraz
[texto originalmente escrito para a revista Retrato do Brasil]
Lina Bo Bardi, nascida em Roma, na Itália, em dezembro de 1914, não só escolheu o Brasil como pátria, como foi apaixonada por este país, suas paisagens e culturas. Como ela mesma escreveu: “Naturalizei-me brasileira. Quando a gente nasce, não escolhe nada, nasce por acaso. Eu não nasci aqui, escolhi este lugar para viver. Por isso, o Brasil é meu país duas vezes, e eu me sinto cidadã de todas as cidades, desde o Cariri ao Triângulo Mineiro, às cidades do interior e da fronteira”. Mas, se a arquiteta escolheu o Brasil com tamanha convicção, o Brasil não parece tê-la aceitado, ou compreendido, do mesmo modo. Hoje celebrada como um dos maiores nomes da arquitetura mundial da segunda metade do século XX, sendo tema de exposições, livros, artigos de jornais e estudos acadêmicos, Lina não teve o mesmo reconhecimento em vida.
Na verdade, de 1946, quando desembarcou no Brasil, até sua morte, em 1992, a arquiteta enfrentou uma série de dificuldades na carreira, passou por longos períodos de ostracismo e deixou, ao todo, não mais de dez obras construídas. Entre elas estão algumas das mais notáveis edificações do Brasil moderno, como o Museu de Arte de São Paulo (Masp), o Sesc Pompeia (ambos na capital paulista) e o restaurado Solar do Unhão (em Salvador), mas poderia ter deixado mais. E, se é difícil explicar com precisão os motivos de tantas adversidades – que passam pelos fatos mais óbvios de ser mulher em uma sociedade machista, ser “estrangeira” em tempos de nacionalismo ou, ainda, ser casada com um sujeito polêmico, como Pietro Maria Bardi –, há algo notável sobre a arquiteta que se relaciona à maioria de seus fracassos e sucessos: Lina não seguiu padrões, modelos prontos e modismos, nunca escolheu os caminhos fáceis e não hesitou em experimentar, subverter e ir contra os discursos hegemônicos na política ou na cultura. Sem se enquadrar – mesmo dentro do modernismo ou da esquerda –, ela fez da arquitetura sua arma para a transformação do mundo em um lugar mais igualitário e “humano”. Incomodou e por isso pagou preços, mas deixou, ao fim, um valioso legado para a arquitetura e para o País.
“Hoje as pessoas veem a obra dela com certa esperança, com grande frescor, algo que não houve à época”, diz Zeuler Lima, professor da Washington University em Saint Louis (EUA) e autor de extensa pesquisa sobre Lina. “O discurso modernista também não abria espaço para certos experimentos, e acho que a obra dela foi bastante experimental, não só do ponto de vista tecnológico, prático, mas também na maneira como ela pensava.” O pesquisador costuma dizer que Lina foi uma arquiteta moderna, mas não modernista, já que não perseguia uma linguagem específica nem seguia determinadas regras formais em sua produção – ao contrário, por exemplo, de outros grandes, como Oscar Niemeyer. “A Lina constrói com tijolo, concreto, ferro, pedra, barro, palha, com qualquer tipo de coisa”, diz o arquiteto André Vainer, que trabalhou com Lina por cerca de 13 anos, entre 1977 e 1992. “Você olha a cobertura da Casa do Benin [Salvador, 1987], de barro, e compara com o Masp [São Paulo, 1957–1968], são coisas diametralmente opostas, e isso é um sinal de liberdade enorme, de abertura para projetar.”
Construir sem regras técnicas e formais não era algo gratuito, mas parte de uma concepção de que o arquiteto deve entender os contextos sociais e humanos de cada local para poder projetar. Para Lina, cada caso era um caso, e a arquitetura deveria ter como protagonista o ser humano, não o espaço, como ela mesma disse certa vez. “Ela olhava o espaço não como os arquitetos geralmente definem, que é um espaço vazio cartesiano geométrico, mas como os antropólogos definem, que é o espaço vivido”, diz Lima. “Iniciava um projeto com o que ela tinha, seus princípios, mas recebia do mundo e das situações, e esse diálogo criava-se na própria obra.” Quando, num fim de semana, foi pela primeira vez à velha fabrica instalada no bairro paulistano da Pompeia – que seria transformada em uma das sedes do Serviço Social do Comércio (Sesc) – e viu famílias comendo e conversando, com seus filhos brincando, Lina afirmou: “É essa a atmosfera que quero manter aqui”. Nesse sentido, diz Vainer, “a Lina representa um tipo de arquitetura que tem um respaldo com a realidade muito grande, o que é raro hoje. Ela sempre trabalhava a partir de ideias que não eram de arquitetura, mas de relacionamento humano, de sociedade, de justiça entre os homens e de comportamento”.
Se não teve tantas obras construídas, Lina foi incansável em sua produção em diferentes áreas. Foi também designer, cenógrafa, editora de revistas, curadora de museus e exposições e até “estilista” – chegou a desenhar roupas e joias, principalmente nos primeiros anos no Brasil. Mas, na verdade, tudo para ela era arquitetura. As coisas se misturavam, de modo híbrido, e tudo estava dentro de um jeito maior de pensar a profissão, o mundo e o ser humano dentro dele. “Arquitetura, para mim, é ver um velhinho, ou uma criança, com um prato cheio de comida atravessando elegantemente o espaço do nosso restaurante à procura de um lugar para se sentar, numa mesa coletiva”, disse certa vez no Sesc Pompeia. Lina trazia de sua formação em Roma, influenciada pelo professor Gustavo Giovannoni, uma ideia do “arquiteto total”. “Para ela, o arquiteto deve vestir a ‘pele do lobo’: ser cozinheiro para projetar uma boa cozinha, ser aluno e professor para projetar uma boa escola, ser ator e espectador para projetar um bom teatro”, escreve Marcelo Ferraz, arquiteto que trabalhou por 15 anos com Lina.
Para poder se propor a fazer uma arquitetura tão diversa e experimental e conseguir transitar com tamanho êxito por variados campos do conhecimento, ainda mais sendo mulher em meados do século XX, Lina precisava de conhecimentos e ferramentas poderosos. E os tinha, como relembra Vainer: “Uma capacidade de desenho e de síntese impressionante, um entendimento da história da arquitetura, uma postura ideológica muito bem definida e construída e uma postura de liberdade”. Para entender um pouco como isso foi criado, é preciso voltar à vida de Lina desde os primeiros tempos.
Os anos de infância e juventude de Achillina Bo (nome de batismo) na Itália não transcorreram em período tranquilo da história do país. Muito pelo contrário. Se a Primeira Guerra Mundial (1914–1918) acabou quando ela tinha apenas quatro anos, a ascensão do nazifascismo e a tensão do período entreguerras foram vividas de perto pela garota, que, em seus anos de formação, já demonstrava talento excepcional para a pintura e o desenho.
Após se formar na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Roma, em 1939, Lina mudou-se para Milão e foi trabalhar no escritório do célebre arquiteto Gió Ponti. Enquanto aprendia com a prática diária da profissão, Lina logo teve que lidar com a eclosão da guerra, o que a marcou de modo profundo. “Entre bombas e metralhadoras, fiz um ponto da situação: importante era sobreviver, de preferência incólume. Mas como? Senti que o único caminho era o da objetividade e racionalidade, um caminho terrivelmente difícil quando a maioria opta pelo ‘desencanto literário e nostálgico’. Sentia que o mundo podia ser salvo, mudado para melhor, que essa era a única tarefa digna de ser vivida. (...) Entrei na Resistência, com o Partido Comunista clandestino.” Em período pouco propício para a arquitetura – quando prevalecia a destruição, não a construção –, Lina intensificou o trabalho como ilustradora de revistas e jornais e como editora. Foi também aí que assimilou algumas das bases do que seria sua arquitetura até o fim da vida. “Quando as bombas demoliam sem piedade a obra e a obra [sic] do homem, compreendemos que a casa deve ser para a ‘vida’ do homem, deve servir, deve consolar, e não mostrar, numa exibição teatral, as vaidades inúteis do espírito humano. A guerra destruiu os mitos dos ‘monumentos’. Também na casa. (...) Os móveis devem ‘servir’, as cadeiras para sentar, as mesas para comer, as poltronas para ler e repousar, as camas para dormir, e a casa assim não será um lar eterno e terrível, mas uma aliada do homem, ágil e serviçal, e que pode, como o homem, morrer.”
Após chegar ao Rio de Janeiro, em 1946, Lina e Pietro (marchand, crítico de arte e jornalista) foram convidados por Assis Chateaubriand, magnata das comunicações, a ficar no Brasil para criar aqui um museu de arte. Encantada com o novo mundo, terra onde as coisas poderiam florescer livres das amarras do passado – feudal, monárquico, burguês ou de grandes guerras –, Lina convenceu Bardi a ficar. No Museu de Arte instalado na rua 7 de Abril, em São Paulo (sede do grupo Diários Associados, controlado por Chateaubriand), onde o excepcional acervo trazido pelo marido foi acomodado, Lina começou a desenvolver suas primeiras ideias de museu e expografia, que radicalizadas culminaram nos polêmicos cavaletes de vidro do Masp, hoje brutalmente banidos do local. O museu não deveria ser um recanto de memória, um túmulo obsoleto ou um depósito de obras humanas, dizia Lina, mas um lugar vivo e dinâmico, onde devem entrar “luz e ar puro”. Mais do que isso, o museu deveria ser popular, voltado a todos, em uma concepção que pautou todos os seus projetos para espaços coletivos até o fim da vida. “Tirar do museu o ar de igreja, tirar dos quadros a ‘aura’ para apresentar a obra de arte como um trabalho, altamente qualificado, mas trabalho; apresentá-lo de modo que possa ser compreendido pelos não iniciados”, escreveu Lina certa vez.
Após a experiência no museu, para o qual também projetou uma série de móveis, e a criação da revista Habitat, Lina teve sua primeira obra construída em 1951, mesmo ano em que se naturalizou brasileira. A Casa de Vidro, erguida no bairro paulistano do Morumbi, residência construída para morar com Pietro, trazia ainda grande influência da arquitetura racionalista europeia, com a qual Lina tinha tido mais contato até ali. Após ser recusada – em concurso anulado – para dar aula na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo e com o projeto do Masp, construído na avenida Paulista, já em curso, Lina viajou para sua primeira grande estada na Bahia, o que representa talvez a grande transformação em suas ideias e obra.
Convidada para dar um curso e, posteriormente, criar o Museu de Arte Moderna da Bahia, no teatro Castro Alves, a arquiteta entrou em contato com outro Brasil, com a cultura popular e com realidades que desconhecia em São Paulo e no Rio. Lá também projetou a restauração do Solar do Unhão, um importante conjunto arquitetônico de Salvador, e conheceu o cineasta Glauber Rocha, o etnólogo Pierre Verger e outros importantes intelectuais.
Em 1964, de volta a São Paulo, já com as tensões geradas pelo golpe militar, Lina continuou tocando as obras do Masp, inaugurado finalmente em 1968. No entanto, mais engajada com a contracultura e com a luta contra a ditadura, Lina passou a apoiar a guerrilha nos chamados anos de chumbo, num capítulo pouco conhecido de sua vida. Sabe-se que a arquiteta sediou em sua casa reuniões da Ação Libertadora Nacional (ALN), grupo de Carlos Marighella, e foi perseguida pelos agentes da repressão. Com os bons contatos que tinha, principalmente o apoio do marido – homem bem relacionado e não engajado na luta política –, Lina se exilou na Itália por cerca de uma ano, enquanto um processo de prisão corria na Justiça Militar brasileira. Lina voltou em 1971, quando os militares revogaram sua prisão preventiva (imagem ao lado). A posição política da arquiteta, aparentemente bastante à esquerda e engajada quando se analisam episódios como esse, é relativizada por alguns pesquisadores de sua vida, que enxergam uma série de contradições em suas posições ao longo da vida. Lina foi amiga de figuras conservadoras e trabalhou com políticos de direita em certos momentos, ao mesmo tempo em que foi próxima de artistas libertários e chegou a afirmar, mais de uma vez, ser “stalinista”.
“É uma pessoa muito complexa”, diz Vainer. “Às vezes eu fico tentando enquadrá-la, mas a verdade é que não dá. Quando ela dizia que era ‘stalinista’, isso estava muito mais ligado ao papel que Stalin teve durante a Segunda Guerra Mundial, que possibilitou que os Aliados vencessem os nazifascistas, do que a qualquer outro sentido atribuído ao termo, como os relacionados a expurgos, matanças. Ela era mais ligada a uma esquerda mais moderna, desligada do ‘partidão’, da União Soviética. Era heterogênea.” O documento da revogação do pedido de prisão na época da ditadura , por exemplo, foi dado por Lina à Vainer e Ferraz nos anos 1980, em uma pastinha que continha também uma foto de Che Guevara e outra de Lenin. “Ela tinha uma vida burguesa, afinal o Bardi tinha muito dinheiro”, diz Vainer. “E por isso também fez gratuitamente os projetos do Masp e da Igreja de Uberlândia. E acho que isso é também uma espécie de distribuição de renda, uma postura socialista de certa maneira. Algo como: ‘Eu não preciso desse dinheiro, mas quero doar meu conhecimento’.”
Seja como for, com suas contradições e coerências – Lina também gostava de chocar, o que deve ser levado em conta –, o fato é que sua arquitetura sempre foi de propósito social, acessível e humanizada. O Sesc Pompeia, para o qual a arquiteta foi chamada após longos anos “colocada de escanteio” pelo poder político e também pela arquitetura dominante, talvez seja a experiência mais bem-sucedida de Lina no sentido de utilizar a arquitetura para criar um espaço democrático e igualitário. Nos anos seguintes, entre 1986 e 1990, já bastante madura e calejada, Lina pôde, em seu segundo período na Bahia, fazer uma série de projetos, como Casa do Benin, Casa do Olodum e Ladeira da Misericórdia – o qual viu ser abandonado e parcialmente destruído ainda em vida. Ali levou ao máximo sua experiência como arquiteta-antropóloga, se assim podemos dizer, investigando e vivenciando intensamente a cultura popular baiana e afro-brasileira.
“Lina tinha um grande idealismo. E isso é diferente de utopia, pois era um idealismo de pensar não o impossível, mas o possível. Pensar um futuro melhor não abstratamente, mas no que existe, no aqui e no agora”, diz Lima. “Ela era uma pessoa extremamente generosa com a arquitetura, com a ideia de que a arquitetura tem um propósito e que ele tem que ser social, humano”, conclui. Com a visão de alguém que conviveu de perto por tanto tempo, com uma experiência não só profissional, mas afetiva e de amizade, Vainer ressalta que a generosidade ia para muito além da arquitetura. “Tanto que ela deu para mim e para o Ferraz isso tudo que temos. Ela nunca regulou conhecimento, sempre nos ensinou, exigiu que a gente tivesse uma postura em relação ao trabalho, às ideias. Quando a gente se conheceu, ela tinha 63 anos, eu 23 e o Ferraz, 22. E acho que ela pensou: ‘Vou pegar esses dois caras, porque eu preciso de alguém para fazer os desenhos e tal, mas também vou pegar para ensinar’.”
Em tempos de arquitetura monumental e extremamente cara, por vezes pouco conectada às realidades e contextos locais, Lina ressurge como outro modo possível de se pensar e fazer. Se isso ocorre um tanto tardiamente, o que importa é que a arquiteta é cada vez mais lembrada e difundida, especialmente no ano de seu centenário. “A obra da Lina não era como essa arquitetura ‘do espetáculo’, que é basicamente um exercício de técnica e virtuosismo, tão distante da realidade do homem”, diz Vainer, referindo-se a uma arquitetura de obras faraônicas que predominou nos anos 1990 e 2000. Na mesma linha, Lima conclui: “A arquitetura de Lina é espetacular, não é ‘do espetáculo’. É de propósito à vida”.
Marcos Grinspum Ferraz, jornalista e saxofonista da banda Trupe Chá de Boldo mantém a coluna mensal Verbo Sonoro, sobre cultura, música e afins. Crédito da imagem de abertura: Arquivo Joaquim Guedes
por Marcos Grinspum Ferraz
[texto originalmente escrito para a revista Retrato do Brasil]
Lina Bo Bardi, nascida em Roma, na Itália, em dezembro de 1914, não só escolheu o Brasil como pátria, como foi apaixonada por este país, suas paisagens e culturas. Como ela mesma escreveu: “Naturalizei-me brasileira. Quando a gente nasce, não escolhe nada, nasce por acaso. Eu não nasci aqui, escolhi este lugar para viver. Por isso, o Brasil é meu país duas vezes, e eu me sinto cidadã de todas as cidades, desde o Cariri ao Triângulo Mineiro, às cidades do interior e da fronteira”. Mas, se a arquiteta escolheu o Brasil com tamanha convicção, o Brasil não parece tê-la aceitado, ou compreendido, do mesmo modo. Hoje celebrada como um dos maiores nomes da arquitetura mundial da segunda metade do século XX, sendo tema de exposições, livros, artigos de jornais e estudos acadêmicos, Lina não teve o mesmo reconhecimento em vida.
Na verdade, de 1946, quando desembarcou no Brasil, até sua morte, em 1992, a arquiteta enfrentou uma série de dificuldades na carreira, passou por longos períodos de ostracismo e deixou, ao todo, não mais de dez obras construídas. Entre elas estão algumas das mais notáveis edificações do Brasil moderno, como o Museu de Arte de São Paulo (Masp), o Sesc Pompeia (ambos na capital paulista) e o restaurado Solar do Unhão (em Salvador), mas poderia ter deixado mais. E, se é difícil explicar com precisão os motivos de tantas adversidades – que passam pelos fatos mais óbvios de ser mulher em uma sociedade machista, ser “estrangeira” em tempos de nacionalismo ou, ainda, ser casada com um sujeito polêmico, como Pietro Maria Bardi –, há algo notável sobre a arquiteta que se relaciona à maioria de seus fracassos e sucessos: Lina não seguiu padrões, modelos prontos e modismos, nunca escolheu os caminhos fáceis e não hesitou em experimentar, subverter e ir contra os discursos hegemônicos na política ou na cultura. Sem se enquadrar – mesmo dentro do modernismo ou da esquerda –, ela fez da arquitetura sua arma para a transformação do mundo em um lugar mais igualitário e “humano”. Incomodou e por isso pagou preços, mas deixou, ao fim, um valioso legado para a arquitetura e para o País.
“Hoje as pessoas veem a obra dela com certa esperança, com grande frescor, algo que não houve à época”, diz Zeuler Lima, professor da Washington University em Saint Louis (EUA) e autor de extensa pesquisa sobre Lina. “O discurso modernista também não abria espaço para certos experimentos, e acho que a obra dela foi bastante experimental, não só do ponto de vista tecnológico, prático, mas também na maneira como ela pensava.” O pesquisador costuma dizer que Lina foi uma arquiteta moderna, mas não modernista, já que não perseguia uma linguagem específica nem seguia determinadas regras formais em sua produção – ao contrário, por exemplo, de outros grandes, como Oscar Niemeyer. “A Lina constrói com tijolo, concreto, ferro, pedra, barro, palha, com qualquer tipo de coisa”, diz o arquiteto André Vainer, que trabalhou com Lina por cerca de 13 anos, entre 1977 e 1992. “Você olha a cobertura da Casa do Benin [Salvador, 1987], de barro, e compara com o Masp [São Paulo, 1957–1968], são coisas diametralmente opostas, e isso é um sinal de liberdade enorme, de abertura para projetar.”
Construir sem regras técnicas e formais não era algo gratuito, mas parte de uma concepção de que o arquiteto deve entender os contextos sociais e humanos de cada local para poder projetar. Para Lina, cada caso era um caso, e a arquitetura deveria ter como protagonista o ser humano, não o espaço, como ela mesma disse certa vez. “Ela olhava o espaço não como os arquitetos geralmente definem, que é um espaço vazio cartesiano geométrico, mas como os antropólogos definem, que é o espaço vivido”, diz Lima. “Iniciava um projeto com o que ela tinha, seus princípios, mas recebia do mundo e das situações, e esse diálogo criava-se na própria obra.” Quando, num fim de semana, foi pela primeira vez à velha fabrica instalada no bairro paulistano da Pompeia – que seria transformada em uma das sedes do Serviço Social do Comércio (Sesc) – e viu famílias comendo e conversando, com seus filhos brincando, Lina afirmou: “É essa a atmosfera que quero manter aqui”. Nesse sentido, diz Vainer, “a Lina representa um tipo de arquitetura que tem um respaldo com a realidade muito grande, o que é raro hoje. Ela sempre trabalhava a partir de ideias que não eram de arquitetura, mas de relacionamento humano, de sociedade, de justiça entre os homens e de comportamento”.
Se não teve tantas obras construídas, Lina foi incansável em sua produção em diferentes áreas. Foi também designer, cenógrafa, editora de revistas, curadora de museus e exposições e até “estilista” – chegou a desenhar roupas e joias, principalmente nos primeiros anos no Brasil. Mas, na verdade, tudo para ela era arquitetura. As coisas se misturavam, de modo híbrido, e tudo estava dentro de um jeito maior de pensar a profissão, o mundo e o ser humano dentro dele. “Arquitetura, para mim, é ver um velhinho, ou uma criança, com um prato cheio de comida atravessando elegantemente o espaço do nosso restaurante à procura de um lugar para se sentar, numa mesa coletiva”, disse certa vez no Sesc Pompeia. Lina trazia de sua formação em Roma, influenciada pelo professor Gustavo Giovannoni, uma ideia do “arquiteto total”. “Para ela, o arquiteto deve vestir a ‘pele do lobo’: ser cozinheiro para projetar uma boa cozinha, ser aluno e professor para projetar uma boa escola, ser ator e espectador para projetar um bom teatro”, escreve Marcelo Ferraz, arquiteto que trabalhou por 15 anos com Lina.
Para poder se propor a fazer uma arquitetura tão diversa e experimental e conseguir transitar com tamanho êxito por variados campos do conhecimento, ainda mais sendo mulher em meados do século XX, Lina precisava de conhecimentos e ferramentas poderosos. E os tinha, como relembra Vainer: “Uma capacidade de desenho e de síntese impressionante, um entendimento da história da arquitetura, uma postura ideológica muito bem definida e construída e uma postura de liberdade”. Para entender um pouco como isso foi criado, é preciso voltar à vida de Lina desde os primeiros tempos.
Os anos de infância e juventude de Achillina Bo (nome de batismo) na Itália não transcorreram em período tranquilo da história do país. Muito pelo contrário. Se a Primeira Guerra Mundial (1914–1918) acabou quando ela tinha apenas quatro anos, a ascensão do nazifascismo e a tensão do período entreguerras foram vividas de perto pela garota, que, em seus anos de formação, já demonstrava talento excepcional para a pintura e o desenho.
Após chegar ao Rio de Janeiro, em 1946, Lina e Pietro (marchand, crítico de arte e jornalista) foram convidados por Assis Chateaubriand, magnata das comunicações, a ficar no Brasil para criar aqui um museu de arte. Encantada com o novo mundo, terra onde as coisas poderiam florescer livres das amarras do passado – feudal, monárquico, burguês ou de grandes guerras –, Lina convenceu Bardi a ficar. No Museu de Arte instalado na rua 7 de Abril, em São Paulo (sede do grupo Diários Associados, controlado por Chateaubriand), onde o excepcional acervo trazido pelo marido foi acomodado, Lina começou a desenvolver suas primeiras ideias de museu e expografia, que radicalizadas culminaram nos polêmicos cavaletes de vidro do Masp, hoje brutalmente banidos do local. O museu não deveria ser um recanto de memória, um túmulo obsoleto ou um depósito de obras humanas, dizia Lina, mas um lugar vivo e dinâmico, onde devem entrar “luz e ar puro”. Mais do que isso, o museu deveria ser popular, voltado a todos, em uma concepção que pautou todos os seus projetos para espaços coletivos até o fim da vida. “Tirar do museu o ar de igreja, tirar dos quadros a ‘aura’ para apresentar a obra de arte como um trabalho, altamente qualificado, mas trabalho; apresentá-lo de modo que possa ser compreendido pelos não iniciados”, escreveu Lina certa vez.
Inédito: a prisão preventiva de Lina revogada |
Convidada para dar um curso e, posteriormente, criar o Museu de Arte Moderna da Bahia, no teatro Castro Alves, a arquiteta entrou em contato com outro Brasil, com a cultura popular e com realidades que desconhecia em São Paulo e no Rio. Lá também projetou a restauração do Solar do Unhão, um importante conjunto arquitetônico de Salvador, e conheceu o cineasta Glauber Rocha, o etnólogo Pierre Verger e outros importantes intelectuais.
Em 1964, de volta a São Paulo, já com as tensões geradas pelo golpe militar, Lina continuou tocando as obras do Masp, inaugurado finalmente em 1968. No entanto, mais engajada com a contracultura e com a luta contra a ditadura, Lina passou a apoiar a guerrilha nos chamados anos de chumbo, num capítulo pouco conhecido de sua vida. Sabe-se que a arquiteta sediou em sua casa reuniões da Ação Libertadora Nacional (ALN), grupo de Carlos Marighella, e foi perseguida pelos agentes da repressão. Com os bons contatos que tinha, principalmente o apoio do marido – homem bem relacionado e não engajado na luta política –, Lina se exilou na Itália por cerca de uma ano, enquanto um processo de prisão corria na Justiça Militar brasileira. Lina voltou em 1971, quando os militares revogaram sua prisão preventiva (imagem ao lado). A posição política da arquiteta, aparentemente bastante à esquerda e engajada quando se analisam episódios como esse, é relativizada por alguns pesquisadores de sua vida, que enxergam uma série de contradições em suas posições ao longo da vida. Lina foi amiga de figuras conservadoras e trabalhou com políticos de direita em certos momentos, ao mesmo tempo em que foi próxima de artistas libertários e chegou a afirmar, mais de uma vez, ser “stalinista”.
Sesc Pompéia, SP: espaço público igualitário e democrático |
“Lina tinha um grande idealismo. E isso é diferente de utopia, pois era um idealismo de pensar não o impossível, mas o possível. Pensar um futuro melhor não abstratamente, mas no que existe, no aqui e no agora”, diz Lima. “Ela era uma pessoa extremamente generosa com a arquitetura, com a ideia de que a arquitetura tem um propósito e que ele tem que ser social, humano”, conclui. Com a visão de alguém que conviveu de perto por tanto tempo, com uma experiência não só profissional, mas afetiva e de amizade, Vainer ressalta que a generosidade ia para muito além da arquitetura. “Tanto que ela deu para mim e para o Ferraz isso tudo que temos. Ela nunca regulou conhecimento, sempre nos ensinou, exigiu que a gente tivesse uma postura em relação ao trabalho, às ideias. Quando a gente se conheceu, ela tinha 63 anos, eu 23 e o Ferraz, 22. E acho que ela pensou: ‘Vou pegar esses dois caras, porque eu preciso de alguém para fazer os desenhos e tal, mas também vou pegar para ensinar’.”
Em tempos de arquitetura monumental e extremamente cara, por vezes pouco conectada às realidades e contextos locais, Lina ressurge como outro modo possível de se pensar e fazer. Se isso ocorre um tanto tardiamente, o que importa é que a arquiteta é cada vez mais lembrada e difundida, especialmente no ano de seu centenário. “A obra da Lina não era como essa arquitetura ‘do espetáculo’, que é basicamente um exercício de técnica e virtuosismo, tão distante da realidade do homem”, diz Vainer, referindo-se a uma arquitetura de obras faraônicas que predominou nos anos 1990 e 2000. Na mesma linha, Lima conclui: “A arquitetura de Lina é espetacular, não é ‘do espetáculo’. É de propósito à vida”.
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Marcos Grinspum Ferraz, jornalista e saxofonista da banda Trupe Chá de Boldo mantém a coluna mensal Verbo Sonoro, sobre cultura, música e afins. Crédito da imagem de abertura: Arquivo Joaquim Guedes
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Vai sim
por Júnia Puglia ilustração Fernando Vianna
Eita 2014 da moléstia! Não passaram três dias sem alguma notícia trágica. Quantas bruxas precisam estar à solta pra fazer tamanho estrago? Já aprontaram de um tudo, desembestadas, mirando a torto e a mais torto. No meio do ano, quando a cota de maldades me parecia cumprida, considerei que 2014 estava bom de acabar, mas não, ele insistiu, e ainda teve muito mais. Sobrou até pro Chespirito, o querido Chaves do pessoal da geração seguinte.
Estar vivo ainda é a única condição indispensável para se morrer, mas que urgência foi essa que apareceu na produção? E no atacado, valhamedeus! Vamos parando aí, bruxaiada! Voltem a se ocupar com poções, maus olhados, chuvas, raios e trovões, voos de vassoura turbinada, servicinhos leves. Ou, melhor ainda, tirem umas férias em Júpiter ou Plutão, enquanto a gente aqui descansa um bocado dessa trabalheira de vocês.
Bruxas que se prezam estão sempre acompanhadas de urubus, que adoram uma teoria conspiratória destrambelhada, um comentário ferino sobre o que não entendem, uma matéria venenosa no blog político. Perdem amigos e a compostura, mas não perdem o comentário e o veneno. Em ano de eleição, então, se esbaldam. Teve de sobra, não é?
Na era dos retratos instantâneos, rebatizados de selfies, e das redes sociais, a gente está o tempo todo na berlinda, ainda que longe de ocupar ou mesmo aspirar a ocupar algum degrau na escala das celebridades. Até para tomar um café no boteco tem que ter cuidado. Vai que alguma câmera pouco amiga te pilha meio caidinha, antes das oito da manhã, ou com pelos de dois milímetros à mostra nas axilas, e pronto. Sua reputação de coroa que encara mais alguns caldos vai para o vinagre.
Mas não tem nada não, moçada! O ano finalmente está se despedindo, exausto, quase se arrastando, depois de segurar até campanha política com tragédia no pacote, além de um rebuliço danado no cenário institucional investigativo corruptivo. O clima de fim de ano já se instalou. Festas e comilanças na agenda, com os personagens, cardápios e piadas de sempre. A confraternização corporativa é inescapável, à base de cerveja morna, vinho no copo de plástico, champanhe duvidoso, perus, chesters e companhias aladas e assadas. É hora de celebrar. Porque está demorando um bocado, mas 2014 vai embora, ah se vai!
* * * * * *
Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com
quinta-feira, 4 de dezembro de 2014
Bar do Elvis
por Carlos Conte*
Mais uma crônica de bar. Na verdade, um ex-bar: depois da morte do Vavá, foi demolido e se não me engano virou estacionamento. Vavá era dono de bar à moda antiga. Jaleco branco, cabelos igualmente brancos e meio amarelados, metodicamente penteados para trás e fixados com gel, magro, alto, fã do Elvis. Tão fã que muita gente chamava o lugar de bar do Elvis: um bar temático numa época em que não se falava em bares temáticos. Ali era parada obrigatória do bloco de carnaval Vai-Quem-Quer.
O lugar era bem estreito, pequeno, com um longo balcão dividindo o salão em duas partes desde a porta até os fundos, onde ficava o banheiro. As paredes eram forradas de objetos do rei: cartazes, quadros, discos. Na TV, sempre estava passando algum vídeo do Elvis, e me lembro de ter visto inteiro o show que ele fez no Havaí nos anos 70: o Elvis de colar havaiano usando aquelas roupas coloridas bregas que eu nunca entendi direito, e que são a sua marca registrada, tanto que se você entrar em qualquer loja de fantasia e pedir uma do Elvis vão lhe trazer a versão azul ou dourada de um macacão, além de umas costeletas postiças. Eu sei porque meu pai uma vez foi de Elvis numa festa. Eu estava de gladiador. Uma dupla realmente incrível.
Ali no bar do Elvis tinha umas figuras carimbadas. Todo bar tem. Sempre estava lá um velho barbudo que eu e o Dudu apelidamos só entre nós de Velho Marinheiro, por causa da boininha na cabeça. Uma vez, o Velho Marinheiro dormiu no balcão, e logo em seguida as pessoas começaram a ver uma poça de mijo crescendo embaixo dele, formando uma represa de mijo no chão do bar! Sonhando estar diante de uma privada ou uma árvore, o Velho simplesmente tirou pra fora e começou a fazer ali mesmo. Mas não foi de sacanagem. O Velho, na verdade, era um tipo muito interessante. Tinha estilo. Mijou de bêbado, mas mijou com estilo, dormindo, a braguilha discretamente aberta, apoiando-se no balcão. Depois, como sempre, alguém chamou o táxi, pôs o Velho lá, e o Vavá telefonou para a mulher avisando que o marido bebum estava a caminho.
Num texto chamado “Supermarket”, eu anunciei, bem de passagem, a história que eu vou contar agora. Na verdade foi o irmão mais novo João, e não o próprio Vavá, que uma vez puxou papo comigo e me revelou o verdadeiro motivo da morte do rei do rock. João era tão fanático pelo Elvis quanto o Vavá. Acho que nesse dia o Galo estava tomando cerveja comigo.
– Vou contar uma coisa – disse o João, como se viesse dar uma notícia quente. –Infelizmente o Elvis morreu.
– Morreu sim – respondi.
– Pois tem gente que acha que ele não morreu, mas que ele fugiu, sem deixar pistas! Hoje vive escondido em algum lugar, protegido por uma tal lei de proteção a testemunhas ou alguma coisa do tipo. Mas isso é coisa de fanático! Eu não caio nessa conversa! Com tanto paparazzi, já teriam pegado ele de sunga numa praia do Caribe, você não acha?
Concordei com o João: Elvis estava morto.
– “Elvis não morreu” é uma isca pra manter as lojas vendendo – eu disse, com ares de sociólogo de boteco.
– Dizem que foi droga, mas não foi droga.
– Isso eu não sabia, João. Achei que tinha sido abuso de calmante ou...
– Ele morreu cagando.
– Sério?
– Sério. Acharam o corpo caído no chão do banheiro, mas ele estava sentado na privada fazendo força quando a veia da cabeça se rompeu.
– Quê?!
– Ele só comia lanche do Mc Donald’s! Gente assim não dura. Falta fibra no organismo e aí prende tudo. O Elvis fez tanta força que a veia não aguentou! E aí, você sabe, a versão oficial não vai ser essa, por respeito à imagem do ídolo etc. e tal... mas a realidade pouca gente sabe. Eu sei porque estudei.
– Leu numa biografia?
– Nenhuma biografia vai falar isso porque todos foram muito bem pagos para calar o bico. Você mesmo disse: as lojas têm que continuar vendendo camisas com a cara do rei. E assim a banda toca. Você sabe...
Então, calou-se. Enquanto passava flanela na TV, seus olhos fixaram a tela: ali estava Elvis cantando Love Me Tender. Seu rosto, cada vez mais próximo do rosto do Rei, iluminou-se, e em movimentos circulares João passava o pano na tela como se fizesse carinho no jovem Elvis que cantava “Ame-me com ternura / Ame-me com doçura / Nunca me deixe partir”. Da escatologia às lágrimas: João começou a chorar. Aí me dei conta de que o assunto era sério. Resolvi não perguntar mais nada. É duro falar da morte de um ídolo.
“Então o Rei morreu no lugar apropriado: o trono!”. Ia fazer essa piada mas felizmente desisti. Era hora de chorar.
Carlos Conte, sociólogo, é também resenhista e cronista. Mantém a coluna mensal Casa de Loucos, uma homenagem aos mestres João Antônio e Lima Barreto. Imagem: Futepoca
Mais uma crônica de bar. Na verdade, um ex-bar: depois da morte do Vavá, foi demolido e se não me engano virou estacionamento. Vavá era dono de bar à moda antiga. Jaleco branco, cabelos igualmente brancos e meio amarelados, metodicamente penteados para trás e fixados com gel, magro, alto, fã do Elvis. Tão fã que muita gente chamava o lugar de bar do Elvis: um bar temático numa época em que não se falava em bares temáticos. Ali era parada obrigatória do bloco de carnaval Vai-Quem-Quer.
O lugar era bem estreito, pequeno, com um longo balcão dividindo o salão em duas partes desde a porta até os fundos, onde ficava o banheiro. As paredes eram forradas de objetos do rei: cartazes, quadros, discos. Na TV, sempre estava passando algum vídeo do Elvis, e me lembro de ter visto inteiro o show que ele fez no Havaí nos anos 70: o Elvis de colar havaiano usando aquelas roupas coloridas bregas que eu nunca entendi direito, e que são a sua marca registrada, tanto que se você entrar em qualquer loja de fantasia e pedir uma do Elvis vão lhe trazer a versão azul ou dourada de um macacão, além de umas costeletas postiças. Eu sei porque meu pai uma vez foi de Elvis numa festa. Eu estava de gladiador. Uma dupla realmente incrível.
Ali no bar do Elvis tinha umas figuras carimbadas. Todo bar tem. Sempre estava lá um velho barbudo que eu e o Dudu apelidamos só entre nós de Velho Marinheiro, por causa da boininha na cabeça. Uma vez, o Velho Marinheiro dormiu no balcão, e logo em seguida as pessoas começaram a ver uma poça de mijo crescendo embaixo dele, formando uma represa de mijo no chão do bar! Sonhando estar diante de uma privada ou uma árvore, o Velho simplesmente tirou pra fora e começou a fazer ali mesmo. Mas não foi de sacanagem. O Velho, na verdade, era um tipo muito interessante. Tinha estilo. Mijou de bêbado, mas mijou com estilo, dormindo, a braguilha discretamente aberta, apoiando-se no balcão. Depois, como sempre, alguém chamou o táxi, pôs o Velho lá, e o Vavá telefonou para a mulher avisando que o marido bebum estava a caminho.
Num texto chamado “Supermarket”, eu anunciei, bem de passagem, a história que eu vou contar agora. Na verdade foi o irmão mais novo João, e não o próprio Vavá, que uma vez puxou papo comigo e me revelou o verdadeiro motivo da morte do rei do rock. João era tão fanático pelo Elvis quanto o Vavá. Acho que nesse dia o Galo estava tomando cerveja comigo.
– Vou contar uma coisa – disse o João, como se viesse dar uma notícia quente. –Infelizmente o Elvis morreu.
– Morreu sim – respondi.
– Pois tem gente que acha que ele não morreu, mas que ele fugiu, sem deixar pistas! Hoje vive escondido em algum lugar, protegido por uma tal lei de proteção a testemunhas ou alguma coisa do tipo. Mas isso é coisa de fanático! Eu não caio nessa conversa! Com tanto paparazzi, já teriam pegado ele de sunga numa praia do Caribe, você não acha?
Concordei com o João: Elvis estava morto.
– “Elvis não morreu” é uma isca pra manter as lojas vendendo – eu disse, com ares de sociólogo de boteco.
– Dizem que foi droga, mas não foi droga.
– Isso eu não sabia, João. Achei que tinha sido abuso de calmante ou...
– Ele morreu cagando.
– Sério?
– Sério. Acharam o corpo caído no chão do banheiro, mas ele estava sentado na privada fazendo força quando a veia da cabeça se rompeu.
– Quê?!
– Ele só comia lanche do Mc Donald’s! Gente assim não dura. Falta fibra no organismo e aí prende tudo. O Elvis fez tanta força que a veia não aguentou! E aí, você sabe, a versão oficial não vai ser essa, por respeito à imagem do ídolo etc. e tal... mas a realidade pouca gente sabe. Eu sei porque estudei.
– Leu numa biografia?
– Nenhuma biografia vai falar isso porque todos foram muito bem pagos para calar o bico. Você mesmo disse: as lojas têm que continuar vendendo camisas com a cara do rei. E assim a banda toca. Você sabe...
Então, calou-se. Enquanto passava flanela na TV, seus olhos fixaram a tela: ali estava Elvis cantando Love Me Tender. Seu rosto, cada vez mais próximo do rosto do Rei, iluminou-se, e em movimentos circulares João passava o pano na tela como se fizesse carinho no jovem Elvis que cantava “Ame-me com ternura / Ame-me com doçura / Nunca me deixe partir”. Da escatologia às lágrimas: João começou a chorar. Aí me dei conta de que o assunto era sério. Resolvi não perguntar mais nada. É duro falar da morte de um ídolo.
“Então o Rei morreu no lugar apropriado: o trono!”. Ia fazer essa piada mas felizmente desisti. Era hora de chorar.
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Carlos Conte, sociólogo, é também resenhista e cronista. Mantém a coluna mensal Casa de Loucos, uma homenagem aos mestres João Antônio e Lima Barreto. Imagem: Futepoca
quarta-feira, 3 de dezembro de 2014
Eu odeio guarda-chuva
por Maria Shirts*
A minha vida ficou muito melhor quando eu aceitei o fato de que guarda-chuvas são inúteis. Para não dizer que não servem para absolutamente nada, me limito a concordar que só ajudam para proteger cabelos e ombros, uma funcionalidade pouco interessante para a inconveniência que geram.
Se as pessoas aceitassem tomar uma chuvinha, ou esperassem as tempestades passarem debaixo dos toldos de boteco, não encharcariam os ônibus ou quaisquer outros estabelecimentos que oferecem refúgio àqueles que notam, no meio do caminho, que o acessório não dá conta do recado. (Quem nunca se viu entrando num café para esperar o mau tempo passar, com ou sem a porcaria do guarda-chuva?).
Além de molharem o chão – podendo, inclusive, causar um acidente –, são pesados, caros e ocupam demasiado espaço. Não bastassem todas essas inconveniências, me parece que foram feitos para serem esquecidos. Naturalmente: você chega a algum lugar, enquanto chove, recosta o trambolho na parede para se livrar logo e, quando vai embora, esquece de resgatá-lo, porque a chuva quase sempre cessa antes da partida (principalmente quando falamos em chuvas tropicais).
Lembro que esse era um motivo de alguma discórdia na residência Shirts. Meu pai, gringo bem humorado com um quê consumista, comprava cinco guarda-chuvas por semana na época das tempestades tropicais, não só para fazer piada ou justiça ao physique du role do bom americano, mas também porque eu, filha ingrata, perdia todos eles – um por dia. A época de chuvas parou, mas painho continuava a comprá-los para não perder a piada, falando que na verdade eles estavam se reproduzindo na porta de casa.
Outros parentes me reprimiram pela falta de atenção. Repetidas vezes ouvi, de minha vó, que eu tinha sumido com todas as “sombrinhas” da sua casa – algo tão condenável que só perde para o sequestro de tupperwares.
Em suma, resolvi abdicar do acessório. Mas confesso que achei garboso vê-lo em várias formas e cores pelas ruas de Belém do Pará, onde são usados como refúgio do Sol – aí sim, com uma utilidade respeitável.
Maria Shirts, internacionalista e pedestrianista, mantém a coluna Transeunte Urbana.
A minha vida ficou muito melhor quando eu aceitei o fato de que guarda-chuvas são inúteis. Para não dizer que não servem para absolutamente nada, me limito a concordar que só ajudam para proteger cabelos e ombros, uma funcionalidade pouco interessante para a inconveniência que geram.
Se as pessoas aceitassem tomar uma chuvinha, ou esperassem as tempestades passarem debaixo dos toldos de boteco, não encharcariam os ônibus ou quaisquer outros estabelecimentos que oferecem refúgio àqueles que notam, no meio do caminho, que o acessório não dá conta do recado. (Quem nunca se viu entrando num café para esperar o mau tempo passar, com ou sem a porcaria do guarda-chuva?).
Além de molharem o chão – podendo, inclusive, causar um acidente –, são pesados, caros e ocupam demasiado espaço. Não bastassem todas essas inconveniências, me parece que foram feitos para serem esquecidos. Naturalmente: você chega a algum lugar, enquanto chove, recosta o trambolho na parede para se livrar logo e, quando vai embora, esquece de resgatá-lo, porque a chuva quase sempre cessa antes da partida (principalmente quando falamos em chuvas tropicais).
Lembro que esse era um motivo de alguma discórdia na residência Shirts. Meu pai, gringo bem humorado com um quê consumista, comprava cinco guarda-chuvas por semana na época das tempestades tropicais, não só para fazer piada ou justiça ao physique du role do bom americano, mas também porque eu, filha ingrata, perdia todos eles – um por dia. A época de chuvas parou, mas painho continuava a comprá-los para não perder a piada, falando que na verdade eles estavam se reproduzindo na porta de casa.
Outros parentes me reprimiram pela falta de atenção. Repetidas vezes ouvi, de minha vó, que eu tinha sumido com todas as “sombrinhas” da sua casa – algo tão condenável que só perde para o sequestro de tupperwares.
Em suma, resolvi abdicar do acessório. Mas confesso que achei garboso vê-lo em várias formas e cores pelas ruas de Belém do Pará, onde são usados como refúgio do Sol – aí sim, com uma utilidade respeitável.
* * * * * * * * *
Maria Shirts, internacionalista e pedestrianista, mantém a coluna Transeunte Urbana.
terça-feira, 2 de dezembro de 2014
O encantador de palavras
por Celso Vicenzi*
Constam nos registros que Manoel Wenceslau Leite de Barros, que se assinava Manoel de Barros, faleceu no dia 13 de novembro de 2014, aos 97 anos. Posto que tudo é finito e um dia completa o seu ciclo, isso é o que menos importa. O essencial é que semeou palavras que brotam e rebrotam a cada nova leitura. Sabia que a vida tem hora marcada para terminar. E não perdeu tempo. No documentário “Só dez por cento é mentira”, lançado por Pedro Cezar em 2008, o poeta, que construiu uma obra exuberante sobre as “grandezas do ínfimo”, resumiu, pleno de consciência: “A gente nasce, cresce, amadurece, envelhece, morre. Pra não morrer, tem que amarrar o tempo no poste. Eis a ciência da poesia: amarrar o tempo no poste”.
Ciente de que “Desaprender oito horas por dia ensina os princípios”, estabeleceu para si uma outra rotina. “Não aguento ser apenas um sujeito que abre / portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que / compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora, / que aponta lápis, que vê a uva etc. etc. / Perdoai. / Mas eu preciso ser Outros. / Eu penso renovar o homem usando borboletas.”
Poetas, escritores, músicos, artistas de modo geral são alguns dos que procuram “amarrar o tempo no poste”. Dão algum sentido à vida para que não seja apenas a soma de esforços pela sobrevivência – e, em muitos casos, a busca desenfreada da opulência, com apetites insaciáveis que destroem a natureza, sem que tanto consumo e riqueza sejam capazes de preencher os buracos da alma e dar um pouco de plenitude ao tempo que vai do nascimento à morte.
Manoel de Barros, desde cedo, foi enfeitiçado pelo verbo que “delira”. E se tornou “encantador de palavras”. Fez desse feitiço o seu ofício, não sem antes esbarrar com todas as exigências de uma vida que pede muito mais utilidades do que poesias “sobre nada”. Ele só “queria crescer pra passarinho” e essa sabedoria o levou a roçar o infinito e devolver o ínfimo grão de pó à poeira interestelar.
Foi o poeta que iluminou “o silêncio das coisas anônimas”, desconstruiu estruturas para se aproximar da “infância da língua” com o intuito de “causar distúrbios no idioma”. Tanta originalidade e beleza acabou por criar um “idioleto manoelês archaico”. Uma nova forma de “desver o mundo”. É uma poesia que se faz de “inutensílios”, coisas, objetos e resíduos desprezados no cotidiano, tudo “o que pode ser carregado como papel pelo vento”. E tudo o que está na natureza: aves, árvores, rãs, lesmas, musgo, limo, água, barro, bichos e gentes, de todos os tipos, principalmente como Bernardo, dono de um acervo que incluía “um martelo de pregar água” e um “guindaste de levantar vento”.
A fábrica de palavras de Manoel de Barros vai do chão ao céu e contempla tudo que se move e respira, e presta atenção – mais que isso, louvação! – às miudezas de seres e objetos que compõem a paisagem dos dias e noites de uma vida a contemplar o infinito ao seu redor.
Celso Vicenzi, jornalista, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina, com atuação em rádio, TV, jornal, revista e assessoria de imprensa. Prêmio Esso de Ciência e Tecnologia. Autor de “Gol é Orgasmo”, com ilustrações de Paulo Caruso, editora Unisul. Escreve humor no tuíter @celso_vicenzi. “Tantos anos como autodidata me transformaram nisso que hoje sou: um autoignorante!”. Mantém no NR a coluna Letras e Caracteres.
Constam nos registros que Manoel Wenceslau Leite de Barros, que se assinava Manoel de Barros, faleceu no dia 13 de novembro de 2014, aos 97 anos. Posto que tudo é finito e um dia completa o seu ciclo, isso é o que menos importa. O essencial é que semeou palavras que brotam e rebrotam a cada nova leitura. Sabia que a vida tem hora marcada para terminar. E não perdeu tempo. No documentário “Só dez por cento é mentira”, lançado por Pedro Cezar em 2008, o poeta, que construiu uma obra exuberante sobre as “grandezas do ínfimo”, resumiu, pleno de consciência: “A gente nasce, cresce, amadurece, envelhece, morre. Pra não morrer, tem que amarrar o tempo no poste. Eis a ciência da poesia: amarrar o tempo no poste”.
Ciente de que “Desaprender oito horas por dia ensina os princípios”, estabeleceu para si uma outra rotina. “Não aguento ser apenas um sujeito que abre / portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que / compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora, / que aponta lápis, que vê a uva etc. etc. / Perdoai. / Mas eu preciso ser Outros. / Eu penso renovar o homem usando borboletas.”
Poetas, escritores, músicos, artistas de modo geral são alguns dos que procuram “amarrar o tempo no poste”. Dão algum sentido à vida para que não seja apenas a soma de esforços pela sobrevivência – e, em muitos casos, a busca desenfreada da opulência, com apetites insaciáveis que destroem a natureza, sem que tanto consumo e riqueza sejam capazes de preencher os buracos da alma e dar um pouco de plenitude ao tempo que vai do nascimento à morte.
Manoel de Barros, desde cedo, foi enfeitiçado pelo verbo que “delira”. E se tornou “encantador de palavras”. Fez desse feitiço o seu ofício, não sem antes esbarrar com todas as exigências de uma vida que pede muito mais utilidades do que poesias “sobre nada”. Ele só “queria crescer pra passarinho” e essa sabedoria o levou a roçar o infinito e devolver o ínfimo grão de pó à poeira interestelar.
Foi o poeta que iluminou “o silêncio das coisas anônimas”, desconstruiu estruturas para se aproximar da “infância da língua” com o intuito de “causar distúrbios no idioma”. Tanta originalidade e beleza acabou por criar um “idioleto manoelês archaico”. Uma nova forma de “desver o mundo”. É uma poesia que se faz de “inutensílios”, coisas, objetos e resíduos desprezados no cotidiano, tudo “o que pode ser carregado como papel pelo vento”. E tudo o que está na natureza: aves, árvores, rãs, lesmas, musgo, limo, água, barro, bichos e gentes, de todos os tipos, principalmente como Bernardo, dono de um acervo que incluía “um martelo de pregar água” e um “guindaste de levantar vento”.
A fábrica de palavras de Manoel de Barros vai do chão ao céu e contempla tudo que se move e respira, e presta atenção – mais que isso, louvação! – às miudezas de seres e objetos que compõem a paisagem dos dias e noites de uma vida a contemplar o infinito ao seu redor.
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Celso Vicenzi, jornalista, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina, com atuação em rádio, TV, jornal, revista e assessoria de imprensa. Prêmio Esso de Ciência e Tecnologia. Autor de “Gol é Orgasmo”, com ilustrações de Paulo Caruso, editora Unisul. Escreve humor no tuíter @celso_vicenzi. “Tantos anos como autodidata me transformaram nisso que hoje sou: um autoignorante!”. Mantém no NR a coluna Letras e Caracteres.
sexta-feira, 28 de novembro de 2014
Impropriedades
por Júnia Puglia ilustração Fernando Vianna*
Qualquer pessoa que tenha um lugar de moradia para chamar de seu sabe como é: a quantidade de tralha com que entupimos nossas casas é chocante. A gente meio que finge que não vê, mas, cada vez que temos que fazer mudança e somos obrigados a encarar a realidade, constatamos, resignados, nossa capacidade de acumular coisas, independentemente da utilidade ou aplicabilidade dos trens empilhados e empaçocados em armários, estantes, gavetas ou qualquer fresta por onde passe mais que uma folha de papel. Somos acumuladores contumazes, inclusive de coisas que, se algum dia tiveram um papel a cumprir na nossa vida, como revistas, livros e CDs, atualmente desfrutam de um empoeirado sono eterno. Fora badulaques de tudo que é jeito. E um detalhe importante é que esta questão independe da metragem de que dispomos. Em quase todas as casas, por menores e mais modestas que sejam, há tralha suficiente para ocupar outra área equivalente.
O fato é que gostamos da ideia de ter, não só coisas, objetos, mas também pessoas e memórias. Ou seja, o sentimento de posse se estende àqueles por quem temos afeto e às lembranças daquilo que valorizamos na nossa experiência de vida. Daí a quantidade de fotos das pessoas queridas e dos lugares e situações que cultivamos na memória afetiva e gostamos de ter por perto, numa interminável reedição dos sentimentos que significam, mesmo guardadas em caixas ou computadores, e jamais organizadas.
Diz o dito popular, sábio como sempre, que caixão não tem gaveta. Tudo o que tiver sido importante para nós durante a nossa trajetória de vida vai ficar aqui quando já não estivermos. O máximo que levaremos conosco são as roupas que cobrirão a nudez em que todos aqui desembarcamos. Nem mesmo as pessoas que amamos poderão nos acompanhar na derradeira viagem. Já sabemos, mas não custa lembrar.
É bem por isto que tenho pensado muito em desencanar das tranqueiras, eventualmente me desfazer delas, e me dedicar a correr atrás de impropriedades, não na forma como as definem os dicionários (ou talvez sim, em certa medida), mas na maneira de ter e tratar as pessoas e coisas que me cercam e compõem o meu patrimônio imaterial. A propósito, esta expressão é um achado precioso, uma bela ideia, ao juntar duas saborosas palavras, que tinham tudo para ser inconciliáveis. Aliás, as palavras, paus para toda obra, pedregulhos e diamantes ao mesmo tempo, proporcionam fartas colheitas imateriais de bonitezas e feiúras para todos os gostos.
Os assuntos já se misturaram, mas eu estou gostando muito desse rumo e dessa prosa.
Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com
Qualquer pessoa que tenha um lugar de moradia para chamar de seu sabe como é: a quantidade de tralha com que entupimos nossas casas é chocante. A gente meio que finge que não vê, mas, cada vez que temos que fazer mudança e somos obrigados a encarar a realidade, constatamos, resignados, nossa capacidade de acumular coisas, independentemente da utilidade ou aplicabilidade dos trens empilhados e empaçocados em armários, estantes, gavetas ou qualquer fresta por onde passe mais que uma folha de papel. Somos acumuladores contumazes, inclusive de coisas que, se algum dia tiveram um papel a cumprir na nossa vida, como revistas, livros e CDs, atualmente desfrutam de um empoeirado sono eterno. Fora badulaques de tudo que é jeito. E um detalhe importante é que esta questão independe da metragem de que dispomos. Em quase todas as casas, por menores e mais modestas que sejam, há tralha suficiente para ocupar outra área equivalente.
O fato é que gostamos da ideia de ter, não só coisas, objetos, mas também pessoas e memórias. Ou seja, o sentimento de posse se estende àqueles por quem temos afeto e às lembranças daquilo que valorizamos na nossa experiência de vida. Daí a quantidade de fotos das pessoas queridas e dos lugares e situações que cultivamos na memória afetiva e gostamos de ter por perto, numa interminável reedição dos sentimentos que significam, mesmo guardadas em caixas ou computadores, e jamais organizadas.
Diz o dito popular, sábio como sempre, que caixão não tem gaveta. Tudo o que tiver sido importante para nós durante a nossa trajetória de vida vai ficar aqui quando já não estivermos. O máximo que levaremos conosco são as roupas que cobrirão a nudez em que todos aqui desembarcamos. Nem mesmo as pessoas que amamos poderão nos acompanhar na derradeira viagem. Já sabemos, mas não custa lembrar.
É bem por isto que tenho pensado muito em desencanar das tranqueiras, eventualmente me desfazer delas, e me dedicar a correr atrás de impropriedades, não na forma como as definem os dicionários (ou talvez sim, em certa medida), mas na maneira de ter e tratar as pessoas e coisas que me cercam e compõem o meu patrimônio imaterial. A propósito, esta expressão é um achado precioso, uma bela ideia, ao juntar duas saborosas palavras, que tinham tudo para ser inconciliáveis. Aliás, as palavras, paus para toda obra, pedregulhos e diamantes ao mesmo tempo, proporcionam fartas colheitas imateriais de bonitezas e feiúras para todos os gostos.
Os assuntos já se misturaram, mas eu estou gostando muito desse rumo e dessa prosa.
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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com
quinta-feira, 27 de novembro de 2014
Em nome do filho
1964 + 50
Histórias de pessoas de carne e osso – e também de personagens de papel – que viveram na roda viva da ditadura militar. Episódios quinzenais toda quinta-feira.
(episódio 20)
por Fernanda Pompeu ilustração Fernando Carvall
Enquanto os foliões cariocas pulavam nas ruas a alegria do carnaval de 1974, reciclando mais uma vez homens vestidos de mulheres, pierrôs e colombinas, dois jovens – Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira e Eduardo Collier Filho – eram presos por agentes do DOI-CODI do Rio de Janeiro. O fato ocorreu em Copacabana, onde Fernando e Eduardo haviam marcado um encontro.
Os dois eram militantes da APML (Ação Popular Marxista Leninista). Era uma entre várias micro-organizações que tentavam enfrentar a ditadura militar instaurada dez anos antes daquele carnaval de 1974. Se atrás de uma bola vem sempre uma mãe. Atrás de um filho preso também. Foi assim que Elzita, mãe de Fernando, e Risoleta, mãe de Eduardo deram início à épica procura por seus filhos.
As duas tentaram de tudo. Falaram com carcereiros, bispos, militares. Estiveram frente a frente com o general Golbery do Couto, o todo poderoso chefe do Gabinete Civil da Presidência da República. Ele as ouviu em silêncio e em silêncio permaneceu. Informações posteriores comprovariam que Fernando e Eduardo tinham sido mortos sob torturas. De maneira bem frequente naqueles anos, seus corpos desapareceram.
Em entrevista a Patrícia Negrão, no livro "Brasileiras Guerreiras da Paz", publicado em 2006, Elzita Santa Cruz Oliveira diz: "Depois que perdi a esperança de encontrar Fernando, só me restou falar, para que um fato tão triste não caísse no esquecimento". Antes da prisão do filho, Elzita já havia vivido o sufoco da prisão da filha Rosalina.
Por Rosalina Santa Cruz, ela também bateu portas de quartéis. Desafiou o arbítrio e o totalitarismo dos homens de farda: "Eu sentia medo. Mas por um filho, vou até para dentro do fogo". A mãe acabou encontrando a filha, solta um ano depois de presa. Mas com Fernando a história seria mais triste. Sem pistas, sem corpo. Apenas matéria incendiando a memória.
Fernando, nascido no Recife, em 1948, foi preso a primeira vez ao participar de uma manifestação estudantil contra os acordos MEC-Usaid. Refrescando os fatos: esse acordo era pura subserviência aos Estados Unidos. Indicava privatização do ensino, entre outras injustiças. Foi aí que Filosofia e Latim foram retiradas da grade do ensino fundamental. Por ser menor de idade, o rapaz permaneceu pouco tempo detido.
Mas em 1974, o carnaval foi outro. Havia ordens de desmantelar o maior número possível de organizações opositoras à ditadura. Ordem de torturar e matar os militantes. E, é claro, desaparecer com seus corpos. Como se nunca nada tivesse acontecido. Como se fosse super natural matar Fernando, deixando o filho Felipe, então com dois anos, órfão.
Até hoje, neste ano da graça de 2014, famílias inteiras seguem esperando por respostas. Nenhuma alimenta a ilusão de encontrar pais, filhos, irmãos vivos. O que querem é o direito básico da verdade. Não só isso. Querem também divulgar como essas pessoas morreram e quem foram seus assassinos.
Fernanda Pompeu é escritora e redatora. Fernando Carvall é o homem da arte.
Histórias de pessoas de carne e osso – e também de personagens de papel – que viveram na roda viva da ditadura militar. Episódios quinzenais toda quinta-feira.
(episódio 20)
por Fernanda Pompeu ilustração Fernando Carvall
Enquanto os foliões cariocas pulavam nas ruas a alegria do carnaval de 1974, reciclando mais uma vez homens vestidos de mulheres, pierrôs e colombinas, dois jovens – Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira e Eduardo Collier Filho – eram presos por agentes do DOI-CODI do Rio de Janeiro. O fato ocorreu em Copacabana, onde Fernando e Eduardo haviam marcado um encontro.
Os dois eram militantes da APML (Ação Popular Marxista Leninista). Era uma entre várias micro-organizações que tentavam enfrentar a ditadura militar instaurada dez anos antes daquele carnaval de 1974. Se atrás de uma bola vem sempre uma mãe. Atrás de um filho preso também. Foi assim que Elzita, mãe de Fernando, e Risoleta, mãe de Eduardo deram início à épica procura por seus filhos.
As duas tentaram de tudo. Falaram com carcereiros, bispos, militares. Estiveram frente a frente com o general Golbery do Couto, o todo poderoso chefe do Gabinete Civil da Presidência da República. Ele as ouviu em silêncio e em silêncio permaneceu. Informações posteriores comprovariam que Fernando e Eduardo tinham sido mortos sob torturas. De maneira bem frequente naqueles anos, seus corpos desapareceram.
Em entrevista a Patrícia Negrão, no livro "Brasileiras Guerreiras da Paz", publicado em 2006, Elzita Santa Cruz Oliveira diz: "Depois que perdi a esperança de encontrar Fernando, só me restou falar, para que um fato tão triste não caísse no esquecimento". Antes da prisão do filho, Elzita já havia vivido o sufoco da prisão da filha Rosalina.
Por Rosalina Santa Cruz, ela também bateu portas de quartéis. Desafiou o arbítrio e o totalitarismo dos homens de farda: "Eu sentia medo. Mas por um filho, vou até para dentro do fogo". A mãe acabou encontrando a filha, solta um ano depois de presa. Mas com Fernando a história seria mais triste. Sem pistas, sem corpo. Apenas matéria incendiando a memória.
Fernando, nascido no Recife, em 1948, foi preso a primeira vez ao participar de uma manifestação estudantil contra os acordos MEC-Usaid. Refrescando os fatos: esse acordo era pura subserviência aos Estados Unidos. Indicava privatização do ensino, entre outras injustiças. Foi aí que Filosofia e Latim foram retiradas da grade do ensino fundamental. Por ser menor de idade, o rapaz permaneceu pouco tempo detido.
Mas em 1974, o carnaval foi outro. Havia ordens de desmantelar o maior número possível de organizações opositoras à ditadura. Ordem de torturar e matar os militantes. E, é claro, desaparecer com seus corpos. Como se nunca nada tivesse acontecido. Como se fosse super natural matar Fernando, deixando o filho Felipe, então com dois anos, órfão.
Até hoje, neste ano da graça de 2014, famílias inteiras seguem esperando por respostas. Nenhuma alimenta a ilusão de encontrar pais, filhos, irmãos vivos. O que querem é o direito básico da verdade. Não só isso. Querem também divulgar como essas pessoas morreram e quem foram seus assassinos.
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Fernanda Pompeu é escritora e redatora. Fernando Carvall é o homem da arte.
terça-feira, 25 de novembro de 2014
Balcão, bebiba, barra, Biro
por Carlos Conte*
O bar do Biro é o melhor que eu conheço. Baiano albino, o Biro tem esse apelido por causa do ex-volante corintiano dos anos 80, o Biro-Biro (que o presidente Mateus certa vez chamou de Lero-Lero...). O Biro me lembra um personagem sertanejo da Rachel de Queiroz chamado José Alexandre, “caboclo hercúleo” que vivia isolado numa fazendinha no Ceará e que pelo fato de falar muito pouco sua voz era sempre rouca, “como a de um bicho que aprendesse a falar”. O Biro também não é de falar muito e está sempre rouco. Algumas pessoas são roucas por natureza e acho que esse é o caso do Biro. Por isso, pra ser escutado no meio do barulho do boteco, ele é obrigado a forçar a voz: “vai uma seLEta?”, ele pergunta, com ênfase na tônica, como se levasse um susto no meio da frase.
Crônica tem um quê de conversa de bar. E tem bares que merecem uma crônica. Já escrevi sobre o Silveirinha, poderia escrever sobre o Valadares, o Biu, o bar do Paulo, o bar do finado Vavá... Esses são os meus bares. Meus bares! Com pronome possessivo e tudo. Desses todos, porém, o Biro é o meu predileto, pois no quesito mais importante que existe quando se julga um bar, o Biro vence.
Variedade de cervejas? Sem dúvida esse quesito é importante, mas o Sagarana não é o meu bar preferido, muito menos o Frangó lá da Freguesia. Petiscos? Claro, são fundamentais (aliás, descobri que tem um bar de happy-hour numa travessa da Paulista que tem rodízio de petiscos, mas nunca fui). Atendimento? Limpeza? Serviço delivery?...
Quando elejo o Biro, não me refiro a nenhum desses quesitos adotados pelos críticos dos Guias e Revistas de São Paulo, até porque o Biro perderia em todos, exceto atendimento, pois simpatia e solicitude são a marca registrada do Biro, auxiliado por seu fiel escudeiro Geladeira (porque ele sempre está atrás do balcão, de pé, parado, como uma geladeira... Apelidos de bar é um tema que daria outra crônica).
Para mim, o principal aspecto quando se avalia um bar é tão subjetivo quanto o conceito de liberdade: cada um sente de um jeito diferente, cada um pode relatar experiências, manifestações reais, efêmeras ou duradouras, mais intensas ou menos, mas é difícil cravar “liberdade é isso”, “felicidade é aquilo”, como para mim é difícil encontrar a melhor palavra que defina essa adoração que tenho pelo bar do Biro.
Tem a ver com acolhimento. Sem dúvida. O Biro é meu refúgio. Eu procuro isso num bar. Nem sempre, é claro. Algumas vezes procuro mulheres. E cada vez mais elas estão indo ao Biro. O Biro é um bar que o Antônio Prata chamaria de “meio intelectual, meio de esquerda”, com seu balcão velho de fórmica, os bancos gastos, um enorme mapa múndi, um barrilzinho de pinga com o distintivo do Corinthians, a mesa de sinuca no fundo (onde as caçapas são tão apertadas que às vezes parece que o jogo não vai acabar nunca), mas o principal são os dois grandes painéis laterais, retratando cavalgadas e paisagens bucólicas. Esses painéis são realmente incríveis, eu não me canso de olhar para eles. A típica coisa brega/autêntica que a galera pira, e eu já me acostumei tanto com aqueles cavalos ali, me olhando, que não imagino como seria o bar sem eles. Até que um dia, dando na telha ou entrando um dinheiro extra, o Biro manda passar uma tinta, faz uma parede com textura ou algo do tipo, mais “moderno”, mais fácil de limpar, e acaba com a graça da galera hipster.
Voltando ao meu critério para preferir o Biro, refiro-me a um estado de bem-estar simples, absolutamente trivial: encostar-me ao balcão, tendo a minha frente uma garrafa de cerveja e um copo americano. Isso é o básico de um bar. O resto é acessório. Isso remonta, sem dúvida, ao primeiro bar da história da humanidade e ao seu primeiro frequentador, que certamente saiu de lá, montando em seu cavalo, satisfeito e surpreso com aquela experiência incrível, tão simples, tão fundamental: sentar-se ao balcão e beber, se possível beliscando um amendoim, mas isso já é secundário. O principal: balcão, bebida, barra. Sem pentelhação, sem encheção de saco, ninguém tagarelando na orelha. Balcão, bebida, barra – com aliteração e tudo! Sem dar satisfação, sem olhar o cardápio, sem ter que xavecar ninguém, sem ter que escolher a roupa antes de sair de casa. Balcão, bebida, barra e foda-se a menina que você tem que paquerar, que você tem que dar em cima, senão algum filho da puta incansável vai levar a melhor nessa história. Balcão, bebida, barra e não preciso me posicionar politicamente, nem falar de trabalho, nem convencer ninguém sobre nada. Balcão, bebida, barra, Biro e foda-se o mundo, amanhã eu volto a me preocupar com ele...
Tudo isso eu encontro lá, talvez você encontre em outro bar, talvez isso não faça o menor sentido pra você, e neste caso eu recomendo o happy-hour-rodízio-de-petiscos da Paulista ou qualquer lugar novo na Vila Madalena onde a gente não consegue nem escutar o próprio pensamento.
Sobre a barra, o Migue, amigo que entende de bar como poucos e que por isso adora o Biro, me contou que foi ela, a barra, que deu origem ao nome “bar”. Ela é essencial. É onde a gente apoia os pés – quer coisa mais importante do que isso? Mas não é todo mundo que tem consciência da importância dessa barra, sem a qual a gente começa a sentir desconfortos terríveis nas pernas e nas costas. Muito dono de bar não sabe disso e simplesmente manda tirar, como se não fosse fazer falta.
Do outro lado do balcão, está o Biro, solícito, honesto, atento (qualidades que lembram o seu Zé, o garçom que fez tanta fama que acabou dando nome ao bar das empanadas chilenas. Que fim ele teve?). Ali está o Biro e toda vez eu tenho vontade de dizer pra ele como eu gosto do seu bar, como para mim é bom estar ali olhando os cavalos, o mapa, o Geladeira, as bolas numeradas correndo pra lá e pra cá, escutando os frequentadores da velha guarda combinando seus churrascos de aniversário, suas caravanas para o litoral... Enquanto isso, amigos de facebook fumam seu cigarro na calçada. Enquanto isso, eu medito, e bebo.
Carlos Conte, sociólogo, é também resenhista e cronista. Mantém a coluna mensal Casa de Loucos, uma homenagem aos mestres João Antônio e Lima Barreto.
O bar do Biro é o melhor que eu conheço. Baiano albino, o Biro tem esse apelido por causa do ex-volante corintiano dos anos 80, o Biro-Biro (que o presidente Mateus certa vez chamou de Lero-Lero...). O Biro me lembra um personagem sertanejo da Rachel de Queiroz chamado José Alexandre, “caboclo hercúleo” que vivia isolado numa fazendinha no Ceará e que pelo fato de falar muito pouco sua voz era sempre rouca, “como a de um bicho que aprendesse a falar”. O Biro também não é de falar muito e está sempre rouco. Algumas pessoas são roucas por natureza e acho que esse é o caso do Biro. Por isso, pra ser escutado no meio do barulho do boteco, ele é obrigado a forçar a voz: “vai uma seLEta?”, ele pergunta, com ênfase na tônica, como se levasse um susto no meio da frase.
Crônica tem um quê de conversa de bar. E tem bares que merecem uma crônica. Já escrevi sobre o Silveirinha, poderia escrever sobre o Valadares, o Biu, o bar do Paulo, o bar do finado Vavá... Esses são os meus bares. Meus bares! Com pronome possessivo e tudo. Desses todos, porém, o Biro é o meu predileto, pois no quesito mais importante que existe quando se julga um bar, o Biro vence.
Variedade de cervejas? Sem dúvida esse quesito é importante, mas o Sagarana não é o meu bar preferido, muito menos o Frangó lá da Freguesia. Petiscos? Claro, são fundamentais (aliás, descobri que tem um bar de happy-hour numa travessa da Paulista que tem rodízio de petiscos, mas nunca fui). Atendimento? Limpeza? Serviço delivery?...
Quando elejo o Biro, não me refiro a nenhum desses quesitos adotados pelos críticos dos Guias e Revistas de São Paulo, até porque o Biro perderia em todos, exceto atendimento, pois simpatia e solicitude são a marca registrada do Biro, auxiliado por seu fiel escudeiro Geladeira (porque ele sempre está atrás do balcão, de pé, parado, como uma geladeira... Apelidos de bar é um tema que daria outra crônica).
Para mim, o principal aspecto quando se avalia um bar é tão subjetivo quanto o conceito de liberdade: cada um sente de um jeito diferente, cada um pode relatar experiências, manifestações reais, efêmeras ou duradouras, mais intensas ou menos, mas é difícil cravar “liberdade é isso”, “felicidade é aquilo”, como para mim é difícil encontrar a melhor palavra que defina essa adoração que tenho pelo bar do Biro.
Tem a ver com acolhimento. Sem dúvida. O Biro é meu refúgio. Eu procuro isso num bar. Nem sempre, é claro. Algumas vezes procuro mulheres. E cada vez mais elas estão indo ao Biro. O Biro é um bar que o Antônio Prata chamaria de “meio intelectual, meio de esquerda”, com seu balcão velho de fórmica, os bancos gastos, um enorme mapa múndi, um barrilzinho de pinga com o distintivo do Corinthians, a mesa de sinuca no fundo (onde as caçapas são tão apertadas que às vezes parece que o jogo não vai acabar nunca), mas o principal são os dois grandes painéis laterais, retratando cavalgadas e paisagens bucólicas. Esses painéis são realmente incríveis, eu não me canso de olhar para eles. A típica coisa brega/autêntica que a galera pira, e eu já me acostumei tanto com aqueles cavalos ali, me olhando, que não imagino como seria o bar sem eles. Até que um dia, dando na telha ou entrando um dinheiro extra, o Biro manda passar uma tinta, faz uma parede com textura ou algo do tipo, mais “moderno”, mais fácil de limpar, e acaba com a graça da galera hipster.
Voltando ao meu critério para preferir o Biro, refiro-me a um estado de bem-estar simples, absolutamente trivial: encostar-me ao balcão, tendo a minha frente uma garrafa de cerveja e um copo americano. Isso é o básico de um bar. O resto é acessório. Isso remonta, sem dúvida, ao primeiro bar da história da humanidade e ao seu primeiro frequentador, que certamente saiu de lá, montando em seu cavalo, satisfeito e surpreso com aquela experiência incrível, tão simples, tão fundamental: sentar-se ao balcão e beber, se possível beliscando um amendoim, mas isso já é secundário. O principal: balcão, bebida, barra. Sem pentelhação, sem encheção de saco, ninguém tagarelando na orelha. Balcão, bebida, barra – com aliteração e tudo! Sem dar satisfação, sem olhar o cardápio, sem ter que xavecar ninguém, sem ter que escolher a roupa antes de sair de casa. Balcão, bebida, barra e foda-se a menina que você tem que paquerar, que você tem que dar em cima, senão algum filho da puta incansável vai levar a melhor nessa história. Balcão, bebida, barra e não preciso me posicionar politicamente, nem falar de trabalho, nem convencer ninguém sobre nada. Balcão, bebida, barra, Biro e foda-se o mundo, amanhã eu volto a me preocupar com ele...
Tudo isso eu encontro lá, talvez você encontre em outro bar, talvez isso não faça o menor sentido pra você, e neste caso eu recomendo o happy-hour-rodízio-de-petiscos da Paulista ou qualquer lugar novo na Vila Madalena onde a gente não consegue nem escutar o próprio pensamento.
Sobre a barra, o Migue, amigo que entende de bar como poucos e que por isso adora o Biro, me contou que foi ela, a barra, que deu origem ao nome “bar”. Ela é essencial. É onde a gente apoia os pés – quer coisa mais importante do que isso? Mas não é todo mundo que tem consciência da importância dessa barra, sem a qual a gente começa a sentir desconfortos terríveis nas pernas e nas costas. Muito dono de bar não sabe disso e simplesmente manda tirar, como se não fosse fazer falta.
Do outro lado do balcão, está o Biro, solícito, honesto, atento (qualidades que lembram o seu Zé, o garçom que fez tanta fama que acabou dando nome ao bar das empanadas chilenas. Que fim ele teve?). Ali está o Biro e toda vez eu tenho vontade de dizer pra ele como eu gosto do seu bar, como para mim é bom estar ali olhando os cavalos, o mapa, o Geladeira, as bolas numeradas correndo pra lá e pra cá, escutando os frequentadores da velha guarda combinando seus churrascos de aniversário, suas caravanas para o litoral... Enquanto isso, amigos de facebook fumam seu cigarro na calçada. Enquanto isso, eu medito, e bebo.
* * * * * * *
Carlos Conte, sociólogo, é também resenhista e cronista. Mantém a coluna mensal Casa de Loucos, uma homenagem aos mestres João Antônio e Lima Barreto.
sexta-feira, 21 de novembro de 2014
Agradecida
por Júnia Puglia ilustração Fernando Vianna*
De tempos em tempos, aparece em alguma revista semanal um longo artigo sobre os avanços da medicina no tratamento de bebês prematuros. Falam sobre como evoluíram o conhecimento sobre o assunto, os equipamentos e a capacidade de fazer sobreviverem prematuros cada vez mais prematuros e menores. As matérias incluem testemunhos de pais, médicos e outros profissionais sobre as complicações e situações-limite, e também sobre a satisfação com os resultados obtidos, pois muitas dessas crianças – mas não todas – superam as dificuldades iniciais e vivem sem qualquer sequela importante.
Se bem que tudo depende das circunstâncias. Acabo de ver uma reportagem na televisão sobre o fato de a prematuridade ter sido alçada ao topo da lista mundial de causas da morte de crianças com até cinco anos de idade, um posto até recentemente ocupado pela pneumonia. Este fato pode ser um reflexo da tendência de tentar salvar bebês cada vez menos amadurecidos, e em condições extremamente precárias, além de trazer embutidas as dificuldades de atendimento em lugares que carecem de recursos médicos, econômicos e educacionais adequados.
Eu nasci prematura, na segunda metade da década de 1950, no interior de São Paulo. Segundo a informação que me chegou, uma bebê bastante frágil, com baixo peso e estranhos sintomas, que ora me parecem uma síndrome respiratória típica, ora “petit mal”, dependendo da ênfase de quem relata. Até onde sabemos, não houve um diagnóstico definitivo.
Com alguns meses iniciais na incubadora, e depois muitas idas e vindas ao hospital, meu primeiro ano foi bem atribulado. Entretanto, dos tais sintomas, não restou nenhuma sequela. Embora tenha demorado um pouco para cumprir as primeiras etapas de desenvolvimento psicomotor, por volta do segundo aniversário eu já era uma menina perfeitamente ajustada ao ritmo da infância considerado normal.
Mas não foi bem assim. Levei muitos anos para perceber que aquela sombra que eu sentia me encobrindo desde que me entendia por gente tinha um nome: dor. O frio interno, a sensação de abandono, aquela ferida que me fazia sangrar por dentro o tempo todo, e que não tinha razão compreensível, atendiam todos pelo nome de dor. Hospital, solidão, luz artificial, tristeza, desconforto, e sabe-se lá que outras experiências parecidas, que hoje considero superadas, deixaram suas marcas.
Fotos de super-prematuros acomodados na palma das mãos dos adultos me dão pânico. Tenho vontade de gritar, de sair correndo. As revistas têm um prazer todo especial em exibi-las nas suas capas. As façanhas médicas fascinam e estimulam mães e pais a buscar, compreensivelmente, que seus bebês vivam, não importando as dificuldades implicadas. Os médicos têm aí oportunidades preciosas de exercer e exibir suas habilidades, técnicas e competências. Felizmente, pelo que tenho lido nos últimos tempos, tem havido uma crescente preocupação com tratamentos e abordagens menos invasivas e agressivas e mais voltadas para proporcionar acolhimento adequado, conforto e bem-estar às criaturinhas que chegam ao mundo antes da hora.
Viver vale a pena, sempre. Eu não preferiria ter aberto mão da experiência vital, mesmo porque aquilo tudo ficou bem lá atrás, mas talvez sobreviver pudesse ter envolvido menos dor e sofrimento. Naquele tempo, acho que isto não teria sido possível, e sei que recebi o melhor que estava ao alcance. Por mais distante no tempo que esteja a minha experiência, é alentador saber que a neonatologia está indo além da garantia da sobrevivência física e tem cada vez mais voltando seus esforços para o alívio do desconforto, tensão e dor dos prematuros. Agradeço de coração, profundamente, qualquer esforço neste sentido.
Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com
De tempos em tempos, aparece em alguma revista semanal um longo artigo sobre os avanços da medicina no tratamento de bebês prematuros. Falam sobre como evoluíram o conhecimento sobre o assunto, os equipamentos e a capacidade de fazer sobreviverem prematuros cada vez mais prematuros e menores. As matérias incluem testemunhos de pais, médicos e outros profissionais sobre as complicações e situações-limite, e também sobre a satisfação com os resultados obtidos, pois muitas dessas crianças – mas não todas – superam as dificuldades iniciais e vivem sem qualquer sequela importante.
Se bem que tudo depende das circunstâncias. Acabo de ver uma reportagem na televisão sobre o fato de a prematuridade ter sido alçada ao topo da lista mundial de causas da morte de crianças com até cinco anos de idade, um posto até recentemente ocupado pela pneumonia. Este fato pode ser um reflexo da tendência de tentar salvar bebês cada vez menos amadurecidos, e em condições extremamente precárias, além de trazer embutidas as dificuldades de atendimento em lugares que carecem de recursos médicos, econômicos e educacionais adequados.
Eu nasci prematura, na segunda metade da década de 1950, no interior de São Paulo. Segundo a informação que me chegou, uma bebê bastante frágil, com baixo peso e estranhos sintomas, que ora me parecem uma síndrome respiratória típica, ora “petit mal”, dependendo da ênfase de quem relata. Até onde sabemos, não houve um diagnóstico definitivo.
Com alguns meses iniciais na incubadora, e depois muitas idas e vindas ao hospital, meu primeiro ano foi bem atribulado. Entretanto, dos tais sintomas, não restou nenhuma sequela. Embora tenha demorado um pouco para cumprir as primeiras etapas de desenvolvimento psicomotor, por volta do segundo aniversário eu já era uma menina perfeitamente ajustada ao ritmo da infância considerado normal.
Mas não foi bem assim. Levei muitos anos para perceber que aquela sombra que eu sentia me encobrindo desde que me entendia por gente tinha um nome: dor. O frio interno, a sensação de abandono, aquela ferida que me fazia sangrar por dentro o tempo todo, e que não tinha razão compreensível, atendiam todos pelo nome de dor. Hospital, solidão, luz artificial, tristeza, desconforto, e sabe-se lá que outras experiências parecidas, que hoje considero superadas, deixaram suas marcas.
Fotos de super-prematuros acomodados na palma das mãos dos adultos me dão pânico. Tenho vontade de gritar, de sair correndo. As revistas têm um prazer todo especial em exibi-las nas suas capas. As façanhas médicas fascinam e estimulam mães e pais a buscar, compreensivelmente, que seus bebês vivam, não importando as dificuldades implicadas. Os médicos têm aí oportunidades preciosas de exercer e exibir suas habilidades, técnicas e competências. Felizmente, pelo que tenho lido nos últimos tempos, tem havido uma crescente preocupação com tratamentos e abordagens menos invasivas e agressivas e mais voltadas para proporcionar acolhimento adequado, conforto e bem-estar às criaturinhas que chegam ao mundo antes da hora.
Viver vale a pena, sempre. Eu não preferiria ter aberto mão da experiência vital, mesmo porque aquilo tudo ficou bem lá atrás, mas talvez sobreviver pudesse ter envolvido menos dor e sofrimento. Naquele tempo, acho que isto não teria sido possível, e sei que recebi o melhor que estava ao alcance. Por mais distante no tempo que esteja a minha experiência, é alentador saber que a neonatologia está indo além da garantia da sobrevivência física e tem cada vez mais voltando seus esforços para o alívio do desconforto, tensão e dor dos prematuros. Agradeço de coração, profundamente, qualquer esforço neste sentido.
* * * * * *
Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com
quarta-feira, 19 de novembro de 2014
Uma estrada de Natal a São Paulo
por Nina Madsen ilustração Marcelo Martins Ferreira*
A história de Seu João foi um desses presentes inesperados que algumas corridas de taxi nos oferecem. Estava em Natal, a caminho do aeroporto para voltar para Brasília. Dirigindo o taxi, um senhor de mais de 60 anos, animado e falante, louco para me contar sua história. Ela foi se desdobrando no decorrer do longo caminho rumo ao novo aeroporto da cidade, noutra cidade – São Gonçalo do Amarante.
Seu João foi dirigindo e me contando que por ali nascera e vivera a infância. Naqueles tempos, a distância era ainda maior, não em chão, senão em horas e dificuldades de percurso. A cidade de sua infância era um vilarejo feito na areia e por ela João caminhava todos os dias, descalço, fazendo o caminho de casa para a escola, da escola para casa. A caminhada, tão longa quanto nosso trajeto de carro até o aeroporto, era ato de resistência e insistência – aquela mesma teimosia da qual já falei por aqui.
Pois Seu João era teimoso nisso de ir à escola. E teimoso também na ideia de fazer crescer seu mundo. De modo que aos dezessete anos, decidiu subir em um ônibus e tentar a vida em São Paulo, terra prometida de então, numa época em que a seca e a falta d’água eram chagas nordestinas exclusivas.
Disse que preparou a marmita na lata de leite e se foi. Logo no início da travessia, Seu João foi reconhecido por um primo distante que não via há muitos anos. Contou da sua corajosa aventura e recebeu do parente o endereço de seu irmão, que morava em São Paulo, e uma foto, para que ele pudesse ser identificado como família.
E seguiu viagem, certo de que em não mais que sete horas estaria na grande cidade. E eis que aquelas sete horas começaram a se multiplicar em dias – três no total – e João, faminto, sem tostão que fosse para enganar o vazio do corpo. Quando chegou a São Paulo, foi em busca da casa do parente. Quem abriu a porta foi a mulher do primo, que nem de longe conhecia Seu João. Mas ao olhar a foto do marido mais novo, deixou entrar o garoto, dando-lhe logo de comer. Ele me contou com detalhes o banquete de pão com manteiga e carne com que apaziguou sua fome. E como em seguida saiu para passear pela cidade, deparando-se com um cartaz de Precisa-se de cobrador, em frente à parada de ônibus. Apresentou-se. O motorista pediu que fizesse umas somas – ele era bom de matemática – e o contratou.
E Seu João assim se instalou em São Paulo. Casou-se, teve filhos e foi fazendo por lá a vida. Quando pôde, voltou para sua terra de origem. Seus filhos, hoje adultos, nunca precisaram caminhar descalços em chão de areia para ir à escola.
Seu João não me contou das desventuras que viveu por lá pelo sudeste. Não me contou das discriminações, do preconceito, do ódio. Não precisou. Eu imaginei mesmo assim.
A história dele era a de sua satisfação e de seu orgulho com a vida vivida. Orgulho que logo virou meu também, orgulho por tabela, orgulho por emoção. De ver gente assim, que acredita na vida em qualquer circunstância. Gente que sabe caminhar seu caminho, que entende que entre Natal e São Paulo é uma terra só (sempre bom lembrar...), toda pronta para ser desbravada. Por mais que nos digam o contrário.
* * * * * *
Nina Madsen escreve por gosto e necessidade desde que se lembra. Formada em Letras, caminhou pelos campos da educação até que se fez feminista e socióloga, por azar ou sorte. Integra o colegiado de gestão do Centro Feminista de Estudos e Assessoria, o CFEMEA, e colabora com a Universidade Livre Feminista. Aventura-se pelo avesso do mundo quinzenalmente, na coluna Crônicas do desmundo. *Desmundo aqui faz referência ao romance de Ana Miranda, uma lindeza literária que nos conduz pelas fronteiras entre o real e o onírico. Marcelo Martins Ferreira, ilustrador, design e músico, especial para o texto
sexta-feira, 14 de novembro de 2014
Recortado
por Júnia Puglia ilustração Fernando Vianna*
O tempo roda e a gente, que mora longe, vai se esquecendo de que aqui nesta cidade aconteceu aquela tragédia. Num dia como outro qualquer, uma terça-feira, se não me engano, alguém entrou correndo no escritório falando que um avião de passageiros havia se chocado contra um enorme edifício de escritórios em Nova York. Ligamos a televisão da sala de reuniões e assistimos ao vivo, entre incrédulos e apavorados, o choque do segundo avião contra o segundo prédio, num episódio que já dispensa qualquer outro comentário ou descrição.
Um memorial foi construído no local exato do acontecido. Dois enormes tanques de água quadrados e idênticos, tendo ao fundo e ao centro outro quadrado menor, escuro e profundo, para dentro do qual jorra incessantemente a água, que parece brotar nas bordas e desce pelas paredes verticais. Nas bordas externas, ao longo de toda a volta deles, estão gravados, ou melhor, recortados em chapas metálicas, os nomes de todos os que foram ali imolados aos deuses e deusas que infestam e infelicitam o nosso mundo. Meu coração, apertado e acelerado ao mesmo tempo, passou o recibo da emoção de estar ali e do impacto causado por esse simbolismo genial, que tem água em movimento e o abismo sugando tudo.
Num contraponto virtuoso, igualmente capaz de tirar o fôlego, as colagens de Henri Matisse expostas no MoMA dialogam com o que de melhor pode haver dentro do peito de qualquer criatura viva. Experimente com a série “Véspera de Natal”, aí mesmo, na tela do seu computador.
Estranha e fascinante cidade, um enclave de tolerância e diversidade numa das portas de entrada de um jovem país puritano e obstinado em seu propósito de dominar o mundo. Caminhar por suas calçadas planas, impecáveis e intermináveis é toda uma experiência. Neste quesito, o destaque da semana foi a mulher elegante, que fazia uma pausa para escrever algo no teclado do celular, trazendo pela coleira um grande porco com ares cosmopolitas, como deve ser. Ambos muito compenetrados.
* * * * * *
Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com
quinta-feira, 13 de novembro de 2014
Obrigado ao menino do mato
Quando as aves falam com as pedras e as rãs com as águas - é de poesia que estão falando.
Manoel de Barros, o meu poeta preferido, foi-se neste dia 13 de novembro aos 97 anos na garupa de um bem-te-vi-cartola, a voar as miudezas e rir as ignoranças da gente toda. O menino do mato usou palavras de ave para escrever. E fez isso como ninguém. Como ninguém voou fora da asa.
O poeta nasceu em Corumbá, no Mato Grosso do Sul, em 1916, onde passou a infância. Rodou e em 1949 voltou ao Pantanal para tomar conta de uma fazenda que herdou do pai. Viveu em Nova York, Paris, Itália e Portugal. Aos 97 anos tem mais de 20 livros publicados e é considerado um dos poetas da língua portuguesa mais originais de todos os tempos. E o mais lido do Brasil.
Meu amigo Renato Pompeu, que também nos deixou esse ano, quando escreveu do lançamento da poesia completa de Manoel de Barros, há alguns anos, pontuou: "“Rosas de maio”, nome de canção gravada nos anos 1940 pelo grande Carlos Galhardo, é a frase que me ocorre para saudar o grande lançamento do mês: a “Poesia completa”, de mais de 490 páginas, do grande Manoel de Barros, volume lançado pela Leya, com capa dura e magníficas ilustrações coloridas." Um livro essencial.
Rosa de Maio
Carlos Galhardo
Rosa de Maio
É meu desejo
Mandar-te um beijo
Nesta canção...
Rosa de Maio...
Deste poema
Tu és o tema
E a inspiração
Rosa de Maio...
Já não consigo
Guardar comigo
Tanta paixão!
Rosa de Maio
Por qualquer preço
Eu te ofereço
Meu coração!
Obrigado poeta!
* * * * * * *
Algumas poesias de Manoel de Barros
O livro sobre nada
É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez.
Tudo que não invento é falso.
Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.
Tem mais presença em mim o que me falta.
Melhor jeito que achei pra me conhecer foi fazendo o contrário.
Sou muito preparado de conflitos.
Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou.
O meu amanhecer vai ser de noite.
Melhor que nomear é aludir. Verso não precisa dar noção.
O que sustenta a encantação de um verso (além do ritmo) é o ilogismo.
Meu avesso é mais visível do que um poste.
Sábio é o que adivinha.
Para ter mais certezas tenho que me saber de imperfeições.
A inércia é meu ato principal.
Não saio de dentro de mim nem pra pescar.
Sabedoria pode ser que seja estar uma árvore.
Estilo é um modelo anormal de expressão: é estigma.
Peixe não tem honras nem horizontes.
Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas quando não desejo contar nada, faço poesia.
Eu queria ser lido pelas pedras.
As palavras me escondem sem cuidado.
Aonde eu não estou as palavras me acham.
Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas.
Uma palavra abriu o roupão pra mim. Ela deseja que eu a seja.
A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos.
Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos.
Esta tarefa de cessar é que puxa minhas frases para antes de mim.
Ateu é uma pessoa capaz de provar cientificamente que não é nada. Só se compara aos santos. Os santos querem ser os vermes de Deus.
Melhor para chegar a nada é descobrir a verdade.
O artista é erro da natureza. Beethoven foi um erro perfeito.
Por pudor sou impuro.
O branco me corrompe.
Não gosto de palavra acostumada.
A minha diferença é sempre menos.
Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria.
Não preciso do fim para chegar.
Do lugar onde estou já fui embora.
O apanhador de desperdícios
Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.
Retrato do artista quando coisa
A maior riqueza
do homem
é sua incompletude.
Nesse ponto
sou abastado.
Palavras que me aceitam
como sou
— eu não aceito.
Não aguento ser apenas
um sujeito que abre
portas, que puxa
válvulas, que olha o
relógio, que compra pão
às 6 da tarde, que vai
lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai. Mas eu
preciso ser Outros.
Eu penso
renovar o homem
usando borboletas.
O fazedor de amanhecer
Sou leso em tratagens com máquina.
Tenho desapetite para inventar coisas prestáveis.
Em toda a minha vida só engenhei
3 máquinas
Como sejam:
Uma pequena manivela para pegar no sono.
Um fazedor de amanhecer
para usamentos de poetas
E um platinado de mandioca para o
fordeco de meu irmão.
Cheguei de ganhar um prêmio das indústrias
automobilísticas pelo Platinado de Mandioca.
Fui aclamado de idiota pela maioria
das autoridades na entrega do prêmio.
Pelo que fiquei um tanto soberbo.
E a glória entronizou-se para sempre
em minha existência.
Tratado geral das grandezas do ínfimo
A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.
Prefácio
Assim é que elas foram feitas (todas as coisas) —
sem nome.
Depois é que veio a harpa e a fêmea em pé.
Insetos errados de cor caíam no mar.
A voz se estendeu na direção da boca.
Caranguejos apertavam mangues.
Vendo que havia na terra
Dependimentos demais
E tarefas muitas —
Os homens começaram a roer unhas.
Ficou certo pois não
Que as moscas iriam iluminar
O silêncio das coisas anônimas.
Porém, vendo o Homem
Que as moscas não davam conta de iluminar o
Silêncio das coisas anônimas —
Passaram essa tarefa para os poetas.
Os deslimites da palavra
Ando muito completo de vazios.
Meu órgão de morrer me predomina.
Estou sem eternidades.
Não posso mais saber quando amanheço ontem.
Está rengo de mim o amanhecer.
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.
Atrás do ocaso fervem os insetos.
Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu
destino.
Essas coisas me mudam para cisco.
A minha independência tem algemas
* * * * * * *
Thiago Domenici, editor e coordenador do NR
terça-feira, 11 de novembro de 2014
Uma final épica em Minas Gerais
por Pedro Mox*
No ano da Copa no Brasil, a final da Copa do Brasil promete parar novamente o país, colocando frente a frente Cruzeiro e Atlético-MG. Os motivos não são poucos. O primeiro é o fato de se tratar de um clássico. É apenas a segunda vez que dois times de uma mesma cidade se enfrentam na decisão da competição – a primeira foi em 2006, quando o Flamengo se sagrou campeão sobre o Vasco ganhando as duas partidas (2-0 e 0-1).
A forma pela qual o encontro foi desenhado também é especial: até 35 minutos do segundo tempo das semifinais, Flamengo e Santos decidiriam a competição. Foi quanto Willian anotou o tento cruzeirense; quatro minutos depois Luan fez o derradeiro e milagroso gol atleticano, concretizando a final mineira. Olhos de todos os cantos apontaram para Minas Gerais, a terra do futebol na atualidade – o que não é mero acaso.
Em 2013 a Libertadores e o Brasileiro ficaram por lá. Este ano ambas equipes mantiveram a base, coisa ainda não tão natural em nosso país, e boa parte dos que entrarão em campo nesta final já levantaram algum troféu com seu clube. A manutenção dos treinadores também merece destaque: Marcelo Oliveira fez belo trabalho à frente do Coritiba, foi demitido do Vasco em apenas dez partidas e hoje caminha para seu terceiro ano de Cruzeiro. No Atlético, após a permanência de Cuca entre 2011 e 2013, Levir Culpi teve o apoio necessário após a turbulenta eliminação da Libertadores (que causou a queda de Paulo Autuori).
A pré-temporada igualmente merece atenção: como o campeonato mineiro é enxuto (quem chega à final entra em campo 15 vezes), o tempo de preparação das equipes é maior. Paulistas e cariocas, por exemplo, fazem 19 jogos – o que, além de prejudicar o calendário, proporciona uma série enfadonha de partidas, como a modorrenta primeira fase do estadual de São Paulo.
Cruzeiro e Atlético são acostumados a decidir o estadual, já o fizeram em 19 campeonatos. Vantagem para a Raposa, que faturou 12 destes canecos. Em 2014, entretanto, o placar não saiu do 0-0, fazendo com que o Cruzeiro fosse campeão por ter a melhor campanha. Ano passado o Galo levou a melhor, ganhando no Independência por 3-0 e perdendo no Mineirão por 2-1. Em competições nacionais, todavia, é a primeira vez que o duelo acontece em uma final. Aliás, é somente a terceira vez que a dupla mineira se encontra em fases decisivas de torneios nacionais. O último encontro foi em 1999, pelas quartas de final do Brasileirão; duas vitórias do Galo (4-2 e 2-3) no Mineirão sobre o Cruzeiro então treinado por Levir Culpi, atual comandante alvinegro. Antes, pelo Brasileiro de 1986, dois empates (0-0 e 1-1), também pelas quartas, levaram o Atlético à semifinal.
Nos cinco clássicos promovidos em 2014, foram três empates sem gols no estadual e duas vitórias atleticanas no Brasileiro, 2-1 no Independência e 2-3 no Mineirão. O fator casa foi explorado pelos presidentes, e os dois duelos terão torcida visitante. É legítimo realizarem-se uma partida em cada campo, mas o que eu gostaria de ver é um Mineirão lotado, com 30 mil para cada lado, tal qual o clássico que lá assisti há alguns anos. É triste, muito triste, ser isso for coisa do passado, sobretudo pela nossa incapacidade de lidar e combater a violência no futebol. Resta torcer para que haja o mínimo de confusões possível, e que Belo horizonte nos brinde com mais um espetáculo futebolístico à altura que equipes e torcedores merecem. Com um cafezinho com pão de queijo para acompanhar.
*Pedro Mox, jornalista e fotógrafo, especial para o NR
No ano da Copa no Brasil, a final da Copa do Brasil promete parar novamente o país, colocando frente a frente Cruzeiro e Atlético-MG. Os motivos não são poucos. O primeiro é o fato de se tratar de um clássico. É apenas a segunda vez que dois times de uma mesma cidade se enfrentam na decisão da competição – a primeira foi em 2006, quando o Flamengo se sagrou campeão sobre o Vasco ganhando as duas partidas (2-0 e 0-1).
A forma pela qual o encontro foi desenhado também é especial: até 35 minutos do segundo tempo das semifinais, Flamengo e Santos decidiriam a competição. Foi quanto Willian anotou o tento cruzeirense; quatro minutos depois Luan fez o derradeiro e milagroso gol atleticano, concretizando a final mineira. Olhos de todos os cantos apontaram para Minas Gerais, a terra do futebol na atualidade – o que não é mero acaso.
Em 2013 a Libertadores e o Brasileiro ficaram por lá. Este ano ambas equipes mantiveram a base, coisa ainda não tão natural em nosso país, e boa parte dos que entrarão em campo nesta final já levantaram algum troféu com seu clube. A manutenção dos treinadores também merece destaque: Marcelo Oliveira fez belo trabalho à frente do Coritiba, foi demitido do Vasco em apenas dez partidas e hoje caminha para seu terceiro ano de Cruzeiro. No Atlético, após a permanência de Cuca entre 2011 e 2013, Levir Culpi teve o apoio necessário após a turbulenta eliminação da Libertadores (que causou a queda de Paulo Autuori).
A pré-temporada igualmente merece atenção: como o campeonato mineiro é enxuto (quem chega à final entra em campo 15 vezes), o tempo de preparação das equipes é maior. Paulistas e cariocas, por exemplo, fazem 19 jogos – o que, além de prejudicar o calendário, proporciona uma série enfadonha de partidas, como a modorrenta primeira fase do estadual de São Paulo.
Cruzeiro e Atlético são acostumados a decidir o estadual, já o fizeram em 19 campeonatos. Vantagem para a Raposa, que faturou 12 destes canecos. Em 2014, entretanto, o placar não saiu do 0-0, fazendo com que o Cruzeiro fosse campeão por ter a melhor campanha. Ano passado o Galo levou a melhor, ganhando no Independência por 3-0 e perdendo no Mineirão por 2-1. Em competições nacionais, todavia, é a primeira vez que o duelo acontece em uma final. Aliás, é somente a terceira vez que a dupla mineira se encontra em fases decisivas de torneios nacionais. O último encontro foi em 1999, pelas quartas de final do Brasileirão; duas vitórias do Galo (4-2 e 2-3) no Mineirão sobre o Cruzeiro então treinado por Levir Culpi, atual comandante alvinegro. Antes, pelo Brasileiro de 1986, dois empates (0-0 e 1-1), também pelas quartas, levaram o Atlético à semifinal.
Nos cinco clássicos promovidos em 2014, foram três empates sem gols no estadual e duas vitórias atleticanas no Brasileiro, 2-1 no Independência e 2-3 no Mineirão. O fator casa foi explorado pelos presidentes, e os dois duelos terão torcida visitante. É legítimo realizarem-se uma partida em cada campo, mas o que eu gostaria de ver é um Mineirão lotado, com 30 mil para cada lado, tal qual o clássico que lá assisti há alguns anos. É triste, muito triste, ser isso for coisa do passado, sobretudo pela nossa incapacidade de lidar e combater a violência no futebol. Resta torcer para que haja o mínimo de confusões possível, e que Belo horizonte nos brinde com mais um espetáculo futebolístico à altura que equipes e torcedores merecem. Com um cafezinho com pão de queijo para acompanhar.
* * * * * * *
*Pedro Mox, jornalista e fotógrafo, especial para o NR
sexta-feira, 7 de novembro de 2014
Pensando em mim
por Júnia Puglia ilustração Fernando Vianna*
Minhas andanças são o meu combustível. Se a atividade de cronista é alimentada pela capacidade de observar e traduzir o cotidiano, as coisas, pessoas e situações que nos cercam e nos acompanham, para mim há um elemento adicional indispensável, que é a possibilidade de viajar e me sentir desatada, solta nas ruas de algum outro lugar. Não sei que bicho é este, se algum vírus ou mutação genética. O que sei é que preciso de vez em quando me perder em longas peregrinações urbanas, caminhar sem rumo certo, olhando, sentindo, ouvindo e degustando os lugares, as gentes, odores e temperos alheios ao meu dia-a-dia candango, tão conhecido e tão entranhado.
A solidão nas viagens é cheia de sutilezas. Ela permite sintonizar olhos e ouvidos no alheio, naquilo que se oferece a cada passo dessas pernas forasteiras. Aqui, como em muitos lugares neste nosso século 21, as pessoas andam falando em seus celulares. Quando paradas ou sentadas, os olhos ficam grudados nas telas brilhantes. Muitas usam fones de ouvido enquanto conversam, gesticulam e argumentam em todas as línguas possíveis, como se estivessem no sofá da sala, dando a impressão de que algum truque de ilusionismo as impede de perceber o entorno de pessoas participando involuntariamente da discussão sobre o alegado assédio moral da chefe ou o comportamento descontrolado do filho adolescente. Mais intrigante ainda quando se nota que a privacidade e o tom baixo da conversa são traços marcantes da cultura local. Alguém deve estar se ocupando de analisar a humanidade depois do advento da telefonia móvel.
Porém, uma coisa é estar eventualmente sozinha, ou mesmo morar sozinha, tendência em alta neste nosso tempo de organização familiar em arquipélagos. Outra, bem diferente, é viver na privação do afeto e dos vínculos emocionais, que são a verdadeira essência da condição humana. Como os espelhos em que precisamos conferir nossa aparência todo dia, várias vezes por dia, cada vez que passamos diante de algum deles, as pessoas com quem trocamos afeto nos confirmam quem somos, e, em primeira e última instância, que viver vale a pena.
O sol tem sido generoso comigo nestes dias de outono frio do Norte. Um detalhe essencial, pois sem ele eu começo a definhar rapidamente. Além disto, como dito à perfeição pelo Dorival Caymmi,
“A estrela Dalva me acompanha
Iluminando o meu caminho
Eu sei que não estou sozinho
Pois tem alguém que está pensando em mim.”
Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com
Minhas andanças são o meu combustível. Se a atividade de cronista é alimentada pela capacidade de observar e traduzir o cotidiano, as coisas, pessoas e situações que nos cercam e nos acompanham, para mim há um elemento adicional indispensável, que é a possibilidade de viajar e me sentir desatada, solta nas ruas de algum outro lugar. Não sei que bicho é este, se algum vírus ou mutação genética. O que sei é que preciso de vez em quando me perder em longas peregrinações urbanas, caminhar sem rumo certo, olhando, sentindo, ouvindo e degustando os lugares, as gentes, odores e temperos alheios ao meu dia-a-dia candango, tão conhecido e tão entranhado.
A solidão nas viagens é cheia de sutilezas. Ela permite sintonizar olhos e ouvidos no alheio, naquilo que se oferece a cada passo dessas pernas forasteiras. Aqui, como em muitos lugares neste nosso século 21, as pessoas andam falando em seus celulares. Quando paradas ou sentadas, os olhos ficam grudados nas telas brilhantes. Muitas usam fones de ouvido enquanto conversam, gesticulam e argumentam em todas as línguas possíveis, como se estivessem no sofá da sala, dando a impressão de que algum truque de ilusionismo as impede de perceber o entorno de pessoas participando involuntariamente da discussão sobre o alegado assédio moral da chefe ou o comportamento descontrolado do filho adolescente. Mais intrigante ainda quando se nota que a privacidade e o tom baixo da conversa são traços marcantes da cultura local. Alguém deve estar se ocupando de analisar a humanidade depois do advento da telefonia móvel.
Porém, uma coisa é estar eventualmente sozinha, ou mesmo morar sozinha, tendência em alta neste nosso tempo de organização familiar em arquipélagos. Outra, bem diferente, é viver na privação do afeto e dos vínculos emocionais, que são a verdadeira essência da condição humana. Como os espelhos em que precisamos conferir nossa aparência todo dia, várias vezes por dia, cada vez que passamos diante de algum deles, as pessoas com quem trocamos afeto nos confirmam quem somos, e, em primeira e última instância, que viver vale a pena.
O sol tem sido generoso comigo nestes dias de outono frio do Norte. Um detalhe essencial, pois sem ele eu começo a definhar rapidamente. Além disto, como dito à perfeição pelo Dorival Caymmi,
“A estrela Dalva me acompanha
Iluminando o meu caminho
Eu sei que não estou sozinho
Pois tem alguém que está pensando em mim.”
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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com
quinta-feira, 6 de novembro de 2014
Se
1964 + 50
Histórias de pessoas de carne e osso – e também de personagens de papel – que viveram na roda viva da ditadura militar. Episódios quinzenais toda quinta-feira.
(Episódio 19)
por Fernanda Pompeu ilustração Fernando Carvall
Quando vi meu pai morto, faz um ano, pensei para me consolar: ele teve uma vida imensa. Conheceu o fracasso, mas também o sucesso. Tentou, errou, tentou novamente. Foi homem capaz de uma consistente história de amor de vida inteira com a minha mãe. Acreditou no comunismo dos quinze aos oitenta e três anos de idade. Deu muito azar em várias situações, mas, no balanço das perdas e ganhos, ele foi um sujeito de sorte.
Ao ler trechos das biografias dos mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura militar, percebo o quanto a maioria era jovem. Gente que nem havia encostado nos trinta. Olho para as fotografias e me ponho a imaginar o que eles seriam hoje. Certamente, velhinhos e velhinhas interessantes. Talvez, alguns até desinteressantes. Não importa. Teriam décadas inteiras para viver suas histórias.
Por exemplo, me detenho no rosto de Stuart Edgar Angel Jones, o Tuti. Um rapaz findo aos 25 anos. Não por conta do vírus Ebola ou por desastre de carro. Ele foi torturado até a morte dentro do Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica, no Rio de Janeiro. Amarram-no a uma viatura, com a boca colada ao cano de escapamento. Daí deram voltas no pátio. A viatura acelerava e freava. Tuti com a pele esfolada, tossia forte.
Essa cena foi testemunhada - e depois relatada a Zuzu Angel, mãe de Stuart - por um outro preso, o Alex Polari de Alverga. Fim da história? Não. Até hoje, novembro de 2014, os restos mortais do rapaz não foram encontrados. Há dois relatos diferentes: o primeiro diz que seu corpo foi jogado de um helicóptero em alto-mar. O segundo, ele teria sido enterrado como indigente em algum cemitério carioca. Grandes chances para ser o Cemitério de Inhaúma, aquele que Lima Barreto (1881-1922) eternizou no estupendo conto Os Enterros de Inhaúma.
Procuro mais informações e descubro que antes de ingressar no MR-8 - um dos pequenos grupos que optaram pela luta armada para enfrentar a ditadura - Stuart Angel havia sido um desportista, tendo ganho o bicampeonato de remo pelo Flamengo. Também tivera vida de estudante de economia na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Dois mais dois igual a quatro, tento imaginar o que Stuart teria feito se não tivesse a vida interrompida naquele maio de 1971. Medalhista de Olímpiada? Economista de banco? Professor de educação física? Vendedor de secos e molhados? Qualquer coisa poderia ter acontecido na vida dele, do mesmo jeito que qualquer coisa acontece nas nossas.
Na data de sua prisão, ele era casado com Sônia Moraes Jones. Uma moça também militante, também torturada e morta em 1973. Também desaparecida. Também cheia de possibilidades. Será que eles estariam juntos até hoje? Será que teriam filhos? Quem sabe agora teriam netos? Nenhum dos dois viveu para contar o futuro deles para nós.
Aliás, eles não tiveram foi tempo. Porque na casa dos vinte anos, a gente ainda nem tem um passado muito grande. Temos, em geral, a cabeça cheia de sonhos futuros. Eu por exemplo, em 1971, achava que seria médica. Acabei estudando cinema e me tornando escritora - entenda-se, alguém que escreve por prazer de escrever.
Mesmo quando narro uma história dolorida como essa, há a delícia de contar.
Stuart e Sônia foram apenas dois entre os muitos jovens que a ditadura militar torturou, matou e sumiu com os corpos. Também fizeram isso com pessoas mais velhas. Os torturadores e seus mandantes não faziam cerimônia. Eram todo-poderosos. E, até os dias atuais, esses senhores da morte estão livres e soltos por aí. Não digo leves. Pois não acredito que sejam.
Fernanda Pompeu é escritora e redatora. Fernando Carvall é o homem da arte.
Histórias de pessoas de carne e osso – e também de personagens de papel – que viveram na roda viva da ditadura militar. Episódios quinzenais toda quinta-feira.
(Episódio 19)
por Fernanda Pompeu ilustração Fernando Carvall
Quando vi meu pai morto, faz um ano, pensei para me consolar: ele teve uma vida imensa. Conheceu o fracasso, mas também o sucesso. Tentou, errou, tentou novamente. Foi homem capaz de uma consistente história de amor de vida inteira com a minha mãe. Acreditou no comunismo dos quinze aos oitenta e três anos de idade. Deu muito azar em várias situações, mas, no balanço das perdas e ganhos, ele foi um sujeito de sorte.
Ao ler trechos das biografias dos mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura militar, percebo o quanto a maioria era jovem. Gente que nem havia encostado nos trinta. Olho para as fotografias e me ponho a imaginar o que eles seriam hoje. Certamente, velhinhos e velhinhas interessantes. Talvez, alguns até desinteressantes. Não importa. Teriam décadas inteiras para viver suas histórias.
Por exemplo, me detenho no rosto de Stuart Edgar Angel Jones, o Tuti. Um rapaz findo aos 25 anos. Não por conta do vírus Ebola ou por desastre de carro. Ele foi torturado até a morte dentro do Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica, no Rio de Janeiro. Amarram-no a uma viatura, com a boca colada ao cano de escapamento. Daí deram voltas no pátio. A viatura acelerava e freava. Tuti com a pele esfolada, tossia forte.
Essa cena foi testemunhada - e depois relatada a Zuzu Angel, mãe de Stuart - por um outro preso, o Alex Polari de Alverga. Fim da história? Não. Até hoje, novembro de 2014, os restos mortais do rapaz não foram encontrados. Há dois relatos diferentes: o primeiro diz que seu corpo foi jogado de um helicóptero em alto-mar. O segundo, ele teria sido enterrado como indigente em algum cemitério carioca. Grandes chances para ser o Cemitério de Inhaúma, aquele que Lima Barreto (1881-1922) eternizou no estupendo conto Os Enterros de Inhaúma.
Procuro mais informações e descubro que antes de ingressar no MR-8 - um dos pequenos grupos que optaram pela luta armada para enfrentar a ditadura - Stuart Angel havia sido um desportista, tendo ganho o bicampeonato de remo pelo Flamengo. Também tivera vida de estudante de economia na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Dois mais dois igual a quatro, tento imaginar o que Stuart teria feito se não tivesse a vida interrompida naquele maio de 1971. Medalhista de Olímpiada? Economista de banco? Professor de educação física? Vendedor de secos e molhados? Qualquer coisa poderia ter acontecido na vida dele, do mesmo jeito que qualquer coisa acontece nas nossas.
Na data de sua prisão, ele era casado com Sônia Moraes Jones. Uma moça também militante, também torturada e morta em 1973. Também desaparecida. Também cheia de possibilidades. Será que eles estariam juntos até hoje? Será que teriam filhos? Quem sabe agora teriam netos? Nenhum dos dois viveu para contar o futuro deles para nós.
Aliás, eles não tiveram foi tempo. Porque na casa dos vinte anos, a gente ainda nem tem um passado muito grande. Temos, em geral, a cabeça cheia de sonhos futuros. Eu por exemplo, em 1971, achava que seria médica. Acabei estudando cinema e me tornando escritora - entenda-se, alguém que escreve por prazer de escrever.
Mesmo quando narro uma história dolorida como essa, há a delícia de contar.
Stuart e Sônia foram apenas dois entre os muitos jovens que a ditadura militar torturou, matou e sumiu com os corpos. Também fizeram isso com pessoas mais velhas. Os torturadores e seus mandantes não faziam cerimônia. Eram todo-poderosos. E, até os dias atuais, esses senhores da morte estão livres e soltos por aí. Não digo leves. Pois não acredito que sejam.
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Fernanda Pompeu é escritora e redatora. Fernando Carvall é o homem da arte.
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