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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

domingo, 15 de dezembro de 2013

Inté 2014: um ano de muitos debates

Queridos leitores e queridas leitoras deste coletivo: em nome de todo o time, gostaria de agradecer o prestígio que dão a este espaço. 2014 vai ser maior! O blog faz a partir de hoje uma pausa e retomará suas atividades no dia 13 de janeiro.

Um abraço e bom final de ano a todos vocês.

Thiago Domenici, editor e coordenador do NR

sábado, 14 de dezembro de 2013

Carta a presidente Dilma Rousseff

por Izaías Almada*

Exma. Presidenta da República Federativa do Brasil, Sra. Dilma Rousseff.

Venho por meio desta carta aberta pedir que a senhora, fazendo valer os direitos que a lei lhe confere e, sobretudo, num gesto de grandeza humana, como tem demonstrado em outros atos do sua gestão, conceda ao deputado e cidadão, José Genoino Neto, o indulto de natal, permitindo-lhe voltar ao convívio de seus familiares e assim cuidar da sua saúde, direito inalienável de qualquer ser humano. Sei que muitos outros cidadãos e cidadãs serão beneficiados pelo indulto. Que José Genoino Neto possa estar entre eles.

Respeitosamente,


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Izaías Almada, mineiro de Belo Horizonte, escritor, dramaturgo e roteirista, é autor de Teatro de Arena (Coleção Pauliceia da Boitempo) e dos romances A metade arrancada de mim, O medo por trás das janelas e Florão da América. Publicou ainda dois livros de contos, Memórias emotivas e O vidente da Rua 46. Como ator, trabalhou no Teatro de Arena entre 1965 e 1968. Mantém no NR a coluna mensal Pensando Alto

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

A desumanidade em close, sintoma de uma sociedade doente


por Celso Vicenzi*

As cenas exibidas no jogo Atlético Paranaense e Vasco da Gama, em Joinville (SC), na última rodada do Brasileirão – para além de todos os erros das autoridades públicas e privadas, e que poderiam ter evitado ou minimizado o problema –, são a confirmação da falência do Estado e das instituições democráticas para lidar com um fenômeno que se repete com enorme frequência diante da passividade de quem deveria buscar soluções e acionar mecanismos para evitar atos de selvageria, dentro e fora dos estádios. Outros países tomaram providências e acabaram com os torcedores-vândalos em curto espaço de tempo. Basta citar os hooligans, no Reino Unido, por exemplo. Aqui, clubes e torcidas organizadas são uma via de mão dupla, num toma-lá-dá-cá de interesses escusos.

No Brasil, para uma parcela das torcidas, o jogo de futebol deixou de ser a principal motivação para ir aos estádios. A adrenalina de confrontos com torcedores adversários parece produzir mais sensação de prazer do que um grito de gol. Parece haver uma glorificação da brutalidade, como, por exemplo, na ascensão como fenômeno de massa, com direito a cobertura permanente da televisão, das lutas sangrentas do UFC e MMA. Não é isso, isoladamente, que produz violência nas ruas ou nos estádios, mas algo está errado numa sociedade que elege esses confrontos à condição de espetáculo até mesmo na principal rede de TV do país. Não demorou, é claro, para que seus principais lutadores se transformassem em ídolos para crianças, adolescentes e adultos.

Talvez não seja apenas uma coincidência que o principal narrador esportivo do “país do futebol” leve também todo o seu entusiasmo às lutas marciais. Não, não há relação direta entre uma coisa e outra, eu sei. Mas não dá para fugir à contradição de, numa determinada hora e lugar, animar o “vale-tudo” e, em outra, fazer a apologia da paz e do fair play.

Profissionais da mídia, donos de emissoras, patrocinadores e governos que promovem lutas encarniçadas à condição de show, não podem lavar as mãos como se não houvesse, por ínfima que seja, uma incoerência. O que se exibe nos meios de comunicação, não raro, é modelo para milhões de pessoas, modela consciências. Emissoras de tevês – e rádio – são concessões públicas cuja principal finalidade (artigo 221, parágrafo primeiro da Constituição) é dar “preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas”. Pergunta: Quem cumpre? Quem fiscaliza?

Há muitos interesses em jogo e muito dinheiro para bancar essas lutas, que remetem aos tempos das arenas de gladiadores romanos. O espetáculo da brutalidade, nos ringues ou nos estádios de futebol, é sintoma de algo muito mais profundo que acontece com a sociedade brasileira.

Se não bastasse a violência das guerras entre torcidas, que choca pela sua crueldade e estupidez, é cada vez mais difícil explicar e compreender por que seres humanos agem com tanta desumanidade, covardia e irracionalidade quando, mesmo diante de um corpo já inerte, pessoas continuem motivadas a dar socos, chutar e até a golpear com pedaços de pau ou barras de metal, numa atitude que, evidentemente, poderá resultar em morte. Ausência total de sentimentos, nenhum remorso, a desumanidade em close nas câmeras. O amor a um time elevado à máxima potência do ódio ao adversário, seja ele quem for. Uma exibição de horror e perigosa bestialidade a nos relembrar, a todo momento, até onde a insensatez humana pode nos levar. E de quanto terror, tortura e ódio já fomos capazes de produzir ao longo da nossa história.

O ovo da serpente está sendo gestado. O que acontece com o futebol é só o sintoma de algo mais profundo: o diagnóstico de uma sociedade que está doente. Na qual cada vez mais pessoas desdenham do espírito público e só querem viver seu egoísmo consumista. Uma sociedade que esqueceu os valores fundamentais à convivência; que não abre mão da enorme desigualdade. Um povo massacrado pela falta de educação, cultura e oportunidades. Uma mídia manipuladora, demagógica, que se especializou em "anestesiar" as consciências e impedir o verdadeiro exercício da cidadania. Uma sociedade que continua racista, preconceituosa e discriminatória – a última a abolir a escravidão no planeta. Com uma das mais violentas polícias do mundo, para manter a segregação entre ricos e pobres. Um sistema político quase impraticável se os eleitos não aderirem aos coronéis que mantêm o poder desde as capitanias hereditárias. Um parlamento em que a maior parte dos que ali estão legislam em causa própria ou em favor de grupos muitos restritos, com vistas ao enriquecimento fácil e rápido. Um poder judiciário que pune, seletivamente, de modo casuístico, e que se mantém de olhos vendados diante das injustiças sociais. Enfim, a lista de nossas mazelas é ampla, geral e irrestrita, e explica boa parte do caos que se vê no interior de muitas famílias, nas ruas, nos bairros, na guerra que se trava em cada cidade e que toma conta do país, numa explosão de violência que parece não ter fim e que não será solucionada com mais violência policial. Somente em 2012, morreram assassinadas 50.108 pessoas. Faça as contas: durante os 90 minutos de uma partida de futebol são quase nove assassinatos, no país que também registrou mais de 50 mil estupros no último ano e 50 mil mortes anuais no trânsito.

Se é necessário, circunstancialmente, reprimir e punir, é muito mais eficaz educar, dar oportunidades, propor leis e mecanismos que diminuam o abismo social entre ricos e pobres; ensinar a respeitar toda diversidade, étnica, cultural, religiosa, política, de gênero e opção sexual; criar uma polícia para proteger o cidadão, mais que o patrimônio; produzir informação, cultura e entretenimento de qualidade, com uma democrática divisão das concessões de rádio e televisão, consolidar, enfim, uma sociedade mais justa e solidária. Sem isso, a barbárie vai se espalhar e produzir cada vez mais vítimas. Dentro e fora de estádios.

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Celso Vicenzi, jornalista, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina, com atuação em rádio, TV, jornal, revista e assessoria de imprensa. Prêmio Esso de Ciência e Tecnologia. Autor de “Gol é Orgasmo”, com ilustrações de Paulo Caruso, editora Unisul. Escreve humor no tuíter @celso_vicenzi. “Tantos anos como autodidata me transformaram nisso que hoje sou: um autoignorante!”. Mantém no NR a coluna Letras e Caracteres.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

A polêmica da canalização de rios: estamos na contramão?

Hoje, o Nota de Rodapé encerra a publicação das matérias produzidas para o jornal laboratório do curso de Jornalismo da FAAT, faculdade instalada em Atibaia, no interior de São Paulo, que recebeu o Prêmio Yara de Comunicação na categoria Trabalho Acadêmico. A premiação foi lançada com o intuito de comemorar os 20 anos dos Comitês das Bacias Hidrográficas dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (Comitê PCJ). O conteúdo é inédito na internet e trata dos essenciais recursos hídricos das bacias que abastecem milhões de pessoas no Estado de São Paulo. 

A última reportagem é de Maria Ribeiro que trata da controvérsia sobre a canalização de rios. Tomando como exemplo a pequena cidade de Piracaia, no interior paulista, o texto traz os argumentos de ambientalistas, moradores ribeirinhos e poder público, além de dar dados sobre um debate que ocorre em várias partes do Planeta. 

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Canalização do rio Cachoeira gera polêmica na cidade de Piracaia

Ambientalistas afirmam que paredões são desnecessários em áreas não afetadas por enchentes 

texto e imagens Maria Ribeiro*         colaborou Rogério Vicenzi

Com a nascente no Estado de Minas Gerais, o rio Cachoeira corta várias cidades do eixo norte/leste do Estado de São Paulo, casos de Atibaia, Joanópolis e Piracaia. A última, está localizada ao leste paulista e é exatamente onde reside uma polêmica: a canalização de um trecho do rio, que faz parte da Área de Proteção Ambiental Piracicaba Juqueri-Mirim do Sistema Cantareira, responsável por abastecer com água cristalina 55% da grande São Paulo e a região de Jundiaí e Campinas. 

É da represa situada em solo piracaisense que sai a água potável abastecedora desses dois importantes polos econômicos estaduais. E o dilema reside na maior necessidade de água que, se liberada indiscriminadamente, pode levar a inundação todo o perímetro urbano da pequena cidade de Piracaia. Para tratar a questão, os órgãos responsáveis resolveram tomar a controversa medida de canalizar o rio. 

A obra é financiada pelo Fundo Estadual de Recursos Hídricos (Fehidro), gerenciada pelo Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE) e fiscalizada pela Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb), todos ligados ao Governo do Estado. A iniciativa, no entanto, não é bem vista pelos ambientalistas da região. Para eles, o método adotado destrói a mata ciliar, extingue várias espécies animais (aquáticas e terrestres) e ainda torna as enchentes mais agressivas. 

Há 20 anos na região, o ecologista e morador ribeirinho Nivaldo Santos vê a canalização como desnecessária e ofensiva ao meio ambiente. Ele afirma que, em algumas áreas, a construção de paredões é inútil, já que não existe histórico de inundações. “As obras deveriam ocorrer no leito do rio”, diz. 

A engenheira agrônoma da Prefeitura do município, Ana Lucia Watanabe, rebate. Ela ressalta que, sem a obra, a liberação das comportas para atender a demanda crescente por água em grandes regiões certamente inundaria a cidade. Responsável pelo projeto, a engenheira destaca que, além da necessidade, o impacto ambiental é mínimo. “A obra é realizada no perímetro urbano”, destaca. 

Contudo, moradores explicam que a paisagem já foi afetada significativamente. Pelo menos 100 arvores foram derrubadas nas margens, dentre elas tapiás, amoreiras, figueiras e pau-brasil. Elas abrigavam pássaros durante a reprodução e alimentação. Além deles, capivaras, cágados, lontras e lagartos terão que passar por readaptação. 

João Francisco Neto, outro morador ribeirinho, observa que canalizar o rio deve aumentar ainda mais a velocidade da água, podendo causar danos irreparáveis à população. “O que realmente falta é que as pessoas se conscientizem e comecem a coletar lixos, pois moramos na beira de um rio rico e com vida”, defende. 

Rumo certo ou contramão? 

Ambientalistas: materiais impedirão permeabilidade  
Entre os argumentos contrários a canalização, está a crítica sobre a ideia de que o rio é o problema e a solução estaria em corrigir o curso e cimentar as laterais, completando o processo de canalização. Os ambientalistas, inclusive, garantem que alguns países do exterior, Alemanha e Coreia do Sul, por exemplo, perceberam o erro de canalizar e estão “renaturalizando” rios, voltando para as formas originais. 

Os grupos que atacam a canalização apontam que, com o leito do rio revestido por materiais impermeáveis, a água não se infiltraria no solo e, consequentemente, não chegaria aos lençóis freáticos subterrâneos. Sem obstáculos naturais, os cursos d’água correriam mais. Dessa forma, seriam evitadas inundações em determinados trechos, mas elas passariam a ser mais destrutivas adiante, já que a água chegaria com velocidade maior. A aceleração das águas contribuiria, também, para a eliminação das comunidades aquáticas. 

A Prefeitura de Piracaia segue na defesa do projeto e garante que a obra é “ecológica”. A engenheira Ana Watanabe argumenta que a canalização feita no rio Cachoeira é diferente em relação a outras cidades. Segundo ela, o exemplo disso está no uso de gabião (pedras amarradas) em vez de concreto. Esse recurso funcionaria como abrigo e local de desova para os peixes, além de arejar as águas. “Para substituir as árvores derrubadas, pelo menos cinco mil mudas nativas da Mata Atlântica serão plantadas no local. As vantagens serão evidenciadas pela população ribeirinha, pois os moradores serão mapeados para não sofrer mais com as enchentes”, comenta. 

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Exemplo 

De acordo com estudo da professora da Universidade Federal da Bahia e geóloga, Lígia Nunes Costa, as consequências da canalização de rios alteram o ciclo hidrológico. Para ela, é o aumento da impermeabilização do solo que intensifica a ocorrência de grandes enchentes. Dessa forma, a artificialização dos canais de drenagem, prática corrente na maioria das cidades brasileiras, choca-se com a tendência adotada mundialmente de resgate das paisagens naturais. 

Um exemplo de “renaturalização” é o rio Cheonggyecheon, em Seul, na Coreia do Sul, considerada referência mundial em humanização de cidades, não só pela despoluição das águas, mas pela construção de parques lineares que devolveram o contato das margens aos moradores. 

O rio estava enterrado embaixo de toneladas de concreto. A obra de revitalização na área, iniciada em 2003, chegou a derrubar um viaduto. Três anos depois, parte do canal de 80 metros de largura foi aberto ao público. O projeto foi concluído neste mês, com a entrega aos moradores de áreas verdes que totalizam 400 hectares, distribuídas ao longo de oito quilômetros de extensão. 

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Maria Ribeiro é repórter e estudante do 4º ano de Jornalismo.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Entrevista: o dinamismo de Cidinha da Silva

por Júnia Puglia    foto André Frutuôso 

Em seu novo livro, “Racismo no Brasil e afetos correlatos” (Conversê Edições), Cidinha da Silva solta o verbo e os adjetivos em observações e análises diretas, profundas e contundentes sobre o que rola na nossa “casa grande e senzala” de todos os dias, aquela que alguns se esforçam para eliminar, enquanto muitos preferem alimentar. Com sua lupa voltada para os meios de comunicação, faz uma varredura completa. Oferecemos um aperitivo.

NR – É possível afirmar que há hoje mais sinceridade e transparência no que os meios de comunicação mostram sobre as relações raciais no Brasil do que, digamos, dez anos atrás?

Cidinha da Silva: Penso que “sinceridade e transparência” são expressões muito generosas e muito abrangentes. Há exceções que se enquadrariam nessa definição, mas, de um modo geral, vejo dois outros movimentos simultâneos. O primeiro é pautado por algumas mudanças positivas (presença temática e de sujeitos negros, em certos casos como protagonistas) e o segundo é uma reação conservadora, principalmente da televisão, orientada pelo que se discute na blogosfera e redes sociais. O caso recente da apresentadora Fernanda Lima/FIFA é elucidativo. Vejamos: 1 – aventaram-se os nomes de Camila Pitanga e Lázaro Ramos (atores negros) para apresentarem o sorteio dos grupos da Copa. 2 – Vazou a informação de que a FIFA os teria preterido em favor do casal de modelos brancos Fernanda Lima e Rodrigo Hilbert. 3 – Houve reações generalizadas na Web acusando a FIFA de racismo. 4 – A FIFA responde às acusações por meio de nota que justificava a escolha dos modelos, embasada em experiência internacional e trabalho anterior para a instituição. 5 – A justificativa não cola e então Fernanda Lima vai a campo, questiona a reação do povo na web, defendendo-se como cidadã que paga impostos e “branquinha” perseguida que “não tem nada a ver com o racismo”. 6 – Não contente, ela usa o programa de televisão do qual é apresentadora para responder a um debate que ocorreu em blogues e nas redes sociais. Uma reação típica de modernização conservadora, que considera uma discussão de ponta, de criticidade apurada, como subsídio para produção de mais uma peça de escárnio aos negros brasileiros na TV. Fernanda Lima se veste de colonizadora, canta e dança “cada macaco no seu galho” esvaziando o sentido político da letra: “esse negócio da mãe preta ser leiteira / já encheu sua mamadeira / vá mamar noutro lugar”! A apresentadora ridiculariza o posicionamento que problematizava a escolha da FIFA, transforma o conflito racial em piada e reforça a crença de que o racismo é um problema dos racistas e dos discriminados, não dela, uma “simples pessoa do bem”.

NR – O Emmy dado à telenovela “Lado a lado” atropelou a campeã de audiência “Avenida Brasil”. É um sinal dos tempos?

Cidinha da Silva: Não creio. Penso que seja um sinal alvissareiro, um recado vindo de fora sobre o que deveria ser valorizado e reconhecido aqui dentro, mas não chega a ser um sinal dos tempos. Tecnicamente são dois produtos televisivos excelentes, com interpretações memoráveis de grandes atrizes e atores, entretanto, Lado a lado tem o requinte do tema e da abordagem inovadora das relações raciais e de gênero neste tipo de produto, para ater-me a apenas duas qualidades da novela. Mas não creio que chegue a ser um sinal dos tempos.

NR – Remar, remar, remar e chegar no concurso para eleger a nova Globeleza. Por que a televisão insiste no retrocesso? O público aprecia mesmo?

Cidinha da Silva: Porque a televisão se autocompreende, se projeta e se perpetua como máquina de produção de bobos, de gente acrítica que mantém o status quo, principalmente no que concerne às assimetrias raciais. O papel que a Globo atribuiu a Sheron Mennezes (e ela aceitou) nesta edição da Globeleza é muito triste. Assim o descrevi em crônica recente, intitulada “A roda gigante e o motor da casa grande”: “Em uma das salas da casa grande, outra atriz negra da novela Lado a Lado surpreende a gente altiva ao apresentar-se como pregoeira de um conjunto de bundas e pernas negras naturais (hiper malhadas) ou siliconadas: glúteos, vasto lateral, bíceps da coxa, trato iliotibial. Acém. Cupim. Músculo. Coxão duro. Paleta. E não se sabe que parte da imagem é mais triste e deprimente, a carne de segunda e seu corte de costas ou o filé mignon disfarçado, maquiado, bem vestido, de sorriso angelical e dengoso a serviço do leilão de mulheres no mercado dos corpos.”

NR – Você é bem jovem ainda e já tem uma obra considerável publicada, tanto em livros quanto na internet – sem falar no teatro. Como é lidar com os vários meios e linguagens ao mesmo tempo?

Cidinha da Silva: Obrigada pelo “bem jovem ainda”, Júnia. Eu gosto do dinamismo, ele me alimenta muito e é uma necessidade. Eu comecei a publicar literatura tarde, então tenho muitos projetos acumulados e não tenho mais tanto tempo para desenvolvê-los, porque não comecei aos vinte, comecei aos 39. Por isso trabalho muito e disciplinadamente no pouco tempo deixado pelo trabalho que garante a sobrevivência econômica para dedicação à literatura. A dramaturgia era um sonho que ora realizo com Capulanas Cia de Arte Negra e Cia Os Crespos, grupos de teatro negro de São Paulo. Tem coisas lindas sendo ensaiadas para 2014, tão lindas quanto “Sangoma” e “Engravidei, pari cavalos e aprendi a voar sem asas”, as duas peças deste 2013.

NR – Como você consegue manter a contundência do texto num ritmo tão intenso? Fartura de material nesse nosso Brasil complicado?

Cidinha da Silva: O amigo e bailarino Rui Moreira diz que minha caneta é de Ogum, deve ser por isso. Mas minha meta é ser cada vez mais água, busco a beleza, a alegria, a poesia na escrita. Quero estetoscópios para descobrir a vida que escapa do cotidiano endurecido (e enfurecido). Quero uma espada banhada em mel na mão esquerda e uma caneta de Oxum na outra para traçar o caminho.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

O topo do mundo



por Ana Mendes*

Chovia torrencialmente quando fui assistir o espetáculo O topo do Mundo em Porto Velho. Novembro é justamente o período de transição entre as estações amazônicas. São só duas: ou é inverno ou é verão. Como diria Walter, um biólogo que já virou mito na cidade “ou é quente ou danado de quente”. É mesmo. Mas de fato aquela chuva tinha algo de extraordinário e no palco um menino foi parido. Um moleque grande e preto rolou útero a fora gritando “eu matei! Eu tirei uma vida e me tornei meu próprio Deus... Por quanto tempo ainda serei um caiado, branco por fora e podre por dentro!?”

Sob o comando do diretor Marcelo Felice, uma equipe de vinte atores colocam em cartaz diversas narrativas simultâneas. Todas elas em torno de um destino comum: o cárcere. Eles são presidiários do regime fechado da penitenciária Urso Branco. No palco, revelam histórias que tem um vínculo profundo com as trajetórias pessoais de cada um. São tramas que contam mais do que um relato verídico dos acontecimentos que desencadearam em crimes, mas trazem processos psicológicos de dor, medo, vaidade, vergonha, vingança contra si e contra os outros.

O roteiro é resultado de processos terapêuticos que acontecem fora do palco. A complexa ferramenta elaborada por Marcelo e sua equipe envolve uma ampla busca espiritual. Massoterapia, meditação, banho de lama, temascal, ayhuasca e o eneagrama formam um conjunto de técnicas que bem aplicadas resultaram em uma iniciativa que dura quase duas décadas. “Este projeto é intitulado como teatro terapêutico, pois todo e qualquer movimento corporal, dos corpos emocionais, psíquicos e mentais, são experimentamos a partir da psicoterapia, fazendo com que esses indivíduos reflitam sobre a sua ação e reação. Todo o gesto, elaborado ou não, de movimentos autênticos ou de dança contemporânea, por exemplo, vem precedido da terapia.”, diz Marcelo.

Este é o segundo espetáculo montado por Felice com atores detentos. O primeiro, intitulado Bizzaros ficou quinze anos em cartaz e circulou por todo o país, sendo inclusive apresentado para membros da Organização das Nações Unidas (ONU) e autoridades da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Em 2014 o projeto pretende incluir as mulheres que cumprem pena do Presídio Estadual Feminino de Porto Velho. Ao poder público local e nacional fica o recado: este é um projeto sem precedentes no país, sobrevivendo com garra e fé de quem acredita no potencial renovador do ser humano. É necessário mais atenção, muito mais.

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*Ana Mendes, gaúcha de nascimento, é fotógrafa e cineasta documental formada em Ciências Sociais. Mantém a coluna Faço Foto.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Macho do tipo "casca grossa"


por Alexandre Luzzi*

O que significa ser homem? Será que nascemos homem? Como alguém se transforma em um sujeito de gênero? A relevância dessas perguntas se torna óbvia, na medida que todo preconceito relacionado às questões de gênero se fundamenta na concepção de que as características biológicas são suficientes para definirmos se é “menino” ou “menina”. Ou seja, qualquer opção de identidade de gênero que não se identifique com as características biológicas do sexo é considerada, portanto, um desvio da norma.

A filósofa Simone de Beauvoir afirmou, por exemplo, que “ninguém nasce mulher: torna-se uma”. A estória de Sísifo pode nos ajudar a pensar a questão.
“Sísifo desce correndo as escadas de sua casa, passa pela sala onde encontra seu pai dormindo no sofá, vai até a rua e observa uma cena espantosa: uma mulher dando pedras de alimento para um cachorro cego, desses bem agressivos da raça Pitbull. O rosto da mulher era familiar, no entanto, não lembrava exatamente de onde a conhecia”.
De repente sua mãe entra no quarto, como quem entra na alma de alguém sem pedir licença. Sísifo acorda de seu sonho com uma estranha sensação: uma mistura de medo com dor na “boca do estômago”.

O rapaz de vinte e nove anos sempre teve a impressão de carregar as pessoas internamente, nos seus órgãos corporais, e esse sonho, recorrente, deixava isso cada vez mais claro. Talvez não há a possibilidade de pensarmos a questão da identidade sem situá-la no espaço “entre-dois” de uma intensa relação afetiva. Nosso “Eu” constrói-se ao mesmo tempo que se esparrama pelo mundo, assim como os outros “Eus”, significativos para cada um de nós, são interiorizados e se instalam em nosso corpo.

Sísifo era um professor de artes marciais e toda sua vida foi marcada pelos imperativos do movimento e da luta. Com anos de prática construiu um corpo forte e musculoso. A imagem adequada ao seu ideal de masculinidade.

No ambiente das artes marciais os pontos de sustentação da masculinidade são facilmente reconhecidos. Mais homem é aquele que sabe lidar com as dores físicas. É o mais corajoso e agressivo, aquele que não tem medo da luta. Mesmo em uma derrota, os lutadores que suportam os piores castigos sem desistir eram considerados grandes guerreiros. Já aqueles que não conseguiam passar por cima da própria dor e superar seus medos são considerados “frouxos” [expressão utilizada com frequência].

Para se enquadrar nesse padrão, Sísifo suportava todo tipo de carga nos seus treinamentos. Sua força física externava sua própria fraqueza na inabilidade de lidar com suas emoções. A apatia e a falta de movimento em seu mundo emocional eram simbolizadas no excesso de movimento corporal. Assim, Sísifo não conseguia parar de lutar. Na luta sempre teve um desafio maior do que os seus oponentes: aprender a lidar e canalizar a raiva, outra emoção que afetava de forma indelével seu corpo.

Em sua personalidade e mesmo na aparência física, poucas coisas lembravam seu pai, um sujeito muitas vezes considerado por Sísifo como um ilustre desconhecido. As influências dos homens por parte da família de sua mãe eram mais visíveis, em especial uma: seu padrinho Paulo Honório.

Paulo Honório tinha como matriz de sua subjetividade masculina todo o peso do século XIX mesmo vivendo no século atual. O domínio sobre a mulher e o poder absoluto do proprietário sobre suas “posses” materiais e humanas sustentavam sua masculinidade.

E Sísifo cresceu ouvindo a mitologia dos feitos de seu padrinho como as brigas nos campos de futebol, as conquistas e romances com inúmeras mulheres, seu empreendedorismo e sua força de fazer valer o seu desejo. Para um garoto que aprendeu a se reconhecer no espelho do olhar da mãe como o eleito, um ser completamente especial, a identificação com os feitos de seu padrinho eram muito mais atrativas do que a personalidade mais calma e serena do pai.

Assim Sísifo foi construindo-se como sujeito (subjectum, assujeitado), na identificação com mestres de luta onde a expressão da força e da destreza físicas eram símbolos de uma masculinidade ideal. Assim como na identificação com Paulo Honório: um homem que transformava a arte da convivência em um ato violento, pelo seu desejo implacável de moldar o outro.

Mas entre o ideal e o real há sempre um abismo onde a descida é dolorosa e assustadora. Para evitá-la, Sísifo recorria à utilização de drogas, estimulantes e anabolizantes, transformando seu corpo em uma "casca grossa", afastando-se cada vez mais de seu mundo emocional e recusando-se a encarar a luta de lidar com tudo que está aquém do ideal, no caso, o peso da angústia de existir.

Sem consciência do fardo que carrega, como um cachorro cego que cheira carniça e sente-se diante de um banquete, há poucas chances do herói absurdo reconstruir sua subjetividade e se tornar protagonista de sua própria história.

Ao anoitecer, depois de mais um dia com uma carga excessiva e extenuante de treino Sísifo adormece. No meio da noite acorda assustado com uma sensação de medo tomando seu corpo e se instalando novamente no estômago. Quando a consciência vai assumindo seu lugar, Sísifo se lembra do seguinte sonho: 
“Dentro de um tribunal, um juiz com dimensões enormes e com um aspecto de um Deus mitológico, condena-o para um trabalho forçado. Sísifo fora condenado por um crime que ele não tinha consciência se havia cometido ou não. Sua sentença: carregar uma rocha enorme e pesada até o cume de uma montanha, de onde tornava a cair por seu próprio peso, um trabalho inútil e sem fim.”

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Professor de Educação Física, capoeirista, Alexandre Luzzi coordena o espaço Tai Ken e mantém a coluna mensal Corpo a Corpo.

domingo, 8 de dezembro de 2013

Acelerador de emoções


por Fernanda Pompeu   Imagem Régine Ferrandis*

Todo mundo já ouviu falar - mesmo que de filme - de aceleradores de partículas. Máquinas que chocalham e fazem colidir em velocidades impressionantes átomos, fótons, elétrons, moléculas. Objetivo: saber mais.

A vedete entre eles é o LHC - Large Hadron Collider. Trata-se do maior acelerador de partículas do mundo, com 27 km de circunferência. Ele foi construído em um laboratório subterrâneo na fronteira franco-suíça.

O LHC, batizado informalmente de Máquina do Big Bang, alimenta o desejo de muitos cientistas em recriar as supostas condições ambientais logo após a grande explosão do Big Bang e da consequente expansão do universo.

Confesso que de física entendo uma cesta básica, mas ao ver um documentário na TV sobre esse acelerador de partículas, comecei a imaginar como seria um acelerador de emoções. Uma máquina que, acima da velocidade da luz, expandisse nossas emoções.

Que tal fazer a alegria se tornar supersônica? Aumentar as sensações de prazer e júbilo? Levar a paixão até a altura das nuvens? Melhor ainda, à altura das estrelas? Ou, mais modestamente, alongar a invasão da paz no território da nossa intimidade.

Conseguir assim reproduzir as condições ideais da felicidade. Esta que é a rainha das emoções. Plena e rara. Algumas vezes fui tão feliz que o planeta poderia ter parado, o jardim virado deserto, o mar secado e nenhuma dessas alterações haveria me perturbado.

Mas logo percebi que a ideia de um acelerador de emoções não era só ruim. Era péssima, sofrível, nota zero. Um autêntico projeto de parvo. Pois nem todas as emoções são dança, festa, regozijo. Há aquelas doídas, navalhas afiadas na alma.

Que horrível seria acelerar a nostalgia, o pranto, o luto. Já imaginou um nó na garganta se chocando com uma pontada no peito? Um soco no estômago colidindo com uma montanha de tristeza? Mais apropriado deixar os aceleradores nos laboratórios.

É menos arriscado bulir com matérias do universo. Uma vez que só o que está fora de nós, é passível de ser mensurado e etiquetado. O que colecionamos dentro é inclassificável.

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fernanda pompeu, webcronista do Yahoo e do Nota de Rodapé. *Texto Publicado originalmente no Mente Aberta - Yahoo. Imagem: Régine Ferrandis sobre obra de Willian Kentridge.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Evoé, velho Madiba, espelho da liberdade!



por Cidinha da Silva*

Li em algum lugar que a saudade é o amor que fica. Achei tão bonito. Já sentimos saudade de você há algum tempo, velho Madiba, desde que você se recolheu, calou-se depois da morte de Zenani, sua bisneta, atropelada por um carro ao fim da abertura do Mundial de Futebol em seu país natal.

Sabíamos que você estava adoentado, iniciava o caminho de volta, mas ainda estava entre nós. A saudade agora dói mais, é o sentimento de adeus a um dos nossos que partiu para o país dos ancestrais.

Eu achava que não sentiria dor, não lamentaria, pois pensava estar conectada a sua necessidade de desenlace. Que nada! Caí do alto do cajueiro e espatifei no chão.

E gente sonhadora conseguiria manter-se incólume à passagem de Madiba pela Terra, o grande espelho da liberdade? Todos nós que um dia sonhamos com a vida plena e humana, em algum momento nos vimos refletidos em sua voz firme, seu sorriso franco, seu olhar terno, sua coluna ereta e suas mãos de pugilista.

Nós ousávamos pensar, velho Mandela, que fazíamos parte de você. Sentíamos que o melhor de nós habitava você. Era nosso jeito de crescer e de nos tornarmos dignos da sua luta sem trégua contra o racismo institucional. Queríamos ser persistentes como você, que a determinação se encaixasse em nós como sobrenome e que sua tenaz ternura nos apaziguasse.

O sonho não acabou, honorável Madiba! Seguimos! Um tanto tristes, um pouco órfãos, temerosos pelos destinos da África do Sul que não conseguiu ainda responder aos anseios da juventude, tampouco contar com a colaboração dela para pensar os caminhos novos.

Sabemos que estará conosco, velho Madiba. Em cada um de nós que tenha aprendido com você a primar pela justiça e pela liberdade comprometida com quem está nos piores lugares do mundo, com a política como busca comum do bem comum a partir de quem mais precisa.

O venerável Rei dos xhosa volta para Qunu, onde seu povo oferece a terra fértil para descanso do corpo do Grande Guerreiro e florescimento dos guerreiros novos. Ele dá a seu povo a alegria de ter em casa o filho mais ilustre, depois da missão de vida cumprida.

N’Zaambi ye Kwaatesá, velho Madiba! N’Zaambi ye Kwaatesá!

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escritora, Cidinha da Silva mantém a coluna quinzenal Dublê de Ogum.

Vermelho russo


por Júnia Puglia       ilustração Fernando Vianna*

Sou bem desentendida dessas coisas. Na condição de psicanalisada, suponho ser porque, quando eu tinha uns seis anos e a mãe de uma colega do jardim de infância me maquiou a caráter para a festa junina da escola, a minha própria mãe quase desmaiou ao me ver toda pintada. Maquiagem não era coisa de criança, ponto final. Mal estava autorizada para mulheres adultas, dentro do nosso mundo evangélico puritano. Eu, que já tinha uma penca de dificuldades com a tal feminilidade do pacote pronto, apaguei do meu radar qualquer possibilidade. Já na casa dos vinte, eu passava muito longe dos pós, sombras, lápis e delineadores, e dos esmaltes de unha também.

Casei-me pouco antes dos trinta. Se há um momento de fulgurância obrigatória na vida das mulheres, é o do casamento. Lá fui eu ser maquiada por um profissional, me achei linda, casei, lavei tudo bem lavadinho e segui em frente. Um dia, não sei quando nem como, me encantei por ele, e só por ele: o batom vermelho. Ficamos inseparáveis. Tempos depois, agreguei um lilás, outro cor de chocolate, rosa-choque, todos bem marcados, mas nenhum como ele, o único item de pintura que se infiltrou de vez na minha vida.

Quando minha filha, já adolescente, quis se maquiar pra uma festa, fui salva pela amiga perua, que veio toda equipada acudir a filha alheia. Solidariedade feminina inclui essas coisas. Depois, ela aprendeu muito bem a realçar seus traços fortes e definidos com linhas, cores e efeitos que me deixam de boca aberta. Acho até que já perdoou a mãe por mais esta incompetência.

Sem ele, sinto-me nua, imprópria para circular em público. O batom vermelho. Faz milagres. Cura casos leves de depressão, sacode autoestimas pisoteadas, eleva uma roupinha de feira a níveis impensáveis de exotismo e elegância. E, o mais importante, faz o espelho me mostrar uma imagem bem mais interessante que aquela falta de graça que refletia no passado, antes que eu descobrisse a mágica da boca rubra.

Batons vermelhos variam bastante em tons, consistências e preços. Tolice gastar muito dinheiro com isso, o baratinho cumpre bem o seu papel. O campeão dos campeões, na minha opinião, é um tal “vermelho russo”, denominação que certamente provoca abalos cotidianos nas tumbas de lênins e stálins. Acredite-me, camarada. Um batom vermelho russo não tem concorrentes na tarefa de colorir uns lábios cuja linha já está se diluindo no solvente do tempo, sobre uma pele deficiente de melanina. Um autêntico herói revolucionário.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Assoreamento do rio Atibaia: danos ambientais e medo

O Nota de Rodapé prossegue com a publicação das matérias produzidas para o jornal laboratório do curso de Jornalismo da FAAT, faculdade instalada em Atibaia, no interior de São Paulo, que recebeu o Prêmio Yara de Comunicação na categoria Trabalho Acadêmico, lançado com o intuito de comemorar os 20 anos dos Comitês das Bacias Hidrográficas dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (Comitê PCJ). O conteúdo é inédito na internet e trata dos recursos hídricos das bacias que abastecem milhões de pessoas no Estado de São Paulo. 

A seguir a reportagem de Fernanda Domingues, sobre o assoreamento do rio Atibaia. Entre outros problemas, a situação causou fortes enchentes que atingiram milhares de pessoas na cidade, deixando consequências até hoje, como o grave caso dos desabrigados do Campo do Santa Clara, que o NR noticiou várias vezes. 

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Assoreamento do rio Atibaia causa impacto ambiental 

Ausência de mata ciliar, sedimentos da água de chuva e obras de terraplanagem são as principais causas do problema. A população está apreensiva.


Um dos trechos mais assoreados do rio passa pela área mais pobre da cidade com o contraste do suntuoso Hotel Bourbon na paisagem 
texto e imagens Fernanda Domingues* 

O rio Atibaia, além de sofrer com o esgoto que vem da cidade de Bom Jesus dos Perdões (SP), tem, no trecho que passa pela cidade de Atibaia, interior de São Paulo, a 57 quilômetros da capital, um problema que causa sérios danos ao meio ambiente e à população: o assoreamento. Dos 16 km de extensão, existem partes em que a altura da água chega, no máximo, a 10 centímetros. Nesses pontos, pássaros caminham e não chegam a molhar nem sequer metade das pernas. 

A situação se arrasta há anos e por diversos motivos. Um exemplo está na reduzida margem de mata ciliar no percurso do rio. De acordo com o Código Florestal Brasileiro (Lei 4.771/65), rios com até 10 metros de largura devem ter 30 metros de Área de Proteção Permanente (APP). Rios de 10 a 50 metros de largura – tal como o Atibaia – devem ter 50 metros de mata ciliar. 

Atualmente, a área de preservação permanente em volta do Atibaia é, em média, de 15 metros, com trechos em que a mata ciliar nem chega a essa medida, algo que ocorre nos bairros da Ponte, Parque das Nações, Caetetuba e Recreio Estoril, onde o rio torna-se quintal das casas. Com essa condição, os detritos trazidos pela chuva vão direto ao rio, aumentando o assoreamento. 

Jorge Bellix de Campos, presidente da Associação Mata Ciliar, afirma que a qualidade e quantidade da água dependem do que há de proteção nos cursos de águas. “A mata ciliar auxilia no tratamento da água e favorece a diversidade das espécies animais, por exemplo, regulando a vazão nos picos de seca ou de cheias”. 

Para solucionar o problema, a Associação Mata Ciliar, por meio do projeto Águas do Piracicaba, integra as comunidades, principalmente rurais, na gestão dos recursos hídricos da Bacia do Comitê dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (Comitê PCJ), que banham a Região Bragantina e o Circuito das Águas, que abrangem 15 cidades. 

O projeto dá suporte a essas comunidades desde o saneamento até a proteção de nascentes nas propriedades rurais. Segundo Campos, em Atibaia, são promovidas atividades de educação ambiental em algumas escolas e distribuídas fossas sépticas para o saneamento rural, bem como mudas de árvores nativas para a recuperação da mata ciliar. Outra iniciativa voltada à mata ciliar é o Programa de Proteção aos Mananciais (PPM), do Consórcio PCJ, que distribui sementes para os viveiros municipais. O programa conta com a participação de 16 viveiros e distribuiu quatro milhões de mudas. 

Atibaia ainda não faz parte do programa, mas, segundo o engenheiro agrônomo da Prefeitura de Atibaia e responsável pelo viveiro no município, Marcos Roberto Albertini, a parceria está em andamento. Ele explica que a distribuição mensal de sementes independe de estar inserido no programa do Consórcio PCJ, que contempla produtores rurais, associações, escolas e Prefeitura, com o trabalho de preservação da mata ciliar e embelezamento da cidade. 

Afluentes 

Outro causador do assoreamento são os sedimentos vindos dos córregos que desaguam no rio Atibaia. Isso ocorre porque as galerias de águas pluviais da cidade são antigas e não possuem um sistema de drenagem que faça a contenção desse material. Os trechos mais assoreados são justamente onde há o encontro com os afluentes. 

 “O córrego do Piqueri, que desagua no rio Atibaia, é formado por outros três córregos que cortam a cidade. Toda areia e sedimento que o córrego traz vai parar no rio”, afirma o diretor do departamento da Defesa Civil, Sérgio Cardinalli, que defende a realização do desassoreamento em toda a extensão do rio. 

Hoje, o desassoreamento é feito por uma empresa de mineração. Pelo menos duas dragas realizam esse trabalho nos bairros Recreio Estoril e Mato Dentro. A Defesa Civil de Atibaia também faz a retirada de lixo e de árvores mortas. Todos os dias, sete homens fazem o trabalho. “Antes disso, alguns trechos eram impossíveis de navegar”, aponta Cardinalli. 

No entender do diretor da Secretaria de Meio Ambiente de Atibaia, Michel Martins Urbano, o ideal seria criar um reservatório para receber as águas pluviais, permitindo a retenção desses detritos e liberando apenas a água. “Isso resolveria o ciclo sem fim das atuais limpezas sistemáticas, além de ajudar no controle da vazão da água no caso das enchentes”, destaca. 

Terraplanagem 

Nem mesmo o embargo da Secretaria do Meio Ambiente
impediu a terraplanagem na Av. Jerônimo de Camargo 
Silenciosamente, outra atividade contribui negativamente para a questão do assoreamento: a terraplanagem. Muitas obras possuem licença para operar, no entanto grande parte de terra vai para o rio em razão da falta de preocupação das pessoas que realizam o empreendimento. 

Segundo Michel Martins Urbano, todo empreendimento acima de 500 metros quadrados tem que apresentar um projeto de drenagem para poder realizar a obra. Porém, o mais difícil é a fiscalização para averiguar o cumprimento da lei. Exemplo disso é a terraplanagem de obra localizada na avenida Jerônimo de Camargo, via que atravessa Atibaia. A empresa responsável não respeitou as licenças e está embargada. 

O empreendedor aterrou mais do que o limite aprovado e demorou a apresentar o projeto de drenagem. Ele sofreu três multas e embargo, ainda assim, a obra não parou. O Ministério Público foi informado, mas, com a continuação da obra sem o projeto de drenagem, o material segue causando o assoreamento da jusante do rio. 

Consequências 

Entre o final de 2009 e começo de 2010, Atibaia sofreu a mais grave enchente da história. Quase 4 mil habitantes dos bairros Parque das Nações, Recreio Estoril, Caetetuba, Ponte, Jardim Kanimar, Guaxinduva e Terceiro Centenário ficaram desabrigadas ou perderam bens com os alagamentos. Essa foi a consequência mais impactante que o assoreamento trouxe às comunidades locais.   

Mário Sérgio Pinto, morador do Parque das Nações, perdeu móveis e viu vizinhos em situação mais grave. “A enchente veio de repente. A água começou a subir e pegou todo mundo desprevenido, perdi meu sofá e alguns outros móveis, mas a minha vizinha perdeu tudo”. 

Moradora do bairro Recreio Estoril há 40 anos, Finéia Ferraz, conta a tristeza de perder muito do que conquistou na vida. A enchente trincou praticamente toda sua casa em razão do enorme volume de água que invadiu a residência. “O desassoreamento do rio representa, para todos nós, mais sossego. Quando começa a época de chuva todo mundo fica preocupado, com medo. A gente tem pouco, mas esse pouco pra gente é muito. Temos medo de perder, de novo, o que levamos anos e anos pra conquistar”, desabafa. 

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Fernanda Domingues é repórter e estudante do 4º ano de Jornalismo.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Morre um morubixaba


por Spensy Pimentel, especial para o Nota de Rodapé*

Na noite de 01/12/13, o líder kaiowa Ambrosio Vilhalva, 53 anos, morreu depois de ser esfaqueado no acampamento onde residia, na Terra Indígena Guyraroka, em Caarapó (MS). Ambrosio se tornou internacionalmente conhecido como o protagonista do filme Terra Vermelha, de Marco Becchis. No filme, como o cacique Nádio, ele interpretava sua própria vida de luta pela terra. Conheci pessoalmente o Ambrósio em 2009, logo que começava minha pesquisa de campo do doutorado. Foi pouco depois do sucesso de Terra Vermelha. Quase lhe pedi o autógrafo naquela Aty Guasu – a Grande Assembleia Kaiowa e Guarani – em Amambai. Era fascinante vê-lo falar em público, porque sua presença e discurso tinha mesmo algo de cinematográfico.

Na minha investigação, tentava entender melhor as figuras da política kaiowa e guarani. E sabe aqueles morubixabas dos quais ouvimos falar nas aulas de história, comandando esquadras de canoas em guerras intestinas nesse litoral entre São Paulo e Rio que hoje fica apinhado de turistas no verão? O sul de Mato Grosso do Sul está cheio de versões atualizadas desses personagens, tão imponentes como o Cunhambebe das aventuras de Hans Staden, mesmo que, aos nossos olhos, vistam andrajos e estejam cobertos de poeira vermelha. Em guarani, eles são chamados de mburuvicha.

Ambrósio venceria Clint Eastwood num duelo, certamente. Só com o olhar. Os Kaiowa, frequentemente, têm esse olhar firme, de quem não tem nada a perder, de quem está pronto para a morte. Olhar de samurai.

Os xamãs cantam para espantar a morte que ronda as comunidades kaiowa. Ela chega sem cerimônias. Se esconde nas garrafinhas plásticas de cachaça, carinhosamente chamadas de “barrigudinhas”. Aproveita a tristeza trazida pelo choro das crianças com fome, de noite, no chão, nos barracos de lona preta, para se deitar ao lado de pais e mães, assoprando em seus ouvidos cantigas de desespero. Chega junto com os presentes e o dinheiro dos fazendeiros, sempre em busca da traição.

O pior, o mais revoltante é que logo ali, do outro lado da cerca, tudo está verde. Verde como as pilhas de dólares que o agronegócio produz, a partir da cana, da soja e do milho transgênico que produzem sobre as terras indígenas que o Estado brasileiro transferiu para colonos brancos, nos tempos do autoritarismo.

Manter a sanidade em meio à loucura de um lugar onde as pessoas não se espantam com esse contraste tão violento é para os fortes. Não são poucos os que sucumbiram: mais de 1.000 apelaram para a corda desde os anos 1980.

E Ambrósio resistiu, foi um forte. Ameaçado? Há muito, quase sempre, quase todo dia. Como tantos por aqui. Um Pixote, como arriscou um amigo? Um Paul Walker, talvez? Quem lhe enfiou a faca? Um parente? Um traidor? Quem sabe? A polícia deve apurar, é claro. Mas, quem vai ser capaz de conseguir a homologação da Terra Indígena Guyaroka? E disso, quem dará conta?

Em suas virtudes e defeitos, Terra Vermelha foi um marco na divulgação da luta guarani-kaiowa, disso não há dúvida. Logo esses índios que, aos olhos dos brasileiros em geral, são aculturados, integrados, que já nem são índios, para alguns: ficaram famosos. A pequena revolução que os Guarani-Kaiowa estão operando no imaginário brasileiro apenas começou. E muito disso se deve à figura de Ambrósio, que conseguiu, com seu olhar, transmitir ao público o que significa arriscar a vida, dia a dia, nos mais de 30 acampamentos indígenas do sul de MS que buscam, teimosamente, recuperar as terras chamadas pelos Kaiowa de tekoha – “o lugar onde se pode ser do nosso próprio jeito”.

Era só isso que Ambrósio perseguia. Um projeto próprio de vida, longe do que foi imposto pelos brancos. Longe desse pobre cotidiano nas reservas indígenas implantadas bem ao lado das cidades do sul de MS, projetadas para serem depósitos de gente barata para trabalhar nos moinhos do nosso heróico agronegócio.

Ele era só isto: um mau exemplo, aos olhos dos brancos. O negativo de tudo aquilo que os políticos, fazendeiros e pastores de Mato Grosso do Sul procuram impor aos indígenas do estado. Ele bebia. Ele brigava com parentes e se feria (e daí?). Ele venerava outros deuses, dançando e cantando. Ele “invadia terras produtivas”. Talvez, até, para fazer com que deixassem de produzir. Essa foi, talvez, sua suprema heresia, perante os fiéis da religião cristã-capitalista.

Como tantos indígenas – dos livros de história e de hoje –, Ambrósio só queria fazer as coisas do seu próprio jeito. Queria somente a liberdade para cometer seus próprios erros e acertos. Tristemente, ele morreu antes de ver sua família recuperar de fato os quase 12 mil hectares de terra vermelha que o governo brasileiro já reconheceu como a Terra Indígena Guyraroka.

A presidenta Dilma Rousseff, em vez de assinar a homologação da terra de Ambrósio, conseguiu mais um risquinho na parede de seu gabinete. Os Kaiowa e Guarani perderam mais um líder, um homem que, contra todas as razões e papeis dos brancos, foi capaz de reunir sua família e conduzi-la até seu tekoha, sua Terra sem Males. Quantos de nós temos coragem para tanto?

Os brasileiros têm mais um motivo para envergonhar-se. A maioria de nós jamais chegará aos pés da dignidade que Ambrósio alcançou em sua vida. Quem aqui encara o olhar que ele nos legou?

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Spensy Pimentel, Jornalista e antropólogo, pesquisador do Centro de Estudos Ameríndios da USP, especial para o Nota de Rodapé

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

O enigma do martelo


por Thiago Domenici*

Márcia chegou cedo na academia. Não havia dormido. Abriu a porta com o dia ainda escuro, chuvoso e frio. Deixou a chave na mesa da recepção e reparou em tudo que havia construído até ali. Tinha orgulho da empresária que se tornara.

Naquela manhã, porém, seria diferente. Márcia parecia transtornada. A palidez de seu rosto e a testa molhada de suor denunciava a aceleração do corpo. Márcia, definitivamente, não estava num dia normal.

Deixou a academia por volta das sete horas da noite do dia anterior. Atravessou a rua e foi ao prédio da mãe, que mora em frente. Um apartamento amplo e imponente que impressiona pela grande varanda. Ali, Márcia gostava de fumar um baseado sempre que podia.

Parecia feliz com a sua vida. Falou com a mãe sobre amenidades e tomou banho antes do jantar. Seria servido medalhão de filé mignon ao molho madeira com arroz japonês.

Com a mãe e o marido à mesa, Márcia mastigava sem ânimo. Estava distante. O marido quis saber. Sem resposta. O que aconteceu entre o banho e o jantar?

Quando subiu as escadas para o segundo andar ela chorou. Lembrou de cada detalhe. Ao chorar, murmurou: “como fui capaz?”. Respirou fundo antes de entrar na sala de ginástica principal, repleta de aparelhos dispostos lado a lado com uma imensa janela de pé direito alto.

Tremia. Observou segundos. Chorou ainda mais. Mordeu os lábios, caiu no chão de joelhos. Um grito abafado e dolorido. “nããããooooo!”. Perto dela, um martelo solto. “Como não acreditei?”, indagou.

Lavou o rosto antes de sair. Atravessou a rua decidida a não viver aquela culpa. E não viveu. Não deixou bilhete. Horas antes falou “Eu te amo” ao marido sem vida. “O martelo...”, no entanto, era a prova da inocência. A polícia recolheu os corpos distantes 5 km um do outro. A investigação iria começar. Seria crime passional.

E a cidade continuava igual: fria, chuvosa e escura.

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Thiago Domenici, jornalista, editor e coordenador do NR

sábado, 30 de novembro de 2013

Fácil publicar, difícil ser lido


por Fernanda Pompeu     Imagem: Régine Ferrandis

Um dos maravilhosos milagres da Nossa Senhora da Internet é possibilitar a expressão de uma multidão de escribas. Está quase todo mundo bordando palavras no Facebook, Twitter, blogs e congêneres.

A enorme vantagem de uma multidão de escribas é navegarmos na infinita leitura de pontos de vista, abordagens, opiniões. Veganos e carnívoros, devassos e evangélicos, anjos e demônios disputam olhos e atenção de leitores. Todos almejando aumentar o número de seguidores.

Mas também é fato que a redação interneteira tem seus tropeços. Às vezes, quer subir a ladeira e despenca. Outras, quer amanhecer, mas entardece. Há muita produção ruim. Talvez a facilidade espantosa de postar ideias e comentários nos leve ao afrouxamento de algumas regras básicas da comunicação.

As cinco perguntinhas O que? Quem? Como? Onde? Por quê? sumiram da maioria dos textos. Alguém nos chama para um evento, mas não diz onde é. Conta o final da história, mas omite o começo. Ou mesmo escreve o começo e fica com preguiça de desenvolver a continuação.

Ou seja, o leitor acaba órfão. Vira alguém convidado a atravessar uma avenida com os olhos vendados. Ora, quem quer isso? O leitor então foge. Vai procurar outro texto que o acolha e, principalmente, que produza sentido. Somos seres loucos por encontrar sentidos.

Não importa se a comunicação é impressa ou digital, a mensagem tem que cumprir seu ciclo de vida, tem que entregar um sentido. Ela sai da cabeça de alguém, materializa-se em frases, chega na cabeça de outro alguém. Operação simples e complexa ao mesmo tempo.

Daí quando você for escrever - de um curto parágrafo a um longo romance - lembre-se que sua matéria-prima é a língua. No nosso caso, o português-brasileiro. O idioma é a plataforma de lançamento dos foguetes levando nossas ideias, opiniões, interpretações do mundo.

Quanto mais íntimos ficarem língua e escriba, melhor será a expressão. Pois, no fundo, escrever é tirar as palavras para dançar. É levá-las para o meio do salão e fazê-las sonhar. Só assim o leitor sentirá ciúmes delas e nos seguirá.


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fernanda pompeu, webcronista do Yahoo e do Nota de Rodapé. *Texto Publicado originalmente no Mente Aberta - Yahoo.

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Foram me chamar


por Júnia Puglia    ilustração Fernando Vianna*

Eu estou aqui – o que é que há? A vida desocupada ia muito bem, obrigada. Para quem passou quase quarenta anos na ralação, viver sem agenda é uma bênção. Os dias em câmera lenta, as viagens despreocupadas, o sagrado direito de fazer nada, e também o de ir e vir, esticaaaados. Vez ou outra, invento um rango vegetariano, pra variar, e também porque tenho achado que devo dar umas folgas pras vacas, porcos, galinhas e companhia. As horas diante do computador, navegando, pensando e escrevendo, com pausas pra apreciar as árvores, a chuva e a bicharada lá fora. Leituras meio desconexas, por puro prazer, cinema no meio da tarde. Os almoços de sexta-feira com a turma do escritório, sempre estressada mas divertida. Muito engraçado e reconfortante ouvi-las falar de coisas que não me atormentam mais.

Nem cogitava voltar. De vez em quando, me dava uma ligeira nostalgia de estar ocupada, mas não muito, e das bobagens que a gente falava o dia todo e morria de rir, disto sim. De planos, planilhas e agendas alucinadas, saudade zero.

Eu vim de lá pequenininha, porque é por poucas semanas e porque, como sempre creem os coroas, não dá pra desperdiçar esse acúmulo de décadas de experiência que levo comigo. Além disto, apesar do apreço pelo ócio do último ano e meio, sinto que ainda posso contribuir, talvez equilibrando a pressão cotidiana com um olhar irônico e sereno de quem já aprendeu, com a mestra Lourdinha, que no fim tudo dá certo. Se não deu certo, é porque não chegou ao fim.

Passaram-se duas semanas, o suficiente pra confirmar que tudo mudou, mas nada mudou. A rotina do escritório continua pontilhada de urgências e emergências, incêndios a ser apagados o tempo todo. As horas passadas no trabalho ainda são insuficientes para tudo o que é preciso fazer, pois rola uma crença de que sempre se deve pedir e esperar mais do que as pessoas podem oferecer. As instituições são inclementes mesmo. Minha fonte mais frequente de desgaste é a maldita conexão de internet sem fio, instável e rebelde. Acho que ela não gosta de mim, ou está só querendo me atazanar, sei lá. Hei de vencer.

Por muito afastada da vida profissional, eu achava que poderia não saber mais como encaminhar os assuntos, como se dão os processos. Talvez acreditando que, por não ter precisado lembrar, teria esquecido. Que nada! Foi só vestir o modelito mais sério e pendurar o crachá, voltou tudo à memória, como uma caixa que se abre.

Alguém me avisou pra pisar nesse chão devagarinho. Nem precisava. Lá eu vivi grande parte dos últimos quase trinta anos. Como disse um ex-colega, que encontrei na porta um dia desses, a gente nunca sai de verdade. E ninguém conhece as dobras da instituição como nós, os veteranos, que repassamos cada uma delas em detalhes, vezes incontáveis. Por isso volto reverente e quero ficar meio invisível, quase um holograma. Juntei-me aos bambas pra me distrair. Segura a onda, preguiça! Fui ali e já volto.

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Os trechos em vermelho foram pincelados da música "Alguém me Avisou" de Dona Ivone Lara, ouça a versão do álbum Sorriso Negro, 1982.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto.

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Água: cidades querem o reconhecimento do Sistema Cantareira

Nas próximas semanas, o NR publica três matérias produzidas para o jornal laboratório do curso de jornalismo da FAAT, faculdade instalada em Atibaia, no interior de São Paulo. Semana passada, os trabalhos receberam o Prêmio Yara de Comunicação, lançado com o intuito de comemorar os 20 anos dos Comitês das Bacias Hidrográficas dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (Comitê PCJ) e que tem o objetivo de incentivar profissionais e estudantes a abordarem as questões relacionadas à qualidade e quantidade dos recursos hídricos das bacias que abastecem milhões de pessoas no Estado de São Paulo. 

As matérias que serão publicadas foram as três primeiras colocadas na categoria Trabalho Universitário. Sem exceção, todas partem de uma perspectiva local para tratar de questões globais, situações que atingem populações expressivas. 

O primeiro trabalho publicado é de Lucas Rangel, aluno do 3º ano de jornalismo, e reporta a falta de contrapartidas a pequenos municípios que produzem água de qualidade e abastecem localidades onde residem milhões de pessoas, caso da Região Metropolitana de São Paulo. 

Na semana que vem, publicaremos a reportagem de Fernanda Domingues, sobre o assoreamento do rio Atibaia que, entre outros problemas, causou fortes enchentes na cidade, com desastrosas consequências para a população, assunto tratado pelo NR em várias matérias. A última matéria a ser publicada é de Maria Ribeiro, que trata da polêmica a respeito da canalização de rios. 


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Água de qualidade não garante contrapartidas a municípios 

Responsável pelo abastecimento de 55% da Região Metropolitana de São Paulo, cidades do Sistema Cantareira se unem para buscar recursos estaduais 

por Lucas Rangel*

Rio Jaguari: o maior e mais limpo do
sistema Cantareira
(
Foto: Gustavo Douglas
A falta de contrapartidas do Governo do Estado de São Paulo e da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) para com as cidades que abrigam as bacias hidrográficas do Sistema Cantareira – responsável pelo abastecimento de 55% da Região Metropolitana de São Paulo – é um desafio a ser superado. De acordo com a Agência Unicidades, que busca, por meio de estratégias sustentáveis, melhorias para os municípios, não há nem sequer uma ação que reconheça a importância do Cantareira. 

Com liberação de 31 mil litros de água por segundo para quase 10 milhões de habitantes das zonas norte, central, parte da zona leste e oeste da capital, além de dez municípios da Região Metropolitana, entre eles Osasco e São Caetano do Sul, as quatro bacias que formam o Sistema Cantareira (Jacareí-Jaquari, Cachoeira, Atibainha e Juqueri) produzem umas das melhores águas do Brasil, segundo estudos da Sabesp. 

Apesar disso, a região segue atrás de contrapartidas para valorização dos municípios. Criada para organizar estratégias e unir as 15 cidades em favor da causa, a Agência Unicidades trabalha em busca de novos projetos sustentáveis. “Estamos buscando o desenvolvimento da região de uma forma limpa, até mesmo para poder manter a qualidade desses mananciais todos. Queremos que o Governo do Estado e a Sabesp nos deem o devido reconhecimento”, afirma Sidney Monteiro Fontes, diretor técnico da Unicidades. 

Segundo ele, são três os eixos de trabalho definidos pela agência em conjunto com as prefeituras: "Queremos fazer com que a região vire um grande pólo de desenvolvimento tecnológico, atraindo indústrias e instituições de ensino; transformá-la em um pólo de produção orgânica e fomentar o turismo”, concluiu. 

O foco da Unicidades é definir as estratégias e apresentá-las ao Governo do Estado e, consequentemente, à Sabesp, antes da definição da nova outorga, que ocorre no ano que vem. O último documento emitido pela Agência Nacional de Águas (ANA) em 2004, com vencimento em 2014, determina que 31 mil litros de água por segundo sejam retirados pela Sabesp e encaminhados à Região Metropolitana, e 5 mil litros por segundo para as bacias dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (Bacias PCJ). “Para a próxima outorga, vamos lutar para que a quantidade de água encaminhada ao PCJ chegue a pelo menos 8 mil litros por segundo”, avalia Sidney. 

Qualidade da água 

Para comprovar que a água produzida pelas bacias hidrográficas do Sistema Cantareira é uma das melhores do Brasil, a Unicidades trabalha com dados da própria Sabesp, que mostram que o custo de tratamento da água produzida na região é 50% menor do que o das represas Billins e Guarapiranga. 

O Departamento de Águas do Comitê PCJ, que trabalha com a Sabesp nesse assunto, diz que a bacia que possui a melhor água é a Jacareí-Jaguari, pois tem menor influência de produtos químicos e de esgoto. “A bacia do Jacareí-Jaguari, além de ser a maior e mais importante, devido às proporções (50 km² de inundação e produz 22 mil litros de água por segundo), é a que apresenta os melhores índices de qualidade”, afirma Regina Aparecida Ribeiro, representante do PCJ. 

Na sequência, aparecem os reservatórios Cachoeira e Atibainha, com qualidade de água considerada boa. A bacia do Juqueri é a que recebe mais resíduos químicos e esgoto, porém o Departamento de Águas e Energia Elétrica do Estado (DAEE) acredita que, nos últimos anos, a qualidade da água aumentou graças a trabalhos específicos. 

A Sabesp foi procurada pela reportagem, mas não se pronunciou sobre os casos da falta de contrapartidas e dos últimos estudos sobre a qualidade da água. 


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Lucas Rangel é estudante de jornalismo

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Sem graça


por Ricardo Sangiovanni*

Sentei já todo gaiato agora há pouco na frente do computador decidido a contar-lhes hoje a história da diarista da casa de minha sogra, que botou o marido no jeito na base do cipó quando o flagrou dando uns amassos numa sirigaita desenxabida detrás da igreja.

Mas acontece que vou ter que lhes pedir desculpas, não vai dar: caí na besteira de dar uma folheada nas internets antes de começar o relato, e li uma notícia que me levou a graça embora.

O título era “Ensino da cultura negra ainda sofre resistência nas escolas”, na BBC Brasil. Falava em geral dos problemas da implementação do ensino da cultura afro-brasileira nas escolas, mesmo tendo-se passado já dez anos da lei que determina a obrigatoriedade do dito cujo.

A matéria está bacana, honesta, normal. Tem, ademais, minha adesão ideológica: hoje mesmo comentava com o pessoal que, se alguém diz “macarronada”, logo pensamos na pequena Itália; falou “bacalhau”, acionamos o minúsculo Portugal; mas, se alguém diz “acarajé”, contentamo-nos com a ideia genérica e imprecisa de “África” – como se África fosse uma coisinha miúda, um vilarejo na beira da estrada, a primeira quebrada à direita depois que passa Feira de Santana.

Enfim: o que me roubou o bom humor foi o comentário de um cidadão que se identificou como “Diego”, “filho de negro com branco”, no pé da reportagem. Transcrevo: “Meu filho tem que aprender matemática, literatura portuguesa. Não é porque o Brasil teve um período escravagista que ele tem de estudar sobre a cultura “afro-brasileira”. Perda de tempo estudar isso, o ideal é substituir essa parte para aprender outro idioma. Pois assim estaria mais preparado para encarar a vida no resto do mundo. De preferência o idioma inglês, mais falado no mundo todo. Empreendedorismo, biologia na prática etc… Estudar cultura afro-brasileira é perda de tempo e não prepara as crianças para a vida, para esse mundo do cão.”

Diego, meu camarada: aí você pegou pesado. Talvez tenha sido só uma fala infeliz essa sua, mas arrisco dizer que gente que pensa assim como você pensou nessa fala reproduz um esquemão colonial secular, que é justamente o que mais precisamos superar (muito embora com toda consciência): de um lado, um mundo globalizado, moderno, competitivo, que requer conhecimentos funcionais que nos “preparem para encarar a vida no resto do mundo”; de outro, um mundo tradicional, ancestral, “africano”, que é até curioso e tal, mas que a rigor não serve para nada, afinal essa história de escravidão já passou faz é tempo, vamos deixar isso para lá, para depois, para nunca, no fundo do baú.

Não sei, Diego, em que parte de “ensino de cultura afro-brasileira” pessoas que pensam como você nessa fala lêem “em detrimento do ensino de tudo o mais necessário para se viver nesse mundo cão”. De contrabando nesse seu argumento, parece haver uma ideia atravessada de que aprender sobre a África significa praticamente arriscar-se a uma espécie de “reescravização”. E mais: que basta ir branqueando, quando não a pele, o jeito de ser, de pensar, de viver, no passar das gerações, para superar a tragédia que foi esse “um período escravagista” que durou mais de 300 anos nesse Brasil.

Qual nada, Diego: precisamos saber mais – quando digo mais, é ao nível corrente da conversa mundana, no nosso dia-a-dia de arraia miúda – sobre a África sim, porque precisamos entender um tiquinho melhor e respeitar mais trejeitos, costumes, heranças africanas que estão no nosso dia-a-dia, mas que ignoramos ou tomamos por simples e “genuinamente brasileiros”.

Precisamos saber da África, Diego, porque em cada pedaço dela existem povos e culturas diferentes, tantas quantas – ou provavelmente mais que – as que existem nos retalhinhos da miuditica Europa. Será que ignorá-los nos ajuda a aprender melhor o inglês?

Precisamos saber da África, meu bom Diego, porque o cabelo encaracolado do garoto entrevistado nessa matéria que você leu tem origem, tanta e igualmente humana origem quanto os cabelinhos escorridos meio alourados dos coleguinhas que provavelmente lhe puseram o apelido de “Bombril”. Não, Diego, não vamos pedir ao garoto que simplesmente não dê ouvidos aos coleguinhas bobos – porque ante a discriminação não dá para se fazer de surdo, porque dói; discriminação é uma desgraça, Diego – você sabe.

Em vez disso, que mal há em pretender que se ensine (falo ensinar à vera, não só por “3 meses, por 30 minutos a cada 4 dias apenas”, como você propõe) a toda essa molecada de tudo quanto é cor que na África existem povos que são tão povos quanto qualquer povo de pele clara desse mundo, e que muito do que somos descende diretamente de alguns deles, os quais portanto merecem tanto respeito e reverência quanto qualquer outro?

Enfim, Diego, precisamos saber da África por muitos outros mais motivos. Para encurtar conversa: você me deixou de mal humor, cara. E privou meus leitores das risadas que dariam com a história ótima do cipó do amor. Estamos todos putos contigo, Diego. Abre o olho.

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Ricardo Sangiovanni, jornalista, coordena o blog O Purgatório e mantém no NR a coluna Mistério do Planeta. Escreve de Salvador.
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