Reportagem do Nota de Rodapé volta ao local onde pessoas foram desalojadas por enchentes e colocadas em alojamentos que, inicialmente, estavam cobertos com substância proibida. Sofrimento das famílias continua com o descaso do poder público
por Moriti Neto
29 de dezembro de 2010. Oito meses depois, novamente Atibaia. Bairro de Caetetuba. Mais exatamente, no popular Campo do Santa Clara. Fim de tarde, horário de verão, calor. Garotas e garotos jogam futebol e empinam pipas no chão de terra batida. Muita gente chega do trabalho e entra em um alojamento composto por quatro blocos de oito pequenos abrigos cada, onde sobrevivem 32 famílias. É nesse ambiente que reencontro vítimas das enchentes que inundaram a cidade entre dezembro de 2009 e janeiro de 2010 e desabrigaram quase 4 mil habitantes.
Em meio às crianças que brincam, noto semblantes cansados, já sofridos apesar da pouca idade. Tento não dispersar a atenção. Lembro do motivo de estar ali: conversar com pessoas que, além de terem perdido as casas nos alagamentos, foram colocadas por meses em contêineres e depois instaladas em abrigos de madeirite – em tese, provisórios – que, por pouco, não terminaram cobertos com telhas de amianto, substância proibida no estado de São Paulo e em dezenas de países.
Aproximo-me de uma jovem. O nome é Jéssica. A moça carrega o filho no colo e se dirige ao alojamento, mas atende solícita quando aceno. Inicio a conversa e pergunto se há previsão para que as famílias saiam do abrigo de madeirite e sejam encaminhadas para conjuntos habitacionais prometidos pelo poder público. A resposta é rápida: “não sei de prazo, não. Ninguém confirma data”.
Jéssica mora com outras 11 pessoas. O espaço é mínimo. Resumindo, pode-se descrever como um quarto de cerca de 5 metros quadrados e banheiro para 12 pessoas. “Tem lugar com mais, moço. Tem até com quinze”, explica a moradora.
O número de moradores em espaço tão reduzido e as condições estruturais precárias já seriam suficientes para causar grande mal-estar. Contudo, a sensação de desconforto aumenta quando Jéssica conta sobre o auxilio moradia de 300 reais que deveria receber por meio do cartão do Programa Novo Começo, fornecido pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU). “Recebi o cartão. Outras pessoas também receberam, mas nunca conseguimos sacar um tostão, nunca teve saldo”, desabafa.
Hora de falar com mais pessoas. Não precisa muito e cruzo com homens e mulheres, jovens e idosos. Busco referência, um rosto conhecido, alguém com quem eu tenha conversado no primeiro semestre. Um rapaz diz: “Lembro de você. Conversou com a minha mãe”.
Dona Cida
Começa o percurso por dentro de um dos blocos do alojamento. Ao lado do rapaz, rumo até a porta de um dos minúsculos abrigos e reconheço Dona Cida. Ela sorri e me abraça. “Você voltou”, murmura ao pé do ouvido. Mesmo com a filha de 15 anos grávida, hospitalizada com o objetivo de evitar um parto precoce, Dona Cida é atenciosa. Faz o convite para conhecer a pequena moradia. São seis pessoas residindo ali: ela e cinco filhos. “Seremos sete quando nascer o meu neto”.
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Dona Cida em sua casa de madeirite espera um socorro
efetivo do poder público. Prefeitura diz que obras estão
em andamento (Foto: Moriti Neto/NR) |
Separada do marido há tempos, Dona Cida tem mais um filho. “É o mais velho, tem 22. Era vendedor de loja fazia cinco anos, estava bem, mas se meteu com drogas e foi preso”, revela.
Passo a observar melhor aqueles parcos metros de moradia. Os móveis de sala, cozinha e quarto se misturam, muitas coisas estão empilhadas em prateleiras. A cobertura é feita por telhas finas, “cascas de ovo” como chama Dona Cida. O lugar é quente e a segurança mínima. “Fiz uma proteção, uma cercazinha de madeira, peguei algumas tábuas e montei. Tenho medo pelos meus filhos. Traficantes e policiais circulam aqui o dia todo e vi arma engatilhada perto de criança”, observa a moradora.
Falta de acesso à informação é algo comum entre os moradores do alojamento. Poucos sabem dos prazos que a prefeitura estabeleceu para que saiam do abrigo improvisado. Há quem afirme que foi falado em dois anos após as enchentes para que fossem transferidos em definitivo a um local destinado à construção de moradias. “Seriam casas populares, mas, até agora, nem mexeram no terreno”, comenta Dona Cida, indicando um detalhe curioso: “o cartão das pessoas que deveriam receber o auxílio moradia é válido até 2015. Se falaram em dois anos, porque até 2015?”.
Voltando ao auxílio moradia, as duas entrevistadas confirmaram problemas. Nenhuma conseguiu retirar os 300 reais do benefício previsto. Jéssica, por não haver saldo nas contas. Dona Cida, porque nem sequer recebeu o cartão.
Medida emergencial, a construção do alojamento num campo de futebol traz registros de água e luz, respectivamente instalados pelas empresas Saneamento Ambiental Atibaia (SAAE) e Elektro. Ambos prontos a calcular o consumo das famílias mesmo em meio à precariedade. O valor é cobrado com base em tarifas comerciais, medidos pela área em que está situado o terreno. “Na última conta de luz, me cobraram 138 reais e de água 130 reais. Recebo um salário mínimo de 510 reais como catadora de uma cooperativa de reciclagem de lixo. Ganho cestas básicas, não vou negar, mas é tudo doação de Igreja, não vem nada da prefeitura. O poder público nos jogou aqui e abandonou”, afirma Dona Cida, mostrando as contas que comprovam as quantias.
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Explicações da prefeitura
A prefeitura de Atibaia, em resposta ao
Nota de Rodapé, fala sobre os prazos da construção de moradias, mas, confirmando o que dizem os moradores, não há precisão na data. “As famílias irão para os primeiros prédios que ficarem prontos. Ou no bairro Caetetuba II, cujas obras já tiveram início, ou no Programa
Minha Casa Minha Vida, no bairro Jardim Colonial”.
Quanto aos altos valores das contas de água e luz, a administração municipal afirma que “houve, por parte da Elektro, classificação errada de 10 alojamentos como comerciais. Os outros 22 estão corretos como residenciais e serão classificados ainda como tarifa social. A Elektro se comprometeu a reclassificar esses 10 alojamentos, principalmente os do Bloco 3, e fazer novo cálculo como se fossem residenciais”. Sobre a cobrança da água, não houve esclarecimento.
A respeito do auxílio moradia, a prefeitura justifica que “apesar de todos receberem o cartão do Programa Novo Começo da CDHU, no início os pagamentos foram feitos em cheques, pois havia muitos problemas com CPF a regularizar. Todos receberam mil reais e três parcelas do Auxilio Moradia Emergencial em cheque, para ver se conseguiam alugar uma casa. Como não conseguiram, a partir da quarta parcela, a CDHU suspendeu o pagamento para quem estava no alojamento público, como determina a lei”, informou a prefeitura.
Ano novo, velhos problemas
Começo de 2011 e, de novo, Atibaia não é notícia boa. Até às 22h desta quarta-feira, 5 de janeiro, repetindo roteiro semelhante ao do ano passado, aproximadamente 450 casas foram afetadas por inundações. Todos os bairros da cidade atingidos entre 2009 e 2010, num total de 11, registram alagamentos.