O NR perguntou em enquete aos leitores sobre a Copa do Mundo de 2014 a se realizar no Brasil. Ao término do período de votação, ontem, temos o seguinte quadro de um total de 340 votos únicos.
60% acredita que a copa “vai sair, mas com muita obra superfaturada e com coisas pela metade”. A maioria, portanto, está pessimista com relação a condução dos trabalhos pelo governo federal e estados, mas acredita na realização do evento.
Mais otimistas, 25% responderam que “vai dar tudo certo, os estádios, aeroportos vão ficar prontos e vai correr tudo bem”. 10% dos votos são mais pessimistas e assinalaram que a copa “será um desastre”.
E os restantes 4 % são pessimistas e incrédulos e disseram que “não vai ter copa no Brasil”. E você que não participou da enquete, o que acha? Deixe nos comentários.
sábado, 31 de março de 2012
sexta-feira, 30 de março de 2012
A greve geral e o pessimismo na Espanha
Ontem, durante a paralização geral (Crédito: Calabar/EFE) |
Mário Benedetti costumava dizer que um pessimista é um otimista bem informado. Se é mesmo assim, todos os meus amigos espanhóis estão muito bem informados do que está acontecendo no país: não há espaço para a esperança. Os vizinhos franceses também parecem descrentes de qualquer futuro ensolarado. O diário Le Monde, em recente editorial, chamou a Espanha de “o grande problema da Europa”.
Ontem, dia 29, o país parou. Ou deveria ter parado. Os principais sindicatos espanhóis convocaram uma greve contra a Reforma Trabalhista aprovada pelo novo governo do Partido Popular. Eleito no final do ano passado e com maioria no Congresso para não precisar pactuar com os outros partidos, o conservador Mariano Rajoy rezou a cartilha da União Europeia e adotou, antes dos cem dias de governo – a famosa lua de mel entre eleito e eleitores –, uma mudança na legislação trabalhista que promove uma mudança brutal. Para uns, facilita a contração e flexibiliza os contratos de trabalho; para outros, facilita a demissão e precariza as relações de trabalho.
Os pontos mais polêmicos são que um trabalhador pode ser contratado e demitido dentro de 364 dias sem receber nada; e um empresário pode diminuir salários de seus empregados alegando “dificuldades financeiras”.
Contra essas medidas, milhares de espanhóis tomaram as ruas para protestar. O balanço da greve, como se pode imaginar, depende de quem o faz. Para o governo, a paralisação foi “moderada” e só reforçou a ideia de que a medida é dura, mas necessária – cerca de 22% dos espanhóis em idade de trabalho estão desempregados.
Os sindicatos dizem que a adesão (principalmente do setor de transporte e indústria) foi massiva e afirmam que foi apenas o primeiro passo: se o governo não sentar para negociar haverá mais protesto e mais greve.
As informações são de que em Madri e em Barcelona o apoio foi grande. Na capital catalã houve algo de violência. Coisa pouca se pensamos na situação do país e na quantidade de gente que se manifestou.
Aqui na pequena Salamanca, cidade de estudantes e aposentados, a rotina foi pouco alterada. No final do dia os sindicatos lideraram uma marcha. A quantidade de gente era considerável, mas as diferenças se notavam de longe. Cada sindicato em um canto da praça. Enquanto a Direita conduz o país com o discurso de que é preciso enxugar – o que significa na prática eliminar conquistas sociais – a Esquerda, em frangalhos, se estapeia pelo único pedaço de pão que tem nas mãos.
Comentei com uma amiga argentina que nunca vi uma manifestação tão pacífica e tranquila. Na verdade o que eu queria dizer era monótona. No Brasil, eu disse a ela, não se faz um ato sem música, sem um pouco de bom humor. Ela respondeu que na Argentina talvez não houvesse alegria, mas sim aplausos, cantos e panelaço.
Fato é que a marcha que acompanhei pareceria um velório. As pessoas quase cochichavam enquanto caminhavam. Vez ou outra alguém puxava um grito, que era repetido duas vezes por meia dúzia de pessoas e novamente o silêncio imperava. A impressão que tive foi de que estavam ali por solidariedade ou dever, mas não acreditavam que o gesto poderia fazer alguma diferença.
Gostaria de acreditar que por aqui seja diferente e os nascimentos se pareçam aos velórios. E que essa crise servirá para que um novo país surja. E que Benedetti pode ter se equivocado.
Ricardo Viel, jornalista, colunista do NR, especial de Salamanca, Espanha.
Incerteza
Um senhor de setenta e poucos anos, pequeno e magro. Tímido, naturalmente amável, sorriso fácil. Dirigente patronal e anfitrião de um evento de que participei no Rio, há uns cinco anos.
Era o lançamento de uma pesquisa sobre diversidade nas empresas. O evento em si era corriqueiro, nada especial. Eu participava da mesa principal, representando minha instituição.
O dono da casa foi convidado a falar. Começou contando-nos sobre a infância dura na Polônia, filho de operários judeus, e como foi desembarcar no Rio na década de quarenta.
Era como se estivéssemos chegando a outro planeta, disse. Como éramos pobres e judeus, fomos morar no centro da cidade, e os meus amigos eram os filhos de imigrantes e os negros.
A vida lhe ofereceu um prato cheio da tal diversidade, que não lhe passou nada despercebida. Pelo contrário, abriu-lhe os olhos para muitas coisas que depois lhe seriam importantes, quando cresceu e prosperou como industrial.
Com sua fala mansa e muito articulada, foi me revelando ali uma pessoa “habitada”. Um respeitável senhor idoso, que, ao longo da vida, juntou a vivência com uma reflexão primorosa sobre o que viveu e as pessoas que conheceu. Falou da sua convivência com os outros empresários e dirigentes, uma gente que acha que sabe tudo, sabe e tem certeza. Fui me deixando levar, maravilhada.
Foram quinze minutos, no máximo, que ele encerrou assim: “a essa altura da vida, o que quero mesmo é ter cada vez menos certezas”. Tive vontade de levá-lo pra casa (pra fazer par com a lambreta amarela que ainda terei – e que agora tem o nome pedante de “scooter”).
Como já disse, isso foi há alguns anos, mas de vez em quando me volta à lembrança, como nessa madrugada insone, e sempre me traz uma sensação boa de que tem gente que descobre coisas incríveis. Por exemplo, que quando precisamos ter certeza, geralmente é pra nos distrair e nos enganar.
Júnia Puglia, cronista, escreve todas às sextas a coluna De um tudo no NR.
Era o lançamento de uma pesquisa sobre diversidade nas empresas. O evento em si era corriqueiro, nada especial. Eu participava da mesa principal, representando minha instituição.
O dono da casa foi convidado a falar. Começou contando-nos sobre a infância dura na Polônia, filho de operários judeus, e como foi desembarcar no Rio na década de quarenta.
Era como se estivéssemos chegando a outro planeta, disse. Como éramos pobres e judeus, fomos morar no centro da cidade, e os meus amigos eram os filhos de imigrantes e os negros.
A vida lhe ofereceu um prato cheio da tal diversidade, que não lhe passou nada despercebida. Pelo contrário, abriu-lhe os olhos para muitas coisas que depois lhe seriam importantes, quando cresceu e prosperou como industrial.
Com sua fala mansa e muito articulada, foi me revelando ali uma pessoa “habitada”. Um respeitável senhor idoso, que, ao longo da vida, juntou a vivência com uma reflexão primorosa sobre o que viveu e as pessoas que conheceu. Falou da sua convivência com os outros empresários e dirigentes, uma gente que acha que sabe tudo, sabe e tem certeza. Fui me deixando levar, maravilhada.
Foram quinze minutos, no máximo, que ele encerrou assim: “a essa altura da vida, o que quero mesmo é ter cada vez menos certezas”. Tive vontade de levá-lo pra casa (pra fazer par com a lambreta amarela que ainda terei – e que agora tem o nome pedante de “scooter”).
Como já disse, isso foi há alguns anos, mas de vez em quando me volta à lembrança, como nessa madrugada insone, e sempre me traz uma sensação boa de que tem gente que descobre coisas incríveis. Por exemplo, que quando precisamos ter certeza, geralmente é pra nos distrair e nos enganar.
Júnia Puglia, cronista, escreve todas às sextas a coluna De um tudo no NR.
quinta-feira, 29 de março de 2012
aqui traveis
O imenso Jorge Luís Borges (1899-1996), ao ouvir um estrangeiro manifestar o desejo de conhecer Buenos Aires, inquiria: "Para quê? Melhor conhecer o Rio de Janeiro". Tenho para mim que Borges agia assim por ciúmes. Ele amava tanto sua cidade que a queria a salvo de admirações e apetites alheios.
Outro imenso, Fernando Pessoa (1888-1935), escreveu versos que traduzem perfeitamente o louco amor ao lugar de origem: "O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia / Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia /Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia".
Há quem dirija a dedicação amorosa a um bairro. Escarafuncha o ano de nascimento, a primeira ocupação, a ascensão imobiliária, a derrocada das tradições, as anedotas prosaicas que colorem as personagens e esquinas. O rei do rádio, Francisco Alves (1898-1952) imortalizou a Lapa carioca: "É o ponto maior do mapa / Do Distrito Federal / Salve a Lapa!".
Paulista de Valinhos, Adoniran Barbosa (1910-1982) botou o Jaçanã, bairro da zona norte de São Paulo, no mapa do Brasil: "Moro em Jaçanã /Se eu perder esse trem / Que sai agora às onze horas / Só amanhã de manhã". Genial, ele foi mais longe ao poetizar um refúgio agonizante: "Era uma casa véia / Um palacete assombradado / Foi aqui seu moço / Que eu, Mato Grosso e o Joca / Construímo nossa maloca".
Mas voltando às cidades. Já ouvi de gente estudada a explicação de que o amor dedicado ao lugar de nascimento teria a ver com as indeléveis sensações, cheiros, impressões tatuadas no período da infância. Pode ser. Crianças são observadoras absolutas. São capazes de acompanhar um sabiá cercando uma minhoca, bicando-a, partindo-a ao meio, engolindo-a e alçando despreocupado voo.
É claro que não posso e não devo generalizar. Certamente há aqueles que odeiam a cidade natal. Quem a deixe para propositalmente não voltar. Aliás, tem quem faça isso com os países. Pegam um avião para nunca mais. Verdade que, de pronto, não lembro de nenhum poema ou canção que cante o desamor ao lugar da infância. Se você lembrar, por favor, ponha nos comentários.
Eu tenho três cidades na minha vida. Uma delas é o Rio de Janeiro, onde nasci e morei até os quinze anos. Gravei a fogo na memória as praias e as montanhas do Rio. E, principalmente, o jeito carioca de ser e se comportar. Até hoje, décadas depois, me emociono quando o avião aterrissa no Santos Dumont e o odor da maresia revisita meu nariz.
O outro amor, a cidade com quem me casei, é Sampa. Impossível e inútil descrevê-la em um parágrafo. Parafraseando alguém cujo nome esqueci: "São Paulo não é para iniciantes". Ela é um misto de máquina e humanidade. Tudo mega, tudo junto, tudo ao mesmo instante. Sempre que saio, seja para o mar encantador ou para um sítio acolhedor, já vou com o GPS da volta.
Na terceira cidade do meu afeto, eu nunca morei e provavelmente não irei morar. Na realidade, estive apenas quatro ou cinco vezes. Mas a experiência foi tão intensa que passou a acompanhar momentos importantes da minha história. Essa cidade é Bogotá, suspensa a 2460 metros acima do mar, onde fiz amigos do coração.
Por que Santa Fé de Bogotá? Porque me inspira. Me comovem o colorido de suas casas, o charme das cafeterias, a deliciosa arepa e ovos pericos dos desayunos. Além disso, o povo colombiano me agrada. Ele é uma mescla de baiano com mineiro, resultando num tipo alegre e desconfiado ao mesmo tempo. É isto: alegria e desconfiança, uma combinação poderosa para transitar pela vida.
fernanda pompeu, escritora e redatora freelancer, colunista do Nota de Rodapé, escreve às quintas a coluna Observatório da Esquina. Ilustração de Carvall, especial para o texto.
Outro imenso, Fernando Pessoa (1888-1935), escreveu versos que traduzem perfeitamente o louco amor ao lugar de origem: "O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia / Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia /Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia".
Há quem dirija a dedicação amorosa a um bairro. Escarafuncha o ano de nascimento, a primeira ocupação, a ascensão imobiliária, a derrocada das tradições, as anedotas prosaicas que colorem as personagens e esquinas. O rei do rádio, Francisco Alves (1898-1952) imortalizou a Lapa carioca: "É o ponto maior do mapa / Do Distrito Federal / Salve a Lapa!".
Paulista de Valinhos, Adoniran Barbosa (1910-1982) botou o Jaçanã, bairro da zona norte de São Paulo, no mapa do Brasil: "Moro em Jaçanã /Se eu perder esse trem / Que sai agora às onze horas / Só amanhã de manhã". Genial, ele foi mais longe ao poetizar um refúgio agonizante: "Era uma casa véia / Um palacete assombradado / Foi aqui seu moço / Que eu, Mato Grosso e o Joca / Construímo nossa maloca".
Mas voltando às cidades. Já ouvi de gente estudada a explicação de que o amor dedicado ao lugar de nascimento teria a ver com as indeléveis sensações, cheiros, impressões tatuadas no período da infância. Pode ser. Crianças são observadoras absolutas. São capazes de acompanhar um sabiá cercando uma minhoca, bicando-a, partindo-a ao meio, engolindo-a e alçando despreocupado voo.
É claro que não posso e não devo generalizar. Certamente há aqueles que odeiam a cidade natal. Quem a deixe para propositalmente não voltar. Aliás, tem quem faça isso com os países. Pegam um avião para nunca mais. Verdade que, de pronto, não lembro de nenhum poema ou canção que cante o desamor ao lugar da infância. Se você lembrar, por favor, ponha nos comentários.
Eu tenho três cidades na minha vida. Uma delas é o Rio de Janeiro, onde nasci e morei até os quinze anos. Gravei a fogo na memória as praias e as montanhas do Rio. E, principalmente, o jeito carioca de ser e se comportar. Até hoje, décadas depois, me emociono quando o avião aterrissa no Santos Dumont e o odor da maresia revisita meu nariz.
O outro amor, a cidade com quem me casei, é Sampa. Impossível e inútil descrevê-la em um parágrafo. Parafraseando alguém cujo nome esqueci: "São Paulo não é para iniciantes". Ela é um misto de máquina e humanidade. Tudo mega, tudo junto, tudo ao mesmo instante. Sempre que saio, seja para o mar encantador ou para um sítio acolhedor, já vou com o GPS da volta.
Na terceira cidade do meu afeto, eu nunca morei e provavelmente não irei morar. Na realidade, estive apenas quatro ou cinco vezes. Mas a experiência foi tão intensa que passou a acompanhar momentos importantes da minha história. Essa cidade é Bogotá, suspensa a 2460 metros acima do mar, onde fiz amigos do coração.
Por que Santa Fé de Bogotá? Porque me inspira. Me comovem o colorido de suas casas, o charme das cafeterias, a deliciosa arepa e ovos pericos dos desayunos. Além disso, o povo colombiano me agrada. Ele é uma mescla de baiano com mineiro, resultando num tipo alegre e desconfiado ao mesmo tempo. É isto: alegria e desconfiança, uma combinação poderosa para transitar pela vida.
fernanda pompeu, escritora e redatora freelancer, colunista do Nota de Rodapé, escreve às quintas a coluna Observatório da Esquina. Ilustração de Carvall, especial para o texto.
quarta-feira, 28 de março de 2012
"esculachos" necessários
Manifestantes picharam calçada em Porto Alegre |
O movimento se declara civil, apartidário e pretende mobilizar a juventude na busca de um projeto político popular para o Brasil.
Eis um respiro diante da condução lerda da nomeação efetiva e do início dos trabalhos da Comissão da Verdade pelo Governo Federal. Desde novembro passado - quando a presidenta sancionou a lei que cria a Comissão - o governo não nomeou seus representantes para o início dos trabalhos.
Os atos que ocorreram em frente às casas ou aos locais de trabalho de civis e militares, com pichações, distribuição de pafletos, carros de som, faixas e tambores podem, quem sabe, pressionar nesse sentido.
Aos que não estão a par dos acontecimentos, convido a leitura do texto de Tatiana Merlino no site da revista Caros Amigos.
terça-feira, 27 de março de 2012
Um guia para o turismo quilombola
Um guia de turismo com foco na questão cultural e ambiental é a proposta da Fundação BB e Instituto Universitas que lançam três publicações (mais informações) que retratam o universo quilombola dos Kalunga e o turismo de Cavalcante, Goiás.
O NR divulga esse trabalho, um em especial, para badalar com a melhor das intenções nossa colunista, Ana Mendes, que participou com textos e fotos da publicação Cavalcante – Chapadões, águas e cultura cerratense – Guia de essências para o turismo sustentável, 70 páginas, com descrição de opções para ecoturismo e textos que revelam o sentido de ser Kalunga.
Para se ter ideia, o Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga tem, segundo o material de divulgação, "deslumbrantes 237 mil hectares de Cerrado selvagem, onde vivem cerca de 3 mil famílias. Vivem em centenas de pequenos povoados, em relação estreita com a natureza – produzindo alimentos orgânicos, plantando e até construindo casas de palha, de acordo com os comandos da lua. São guardiões da cultura e de valioso germoplasma, herança dos ancestrais, que chegaram em Cavalcante há 300 anos, em terras goianas, que foram trilhas da exploração do ouro."
O material já pode ser baixado de graça e o lançamento oficial é na quinta-feira desta semana, às 19h, no Centro de Excelência em Turismo da Universidade de Brasília, endereço: L3 Norte, gleba A, campus UnB.
Algumas imagens do guia por Ana Mendes
O NR divulga esse trabalho, um em especial, para badalar com a melhor das intenções nossa colunista, Ana Mendes, que participou com textos e fotos da publicação Cavalcante – Chapadões, águas e cultura cerratense – Guia de essências para o turismo sustentável, 70 páginas, com descrição de opções para ecoturismo e textos que revelam o sentido de ser Kalunga.
Para se ter ideia, o Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga tem, segundo o material de divulgação, "deslumbrantes 237 mil hectares de Cerrado selvagem, onde vivem cerca de 3 mil famílias. Vivem em centenas de pequenos povoados, em relação estreita com a natureza – produzindo alimentos orgânicos, plantando e até construindo casas de palha, de acordo com os comandos da lua. São guardiões da cultura e de valioso germoplasma, herança dos ancestrais, que chegaram em Cavalcante há 300 anos, em terras goianas, que foram trilhas da exploração do ouro."
O material já pode ser baixado de graça e o lançamento oficial é na quinta-feira desta semana, às 19h, no Centro de Excelência em Turismo da Universidade de Brasília, endereço: L3 Norte, gleba A, campus UnB.
Algumas imagens do guia por Ana Mendes
segunda-feira, 26 de março de 2012
Ciúmes
Travei dia desses breve, porém acalorado, embate – que por sorte se restringiu ao uso de palavras e gestos – com moça bela, porém, desconfio eu, de coração empedrado (ou mentirosa descarada). Dizia ela que nunca, jamais, havia sentido na vida ciúme; que não sabia o que era isso e não podia entender quando alguém discorria sobre o tema.
A celeuma se deu porque ela dizia isso olhando, com seu par de jabuticabas, nos meus olhos, rosto empedernido, desafiadora, quase irresponsável. Fazia seu discurso justo para mim! Eu, que tenho ciúmes de tudo.
E quando digo tudo é porque meus ciúmes vão muito além desse sentimento bobo e doentio que um namorado sente pela namorada e vice-versa. Esse, de tão banal e corriqueiro, nunca alimentei.
Meu ciúme é verdadeiro, profundo e justificado; o sinto por meus amigos, porque demorei muito para conquista-los e para me deixar ser conquistado por eles. E por isso não os apresento a qualquer pessoa e em qualquer situação.
E quando apresento é porque sei que se entenderão, que criarão rápido e sincero apreço mútuo e que, com sorte, se tornarão amigos – o que provavelmente me gerará algum ciúme bom (sim, ele existe).
E meus ciúmes vão bem mais longe.
Tenho ciúmes de música, de livro, de poesia, de filme, de lugar... Quando descubro que gente besta descobriu e gostou do que descobri e gostei primeiro fico encolerizado, mesmo. Eram meus, faziam parte da minha vida e os compartia parcimoniosamente com os poucos escolhidos, os que fizeram por merecer; e de repente chega um(a) desqualificado(a) e toma meu tesouro?
Expliquei-lhe meus motivos, expus minhas justas justificativas, mas ela, couraça em forma de gente (ou mentirosa contumaz), seguia com sua mirada infame e balançava a cabeça negativamente, fazendo voar seus cabelos castanhos levemente encaracolados e me desconcentrando da tarefa de tentar convence-la.
Pois nada, azar o dela, que enquanto não ganhar minha confiança continuará sem conhecer as músicas, os filmes, os poemas e os amigos que eu mais quero, que esses eu levo bem guardadinhos e não os reparto com qualquer(a).
Mais fácil que a presenteie com meu coração – que esse vira e mexe me roubam ou eu acabo por perdê-lo pelo caminho e tenho que construir outro – que com meus ciúmes. E tenho dito!
Ricardo Viel, jornalista, colunista do Purgatório e do NR, escreve às segundas, direto de Salamanca, Espanha.
A celeuma se deu porque ela dizia isso olhando, com seu par de jabuticabas, nos meus olhos, rosto empedernido, desafiadora, quase irresponsável. Fazia seu discurso justo para mim! Eu, que tenho ciúmes de tudo.
E quando digo tudo é porque meus ciúmes vão muito além desse sentimento bobo e doentio que um namorado sente pela namorada e vice-versa. Esse, de tão banal e corriqueiro, nunca alimentei.
Meu ciúme é verdadeiro, profundo e justificado; o sinto por meus amigos, porque demorei muito para conquista-los e para me deixar ser conquistado por eles. E por isso não os apresento a qualquer pessoa e em qualquer situação.
E quando apresento é porque sei que se entenderão, que criarão rápido e sincero apreço mútuo e que, com sorte, se tornarão amigos – o que provavelmente me gerará algum ciúme bom (sim, ele existe).
E meus ciúmes vão bem mais longe.
Tenho ciúmes de música, de livro, de poesia, de filme, de lugar... Quando descubro que gente besta descobriu e gostou do que descobri e gostei primeiro fico encolerizado, mesmo. Eram meus, faziam parte da minha vida e os compartia parcimoniosamente com os poucos escolhidos, os que fizeram por merecer; e de repente chega um(a) desqualificado(a) e toma meu tesouro?
Expliquei-lhe meus motivos, expus minhas justas justificativas, mas ela, couraça em forma de gente (ou mentirosa contumaz), seguia com sua mirada infame e balançava a cabeça negativamente, fazendo voar seus cabelos castanhos levemente encaracolados e me desconcentrando da tarefa de tentar convence-la.
Pois nada, azar o dela, que enquanto não ganhar minha confiança continuará sem conhecer as músicas, os filmes, os poemas e os amigos que eu mais quero, que esses eu levo bem guardadinhos e não os reparto com qualquer(a).
Mais fácil que a presenteie com meu coração – que esse vira e mexe me roubam ou eu acabo por perdê-lo pelo caminho e tenho que construir outro – que com meus ciúmes. E tenho dito!
Ricardo Viel, jornalista, colunista do Purgatório e do NR, escreve às segundas, direto de Salamanca, Espanha.
domingo, 25 de março de 2012
Pinheirinho. Depois.
Na última semana completaram-se três meses da invasão e reintegração de posse da área conhecida como Pinheirinho em São José dos Campos. Ontem e hoje você tem uma uma retrospectiva do ANTES e DEPOIS em fotos e textos do fotógrafo Victor Moriyama.
Bombas de gás lacrimogênio e de efeito moral, armas de fogo e granadas não são as melhores lembranças para se guardar na memória de uma criança. Mas foi assim a reintegração de posse do assentamento Pinheirinho, em São José dos Campos, interior de São Paulo que aconteceu sorrateiramente na manhã do Domingo de 21 de Janeiro de 2012.
Tida pelo alto escalão da Polícia Militar do Estado como uma operação "perfeita", seus desdobramentos sociais se iniciaram a partir da saída imediata das aproximadas 5.000 famílias que viviam no local.
A manhã que sucede o dia D numa guerra nunca é bela, e naquele domingo não poderia ser diferente. O cinza do céu parecia descer sobre a terra e o sol definitivamente não apareceria. Grupos de ex-moradores do assentamento ainda arremessavam pedras nos policiais militares que reagiam com balas de borracha.
Se um grupo de mais de três jovens se reunissem nas intermediações do Bairro Campo dos Alemães, região colada ao Pinheirinho e tida pelo poder público como o reduto do tráfico de drogas na cidade, era motivo de revista por parte da PM e esculacho na frente da população.
No decorrer do dia, inúmeros carros e prédios públicos foram incendiados por rebeldes. Grupos de ex-moradores do assentamento se espalhavam pelas sombras das árvores e boa parte rumava para a Igreja do Bairro que abrigaria nos próximos dias boa parte da população do assentamento.
A prefeitura por sua vez disponibilizou de imediato dois conjuntos poliesportivos para servir de moradia provisória as famílias sem-teto. No início da semana que sucedeu a descoupação do assentamento, o número de famílias habitando estes abrigos era elevado.
Colchões se amontoavam em quadras de basquete, filas de espera de horas para o banho, crianças berrando em busca de consolo, e um cheiro indescritível de seres humanos amontoados imperavam as sensações naquele local.
O calor já elevava a temperatura em quase 40 graus e as famílias saiam para fora das quadras em busca de uma sombra para descansar. Cachorros, galinhas, patos e gatos também integravam a bagagem daquelas pessoas e se acomodavam da melhor forma no novo lar.
A noite foi longa. Mães discutiam e reclamavam dos gritos estridentes dos bebês e a impossibilidade de se ter uma noite tranquila de sono. O silêncio necessário para o repouso daqueles que vão acordar cedo para trabalhar parecia ser um luxo muito distante daquelas pessoas.
As noites de verão tem o clima agradável e aquela não era diferente, fazia as crianças brincarem até a exaustão. Pergunto para uma delas, que bebe água desesperadamente no bebedouro público, o que estava entendendo daquela situação e se sentia saudades do Pinherinho: “Aqui está super legal, parece acampamento, tem um monte de amigo e a gente brinca o dia todo.”
Para uma criança de 9 anos, como a Jeniffer, aquela situação de caos social parecia mais uma colônia de férias. São 05:45 am, e a noite havia sido longa e exaustiva. Os roncos se misturavam ao choro das crianças e a conversa com uma moça que trabalhava no local havia sido bastante produtiva. Observo que apenas 7 ou 8 pessoas, dentre aproximadamente 300 instaladas no local, se levantam para ir trabalhar e me pergunto o que as outras farão ao longo do dia.
Não tardo a descobrir que a maior parte passaria o dia estirado nos colchões confabulando sobre o episódio passado de desocupação sem outras preocupações. O sol brilha forte e percebo que chega e é hora de ir dormir.
Antes de partir uma cena me chama a atenção em frente a uma montanha de roupas vindas de doações: “Essas roupas estão bem piores que as minhas” diz uma moradora e indago para ela sobre trabalho: “Eu não vou me sujeitar e me humilhar para este sistema”, me calo e lembro da miséria que vi no Haiti. Para mim é suficiente, o pernoite no alojamento havia rendido bons frutos.
Victor Moriyama, 26 anos, é repórter fotográfico do Jornal O Vale, em São José dos Campos, cidade que reside atualmente. Mantém a coluna mensal Fotógrafo-escreve.
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sábado, 24 de março de 2012
Pinheirinho. Antes.
Na última semana completaram-se três meses da invasão e reintegração de posse da área conhecida como Pinheirinho em São José dos Campos. Hoje e amanhã você terá uma uma retrospectiva do ANTES e DEPOIS em fotos e textos do fotógrafo Victor Moriyama.
A vivência no assentamento do Pinheirinho foi extremamente intensa para a atual configuração das reportagens feitas nos diáiros. Na eminência da reintegração de posse do local, pude acompanhar, a partir de uma verdadeira imersão cultural neste já conhecido ambiente, a expectativa dos moradores frente a situação. Foram cerca de 5 noites mal dormidas na exinta secretaria geral do assentamento, localizada na frente do portão central.
Anteriormente havia fotografado a festa de anviersário do assentamento regada a música nordestina, cachaça e enormes brinquedos infláveis para a criançada. Era um sábado de sol, de alegria, e comemoração. Nem o morador mais pessimista imaginaria que aquele seria o último evento oficial do assentamento.
As noites que antecederam a desocupação do Pinheirinho foram tensas. O clima de apreensão tomava conta das feições dos guardiões da portaria central, moradores encapuzados e armados com pedaços de pau com pregos na ponta faziam a vigilância em período integral de toda a área. Motos, bicicletas e fogueteiros circulavam para cima e para baixo fazendo um zun zun zun danado. A reintegração de posse poderia acontecer a qualquer momento, e em caso positivo, todos os moradores seriam acordados rapidamente com o barulho dos morteiros.
Entre conversas superficiais, boas risadas e tragos de cachaça, pude perceber a diversidade cultural como fator predominante naquela distinta população de um dos maiores assentamentos do país. Nordestinos, paulistanos, piauienses e moradores de diversas regiões do país haviam chegado anos atrás na cidade em busca de um futuro melhor.
Muitos temiam a violência policial, outros aceitavam a contra gosto a ordem judicial. “Essa mulher está com a cara do capeta, eu vi na tv”, esbrevajava uma senhora a respeito da juíza Márcia Loureiro, da Sexta Vara Cível em São José dos Campos, responsável pela ordem de desapropriação do terreno. Alguns tímidos carros deixavam o assentamento com sofás e camas amarrados ao teto.
Foram dias inteiros se arrastando com a provável ocupação policial do terreno. “Estou sem dormir a seis dias. Pelo Pinheirinho eu faço tudo.”, excamou Juarez com uma olheira tão profunda que beira o indescritível.
Ouvi de outra senhora, no amanhecer do dia, uma frase que me marcou demais: “eu demorei anos para construir minha casa de bloco meu filho. Eu não tenho para onde ir”. Dona Raimunda tem 72 anos e vivia no Pinheirinho desde o início do assentamento. O sentimento de resistência era comum aos moradores de todas as faixas etárias. Nestas noites que passei em companhia dos ex-moradores não tive nenhuma desavença com ninguém embora os “caras do movimento” (tráfico) me xingassem pelo canto do olho.
A madrugava entrava quente naquela noite típica do verão brasileiro. A música “povo da periferia” do aclamado rapper brasileiro Naldinho ecoava por todos os becos do assentamento. A frase inicial da música parecia embalar aquele sentimento de resistência dos moradores “O tempo da periferia há muito tempo ta abandonado. Enquanto o povo da classe alta ta enchendo o rabo de dinheiro o povo daqui ta no veneno, sem emprego, na fome”.
O movimento na secretaria do assentamento era contínuo. Pães, refrigerantes, formas de bolo e dúzias de garrafas térmicas com café preto e doce entravam e saiam a todo instante. A esta altura as barricadas construídas com pedaços de madeira e pneus já bloqueavam as principais ruas no interior do assentamento e seu acesso começava a ser restringindo para a imprensa a partir de ordem dada pelo diretor de comunicação do Pinheirinho.
O Clima esquentava. A menos de dois dias do Dia D a guerra estava anunciada com o primeiro ônibus incendiado e sua foto publicada na capa dos principais veículos de imprensa do país. O exército do Pinheirinho fortalecia a tensão ao exibir seu poderio medieval para as câmeras da imprensa.
Victor Moriyama, 26 anos, é repórter fotográfico do Jornal O Vale, em São José dos Campos, cidade que reside atualmente. Mantém a coluna mensal Fotógrafo-escreve.
sexta-feira, 23 de março de 2012
Ruth e Zilda
As irmãs Ruth e Zilda moravam bem perto da minha casa. Ruth era uma linda mocinha de uns quinze anos, alta, de olhos verdes e pele cor de canela. Esbanjava alegria e energia, um furacão de voz grave e gargalhadas demolidoras. A irmã devia andar pelos dez anos, era bem negra, com trancinhas e uma luz intensa nos olhos.
A mãe delas começou a frequentar a nossa igreja, e Ruth algumas vezes ficava cuidando de nós, filhos do pastor, enquanto meus pais iam a algum culto durante a semana. Era muito bom ter uma babá linda e divertida, que ignorava todas as instruções da minha mãe e inventava as brincadeiras mais loucas. De vez em quando, fazia uns fantásticos mexidos de sobras de comida quando já estávamos dormindo, e nos acordava pra comer com ela.
Além de serem alegres e carinhosas com a gente, chamava-me muito a atenção que elas não tinham a expressão derrotada ou ressentida de todos os outros negros da minha infância. Eram altivas e tinham uma evidente alegria de viver. E isto era insuportável pra quase todo mundo. Lembro-me do incômodo que causavam entre os adultos, por serem “atrevidas”, e “não entenderem o seu lugar”. Além disso, a beleza e sensualidade de Ruth eram ameaças constantes às famílias.
Durante um bom tempo, minha grande transgressão de criança consistiu em fingir que ia brincar na rua, em frente de casa, que era a distância permitida, e fugir para a casa delas, onde rolava pipoca com limonada e muitas risadas. Fui pega no pulo, e terminantemente proibida de voltar lá. Tudo bem que Ruth fosse nossa babá eventual, mas eu “fugir” pra ir brincar com elas por iniciativa própria era um absurdo.
Pouco tempo depois, elas se mudaram da nossa cidade. Da Zilda, nunca mais ouvimos falar. Quanto à Ruth, soubemos, muitos anos depois, que estava casada com um alemão e morava em São Paulo. A notícia veio acompanhada de comentários do tipo “quem diria que aquela negrinha ia agarrar um alemão, e ainda se casar com ele”.
Contavam-se detalhes sobre os terríveis conflitos familiares – que ninguém ali havia presenciado – causados pela escolha do rapaz, que, ao que consta, apaixonou-se por ela e enfrentou a ira da família com muita coragem e determinação.
Se a vida não é fácil pra ninguém, como eu acredito, ela sempre proporcionou doses multiplicadas de dificuldades para os negros, dificuldades tanto maiores quanto mais “atrevidos” e menos conformados eles forem com seu destino “automático” de “seres humanos de segunda classe”. Isso está mudando, sim, mas ainda falta muito.
Nunca soube como Ruth se sentiu ao enfrentar a situação do casamento, mas tenho certeza de que, por mais difícil que tenha sido, sua bendita altivez garantiu-lhe um lugar num mundo que lhe era totalmente adverso. Deste momento tão distante, mando-lhe um beijo saudoso e cúmplice.
Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo no NR.
A mãe delas começou a frequentar a nossa igreja, e Ruth algumas vezes ficava cuidando de nós, filhos do pastor, enquanto meus pais iam a algum culto durante a semana. Era muito bom ter uma babá linda e divertida, que ignorava todas as instruções da minha mãe e inventava as brincadeiras mais loucas. De vez em quando, fazia uns fantásticos mexidos de sobras de comida quando já estávamos dormindo, e nos acordava pra comer com ela.
Além de serem alegres e carinhosas com a gente, chamava-me muito a atenção que elas não tinham a expressão derrotada ou ressentida de todos os outros negros da minha infância. Eram altivas e tinham uma evidente alegria de viver. E isto era insuportável pra quase todo mundo. Lembro-me do incômodo que causavam entre os adultos, por serem “atrevidas”, e “não entenderem o seu lugar”. Além disso, a beleza e sensualidade de Ruth eram ameaças constantes às famílias.
Durante um bom tempo, minha grande transgressão de criança consistiu em fingir que ia brincar na rua, em frente de casa, que era a distância permitida, e fugir para a casa delas, onde rolava pipoca com limonada e muitas risadas. Fui pega no pulo, e terminantemente proibida de voltar lá. Tudo bem que Ruth fosse nossa babá eventual, mas eu “fugir” pra ir brincar com elas por iniciativa própria era um absurdo.
Pouco tempo depois, elas se mudaram da nossa cidade. Da Zilda, nunca mais ouvimos falar. Quanto à Ruth, soubemos, muitos anos depois, que estava casada com um alemão e morava em São Paulo. A notícia veio acompanhada de comentários do tipo “quem diria que aquela negrinha ia agarrar um alemão, e ainda se casar com ele”.
Contavam-se detalhes sobre os terríveis conflitos familiares – que ninguém ali havia presenciado – causados pela escolha do rapaz, que, ao que consta, apaixonou-se por ela e enfrentou a ira da família com muita coragem e determinação.
Se a vida não é fácil pra ninguém, como eu acredito, ela sempre proporcionou doses multiplicadas de dificuldades para os negros, dificuldades tanto maiores quanto mais “atrevidos” e menos conformados eles forem com seu destino “automático” de “seres humanos de segunda classe”. Isso está mudando, sim, mas ainda falta muito.
Nunca soube como Ruth se sentiu ao enfrentar a situação do casamento, mas tenho certeza de que, por mais difícil que tenha sido, sua bendita altivez garantiu-lhe um lugar num mundo que lhe era totalmente adverso. Deste momento tão distante, mando-lhe um beijo saudoso e cúmplice.
Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo no NR.
quinta-feira, 22 de março de 2012
lé com cré
Tem muito garoto e muita garota pensando que o mundo começou no dia em que nasceram. Creem que a luz e o verbo se fizeram no momento em que abriram o berreiro saudando a vida. Ao ouvirem a referência a um fato anterior à própria existência dizem: "Mas eu nem estava aqui". Verdade. No entanto é verdade também que há, ao menos, dois tipos de memória. A pessoal que começa a contar da primeira lembrança de cada um, e a memória histórica.
Esta última trabalha quando abrimos os ouvidos para a memórias dos outros. Sobretudo para a memória dos velhos, gente que está no planeta faz tempo. Ou quando lemos nos livros e no São Google, vemos no cinema e no You Tube histórias de eventos em épocas passadas. Ou quando lemos biografias de pessoas que conheceram muitas outras pessoas, e que já morreram faz décadas e até séculos.
Outra fonte maravilhosa de memória histórica é a literatura. Com ela ficamos sabendo como as pessoas conservavam os alimentos antes da geladeira, caminhavam antes dos sapatos, se divertiam e se entediavam antes da internet e das redes sociais. Descobrimos como a garotada, de zil anos atrás, fazia para driblar costumes e censuras severamente mais rígidos do que os de hoje.
Vindo para o Brasil de 2012, escuto alguns jovens dizendo que a ditadura militar é passado longínquo ou que a escravidão dos negros foi no tempo do onça. Aliás, já explico: tempo do onça é um tempo muito antigo. Mais antigo do que a mãe da minha bisavó que já usava essa expressão. Do tempo do onça também se enquadram coisas em desuso. Por exemplo, o mata-borrão e o ventilador de fusca.
Mas não precisa pegar uma lupa, nem ter neurônios de gênio para observar que a escravidão e as ditaduras (porque o país viveu mais de uma, é claro) ainda derramam suas memórias negativas no presente tão presente quanto este instante em que você lê a última frase deste parágrafo.
Faz menos de quinze dias, a estudante de dezenove anos Ana Carolina foi impedida de entrar na sua escola em São Luís do Maranhão. Motivo: ela não estava com os cabelos alisados. Ostentava sobre a própria cabeça seus cachinhos naturais. Quem impediu a entrada? A diretora do colégio.
Num telejornal, Ana Carolina contou que a diretora perguntou: "Por que você usa seus cabelos assim?". Ela respondeu: "Porque quero manter minha identidade como negra". A diretora riu. Acho que não preciso didatizar a origem histórica desse episódio. Não preciso lembrar que o país viveu séculos de escravidão e de autoritarismo político.
Por felicidade essa história não ficou no barato. A estudante denunciou a diretora por discriminação racial. Ana Carolina teve essa coragem por causa de outras pessoas negras, muito antes de ela nascer, terem lutado para que o racismo virasse crime. A diretora está isolada, por causa de outras pessoas negras e brancas terem lutado e seguirem lutando para que a escola seja democrática e não concentre o poder na mão de diretores.
Além da memória histórica nos ajudar a fazer sinapses interessantes, ela amplia nossa imaginação. Eu nasci um ano e dois meses depois da morte de Getúlio Vargas – aquele que se matou com um tiro no peito e levou multidões para o seu enterro. Pois de tanto ouvir e ler sobre Getúlio e sua época, consigo fechar os olhos e imaginar o Brasil anterior ao meu nascimento.
Vejo escolares enfileirados cantando o hino nacional. Vejo meu avô tenentista, que não conheci, amargando anos de prisão. Vejo o presidente subindo as escadas do Palácio do Catete e entrando no seu quarto pela última vez. Vejo-o escrevendo a carta de suicida em que diz: "Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história".
Epa, epa! Então a história começa depois da vida? A memória pode ser o outro nome da eternidade?
fernanda pompeu, escritora e redatora freelancer, colunista do Nota de Rodapé, escreve às quintas a coluna Observatório da Esquina.
Esta última trabalha quando abrimos os ouvidos para a memórias dos outros. Sobretudo para a memória dos velhos, gente que está no planeta faz tempo. Ou quando lemos nos livros e no São Google, vemos no cinema e no You Tube histórias de eventos em épocas passadas. Ou quando lemos biografias de pessoas que conheceram muitas outras pessoas, e que já morreram faz décadas e até séculos.
Outra fonte maravilhosa de memória histórica é a literatura. Com ela ficamos sabendo como as pessoas conservavam os alimentos antes da geladeira, caminhavam antes dos sapatos, se divertiam e se entediavam antes da internet e das redes sociais. Descobrimos como a garotada, de zil anos atrás, fazia para driblar costumes e censuras severamente mais rígidos do que os de hoje.
Vindo para o Brasil de 2012, escuto alguns jovens dizendo que a ditadura militar é passado longínquo ou que a escravidão dos negros foi no tempo do onça. Aliás, já explico: tempo do onça é um tempo muito antigo. Mais antigo do que a mãe da minha bisavó que já usava essa expressão. Do tempo do onça também se enquadram coisas em desuso. Por exemplo, o mata-borrão e o ventilador de fusca.
Mas não precisa pegar uma lupa, nem ter neurônios de gênio para observar que a escravidão e as ditaduras (porque o país viveu mais de uma, é claro) ainda derramam suas memórias negativas no presente tão presente quanto este instante em que você lê a última frase deste parágrafo.
Faz menos de quinze dias, a estudante de dezenove anos Ana Carolina foi impedida de entrar na sua escola em São Luís do Maranhão. Motivo: ela não estava com os cabelos alisados. Ostentava sobre a própria cabeça seus cachinhos naturais. Quem impediu a entrada? A diretora do colégio.
Num telejornal, Ana Carolina contou que a diretora perguntou: "Por que você usa seus cabelos assim?". Ela respondeu: "Porque quero manter minha identidade como negra". A diretora riu. Acho que não preciso didatizar a origem histórica desse episódio. Não preciso lembrar que o país viveu séculos de escravidão e de autoritarismo político.
Por felicidade essa história não ficou no barato. A estudante denunciou a diretora por discriminação racial. Ana Carolina teve essa coragem por causa de outras pessoas negras, muito antes de ela nascer, terem lutado para que o racismo virasse crime. A diretora está isolada, por causa de outras pessoas negras e brancas terem lutado e seguirem lutando para que a escola seja democrática e não concentre o poder na mão de diretores.
Além da memória histórica nos ajudar a fazer sinapses interessantes, ela amplia nossa imaginação. Eu nasci um ano e dois meses depois da morte de Getúlio Vargas – aquele que se matou com um tiro no peito e levou multidões para o seu enterro. Pois de tanto ouvir e ler sobre Getúlio e sua época, consigo fechar os olhos e imaginar o Brasil anterior ao meu nascimento.
Vejo escolares enfileirados cantando o hino nacional. Vejo meu avô tenentista, que não conheci, amargando anos de prisão. Vejo o presidente subindo as escadas do Palácio do Catete e entrando no seu quarto pela última vez. Vejo-o escrevendo a carta de suicida em que diz: "Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história".
Epa, epa! Então a história começa depois da vida? A memória pode ser o outro nome da eternidade?
fernanda pompeu, escritora e redatora freelancer, colunista do Nota de Rodapé, escreve às quintas a coluna Observatório da Esquina.
quarta-feira, 21 de março de 2012
Aula de humildade com o professor Aziz Ab’Saber
Aziz com o troféu Juca Pato como o intelectual do ano de 2011 |
Tratava-se de uma aula especial. Não propriamente pelo conteúdo, mas porque Aziz era uma lenda do departamento, tido por muitos como o maior geógrafo brasileiro em atividade, um dos maiores do mundo. Além disso, estava aposentado e não lecionava mais para graduação.
Quando ele entrou, pouco depois das sete da noite, todos os lugares estavam ocupados. Havia estudantes em pé, outros sentados nos degraus, entre a plateia. Na época, Aziz já aparentava uma saúde frágil. Sofria com problemas de visão e andava devagar, encurvado pelo peso das quase oito décadas enfileiradas.
Agora, pensando naquela noite, me dou conta de que não lembro os detalhes da aula. A bem da verdade, nem sei dizer qual era o assunto. A fala do ilustre acadêmico não impressionou e dela não me sobraram registros. O que realmente me marcou naquela noite foi a postura de Aziz.
Depois de brigar alguns minutos com o videocassete, controle-remoto em mãos, o velho professor se virou em busca de uma cadeira para sentar. Como disse, o auditório estava lotado, mas diante do ídolo intelectual que Aziz representava ali, todos os ocupantes da primeira fila se levantaram, respeitosamente cedendo seus lugares ao mestre.
Ele olhou em volta e sorriu sem dizer nada. Com a calma característica dos que já viveram o suficiente para renunciar à pressa, caminhou escada acima. Quando chegou lá no fundo, virou-se devagar, sentou no último degrau e apertou o play. Provável que ninguém tenha visto o começo do filme, porque estavam todos com as cabeças voltadas pra trás, surpresos com a modéstia do professor.
Aziz não deu muita bola pra isso também, e tratou de prestar atenção à TV lá na frente. Assistiu ao vídeo inteiro assim, sentado no chão, em meio à garotada, apertando os olhos pequenos pra compensar a falta de visão.
Aziz Ab’Saber morreu na sexta-feira passada, aos 87 anos, vítima de um infarto, na chácara onde vivia, perto de São Paulo.
Tomás Chiaverini é autor do romance Avesso (Global), e dos livros reportagem Cama de Cimento e Festa Infinita (ambos pela Ediouro). Mantém a coluna mensal Abelha na Orelha.
segunda-feira, 19 de março de 2012
(quase) comido pelo ódio
“A dor define nossa vida toda”
(De uma canção de Caetano Veloso)
Iñaki tinha 19 anos e a cabeça cheia de sonhos quando seu pai foi assassinado com um tiro na nuca. Juan era um alto executivo da Telefónica, e a empresa, por ordem judicial, grampeara telefones de integrantes do grupo separatista ETA, o que levou à prisão alguns de seus líderes. Como represália, Juan foi sequestrado e 24h depois, seu corpo, sem vida, abandonado em um bosque.
A bala que acabou com a vida de Juan foi disparada na manhã do dia 23 de outubro de 1980 e tornou-se o divisor de águas da vida de seu filho. A partir de então e durante anos Iñaki conviveu com um sentimento que quase o quebrou, o ódio.
“Percebi que isso [odiar] estava contaminando as minhas relações pessoais e profissionais. Odiar é algo que consome, que cansa, porque você tem que odiar 24 horas por dia”, me contou. “E me dei conta de que o terrorismo não só havia matado meu pai, mas estava acabando também com a minha vida”.
A frase, não sei bem porque, ficou dando voltas na minha cabeça durante dias e dias depois de nossa conversa, publicada em janeiro deste ano numa reportagem para a revista Retrato do Brasil.
Por sorte, nunca tive motivos para odiar. O mais próximo que vivi do ódio foi seu contrário, o sentimento que, inutilmente, tentamos definir e que pode ser chamado de paixão ou amor (visceral). Amar também consome e pode ser esgotador. Quem tão bem falou disso foi João Cabral de Melo Neto, no poema “Os três Mal-Amados”, que começa assim:
O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço.Trocasse Iñaki amor por ódio e teria um poema feito à sua medida. Ele quase foi comido pelo ódio, mas foi salvo pelo amor (pode soar cafona, mas foi assim).
O amor pela mulher, pelas filhas e pelo lugar onde viveu a vida toda fez com que substituísse a ideia de revanche pela da negociação. Entrou para um grupo de vítimas do terrorismo basco e recentemente encontrou um ex-integrante do ETA, cara a cara. Escutou um pedido de perdão, aceitou o gesto e deixou na sala do presídio o último resíduo de ódio que havia em seu corpo.
Ricardo Viel, jornalista, colunista do Purgatório e do NR, escreve às segundas, direto de Salamanca, Espanha.
domingo, 18 de março de 2012
Aborto na Argentina: dêem-me direitos, eles não murcham
Ao assistir o documentário “Aborto Clandestino: Crucificação Democrática”, no Cine do Caco, em Bauru, São Paulo, lembrei de três rosas pisoteadas e esquecidas que vi ao caminhar sob o sol escaldante no último 8 de março, dia Internacional da Mulher.
A liberdade da mulher, como aquelas rosas, me derão a mesma impressão ao término do filme, uma produção argentina do Coletivo Elza Torres que retrata o aborto naquele país do ponto de vista social e contextualiza a luta pela sua descriminalização.
O Cine do Caco, um clube de cinema do Centro Acadêmico de Comunicação Florestan Fernandes (Cacoff), da Unesp de Bauru, exibiu o documentário em parceria com o Centro Acadêmico XVII de Maio e com o apoio do Coletivo Movimenta Bauru.
Um por minuto
Na Argentina, a estimativa é de um aborto a cada minuto. Num ano, são 500 mil abortos frente a 700 mil nascimentos. E muitas mulheres também se tornam vítimas: 3 mil morrem em sua decorrência.
Com números tão expressivos, diversos grupos no país se organizam para garantir o direito a liberdade da mulher de escolher ter ou não o filho. Extremamente crítico, o documentário mostra a influência da Igreja na criminalização de mulheres que optam pelo aborto.
O documentário aponta que o aborto não é uma prática somente das classes mais baixas. Em geral, a maioria das mortes por complicações do aborto clandestino ocorrem nas periferias, mas a situação está presente em todas as camadas sociais.
As classes mais altas, por consequencia, tem mais condições de fazer um abordo em clínicas com mais “segurança”, diferentemente dos mais pobres.
“Se o Papa fosse mulher, aborto seria lei”, gritavam feministas num protesto exibido no filme. Essa frase dá o tom do embate religioso presente no país vizinho – avançados no debate e com muitos grupos mobilizados.
Enquanto lá o problema é a supremacia da Igreja Católica, no Brasil é a Bancada dos Evangélicos, por exemplo, que cada vez mais toma forma no Congresso, fazendo força junto a Igreja Católica.
Apesar do Brasil ser um país laico, as instituições religiosas ainda exercem grande influência nos poderes do país. Camila Sousa, integrante do Centro Acadêmico XVII de Maio, comenta que há muito para avançar no Brasil. “Essa não é uma luta só das mulheres, quando todo mundo entender que é uma causa de todos, as mulheres terão seus direitos garantidos”, argumenta.
A pesquisa Magnitude do Aborto no Brasil revela alguns aspectos epidemológicos e socioculturais do problema. Realizada pelo Ipas Brasil, em parceria com o Instituto de Medicina Social da UERJ, a pesquisa estima que sejam realizados anualmente mais de 1 milhão de abortamentos com cerca de 250 mil internações por ano para tratamento de complicações ao custo de 35 milhões de reais para o Estado.
Camila e todas as meninas presentes não ganharam flores nesse dia, mas preferiram plantar algumas sementes para que no futuro possam colher rosas suficientes para montar um buquê de direitos garantidos.
PANO RÁPIDO: Segundo a Folha de S. Paulo de quarta-feira, 14 de março, "a Corte Suprema Argentina determinou que abortos feitos por mulheres que tenham sido estupradas não são crime. A lei já liberava abortos no caso de violações e se havia perigo à vida da mulher. Mas, em geral, a Justiça apenas autorizada pessoas com deficiência".
Aline Ramos, estudante de jornalismo,entusiasta da Cobertura Colaborativa, especial para o Nota de Rodapé
A liberdade da mulher, como aquelas rosas, me derão a mesma impressão ao término do filme, uma produção argentina do Coletivo Elza Torres que retrata o aborto naquele país do ponto de vista social e contextualiza a luta pela sua descriminalização.
O Cine do Caco, um clube de cinema do Centro Acadêmico de Comunicação Florestan Fernandes (Cacoff), da Unesp de Bauru, exibiu o documentário em parceria com o Centro Acadêmico XVII de Maio e com o apoio do Coletivo Movimenta Bauru.
Um por minuto
Na Argentina, a estimativa é de um aborto a cada minuto. Num ano, são 500 mil abortos frente a 700 mil nascimentos. E muitas mulheres também se tornam vítimas: 3 mil morrem em sua decorrência.
Com números tão expressivos, diversos grupos no país se organizam para garantir o direito a liberdade da mulher de escolher ter ou não o filho. Extremamente crítico, o documentário mostra a influência da Igreja na criminalização de mulheres que optam pelo aborto.
O documentário aponta que o aborto não é uma prática somente das classes mais baixas. Em geral, a maioria das mortes por complicações do aborto clandestino ocorrem nas periferias, mas a situação está presente em todas as camadas sociais.
As classes mais altas, por consequencia, tem mais condições de fazer um abordo em clínicas com mais “segurança”, diferentemente dos mais pobres.
“Se o Papa fosse mulher, aborto seria lei”, gritavam feministas num protesto exibido no filme. Essa frase dá o tom do embate religioso presente no país vizinho – avançados no debate e com muitos grupos mobilizados.
Enquanto lá o problema é a supremacia da Igreja Católica, no Brasil é a Bancada dos Evangélicos, por exemplo, que cada vez mais toma forma no Congresso, fazendo força junto a Igreja Católica.
Apesar do Brasil ser um país laico, as instituições religiosas ainda exercem grande influência nos poderes do país. Camila Sousa, integrante do Centro Acadêmico XVII de Maio, comenta que há muito para avançar no Brasil. “Essa não é uma luta só das mulheres, quando todo mundo entender que é uma causa de todos, as mulheres terão seus direitos garantidos”, argumenta.
A pesquisa Magnitude do Aborto no Brasil revela alguns aspectos epidemológicos e socioculturais do problema. Realizada pelo Ipas Brasil, em parceria com o Instituto de Medicina Social da UERJ, a pesquisa estima que sejam realizados anualmente mais de 1 milhão de abortamentos com cerca de 250 mil internações por ano para tratamento de complicações ao custo de 35 milhões de reais para o Estado.
Camila e todas as meninas presentes não ganharam flores nesse dia, mas preferiram plantar algumas sementes para que no futuro possam colher rosas suficientes para montar um buquê de direitos garantidos.
PANO RÁPIDO: Segundo a Folha de S. Paulo de quarta-feira, 14 de março, "a Corte Suprema Argentina determinou que abortos feitos por mulheres que tenham sido estupradas não são crime. A lei já liberava abortos no caso de violações e se havia perigo à vida da mulher. Mas, em geral, a Justiça apenas autorizada pessoas com deficiência".
Aline Ramos, estudante de jornalismo,entusiasta da Cobertura Colaborativa, especial para o Nota de Rodapé
sábado, 17 de março de 2012
Chantagem e democracia
Muitos daqueles que gostam de encher a boca para falar em democracia, a que lhes satisfaz, é claro, pois há democracias para todos os gostos, curiosamente se calam diante de algumas atitudes e opiniões que lhes desagradam ou vão de encontro aos seus interesses.
Jornalistas, de preferência os especialistas em qualquer coisa ou coisa nenhuma; políticos ou seja lá o que isto signifique nos dias de hoje; juristas mais cegos do que o símbolo da profissão que abraçaram; intelectuais e artistas cujas ideias e criações estão comprometidas com o lado efêmero da vida mundana; empresários do supérfluo, fiscais da natureza que se autointitulam ecologistas, defensores dos ‘direitos humanos’ dos animais e por aí afora; alguns militares de pijamas e bermudas, gostam todos de boquejar sobre o que entendem por democracia e o que é preciso fazer, no seu entender, para que ela deva continuar em benefício da SUA liberdade de expressão e de SEUS grandes negócios.
No Brasil, após redescobrirmos alguns dos valores do que é viver em democracia, recuperando-nos de alguns dos principais traumas do golpe civil/militar de 1964, descobrimos que milhares – senão mesmo milhões – lutaram para que essa recuperação fosse possível. Milhões?!
A tal ponto que já me fiz uma perguntinha idiota, mas muito pertinente: se foram tantos assim a lutar contra a ditadura naqueles tempos sombrios, por qual razão ela se impôs e durou tantos anos no Brasil? E ainda esbraveja por aí nas entrelinhas de jornais, revistas e imagens de televisão ou no arreganho de alguns homens fardados, por exemplo?
Contudo, com o passar dos anos, parece que nem todos estão satisfeitos com a democracia que se tem. Nem os que se beneficiaram da ditadura e também muitos dos que se beneficiaram com a volta da democracia, mesmo que esta ainda vá se mostrando um pouco capenga das pernas.
Até prova em contrário, a democracia brasileira como tantas outras do mundo cristão ocidental, é a democracia representativa formal, tutelada pelo poder econômico. Quem tem mais dinheiro faz lobby e elege os “representantes do povo”, compram juízes, policiais, deputados, senadores e por aí segue incólume o trem dessa democracia.
Quem não tem dinheiro é obrigado a depositar o seu votinho na urna de dois em dois anos, obrigatoriamente – é bom que se diga – e se tenta reclamar alguma coisa, corre o risco de ter a PM no seu calcanhar. Ou a reputação enxovalhada pela tal liberdade de imprensa.
Qualquer indício de que a sociedade brasileira gostaria de mudar esse padrão viciado de cidadania a que chamam de democracia, começam a pipocar na imprensa e não só, as “advertências” sobre os perigos que corre o país: querem instituir a censura e calar a liberdade expressão, dizem uns, querem a hegemonia do poder, esbravejam outros, querem o revanchismo, boquejam terceiros, e por aí afora.
O esquema é tão safado e sem vergonha, além de útil, que bastou a presidente Dilma Roussef mandar embora ou aceitar a demissão de alguns ministros (com provas ou não, outra gracinha da nossa grande democracia), que alguns dos partidos políticos aliados (imaginem se não fossem) já iniciaram a cantilena das chantagens nas votações no Congresso Nacional.
Apurar mazelas e trambiques do Poder Judiciário? Nem pensar. Isto é uma afronta a democracia. Levar criminosos do colarinho branco aos tribunais e, uma vez comprovado o crime, às prisões? De forma alguma, “somos um povo pacífico, que detesta a violência”. E no dia seguinte, os mesmos argumentadores em causa própria pedem providências contra a violência do dia a dia nas grandes cidades brasileiras, a violência dos pobres, bem entendido.
Tamanha hipocrisia e cinismo já ultrapassam os limites da tolerância, do bom senso. Os próximos meses, com as eleições municipais que se aproximam, irão deixar à mostra o lado mais sórdido da nossa democracia: aquele em que se pode dizer tudo e mais alguma coisa do adversário, mesmo sem provas e, eleitos, alguns milhares de prefeitos e vereadores – em sua maioria – se oferecerão como base de troca para as presidenciais de 2014. Será tudo uma questão de distribuição de verbas, chantagens e alianças espúrias, onde a governabilidade se define entre o péssimo e o menos ruim.
Grande democracia!
Izaías Almada, dramaturgo e escritor, colunista do NR. Concorra na promoção do novo romance do autor, "A sucursal do inferno".
Jornalistas, de preferência os especialistas em qualquer coisa ou coisa nenhuma; políticos ou seja lá o que isto signifique nos dias de hoje; juristas mais cegos do que o símbolo da profissão que abraçaram; intelectuais e artistas cujas ideias e criações estão comprometidas com o lado efêmero da vida mundana; empresários do supérfluo, fiscais da natureza que se autointitulam ecologistas, defensores dos ‘direitos humanos’ dos animais e por aí afora; alguns militares de pijamas e bermudas, gostam todos de boquejar sobre o que entendem por democracia e o que é preciso fazer, no seu entender, para que ela deva continuar em benefício da SUA liberdade de expressão e de SEUS grandes negócios.
No Brasil, após redescobrirmos alguns dos valores do que é viver em democracia, recuperando-nos de alguns dos principais traumas do golpe civil/militar de 1964, descobrimos que milhares – senão mesmo milhões – lutaram para que essa recuperação fosse possível. Milhões?!
A tal ponto que já me fiz uma perguntinha idiota, mas muito pertinente: se foram tantos assim a lutar contra a ditadura naqueles tempos sombrios, por qual razão ela se impôs e durou tantos anos no Brasil? E ainda esbraveja por aí nas entrelinhas de jornais, revistas e imagens de televisão ou no arreganho de alguns homens fardados, por exemplo?
Contudo, com o passar dos anos, parece que nem todos estão satisfeitos com a democracia que se tem. Nem os que se beneficiaram da ditadura e também muitos dos que se beneficiaram com a volta da democracia, mesmo que esta ainda vá se mostrando um pouco capenga das pernas.
Até prova em contrário, a democracia brasileira como tantas outras do mundo cristão ocidental, é a democracia representativa formal, tutelada pelo poder econômico. Quem tem mais dinheiro faz lobby e elege os “representantes do povo”, compram juízes, policiais, deputados, senadores e por aí segue incólume o trem dessa democracia.
Quem não tem dinheiro é obrigado a depositar o seu votinho na urna de dois em dois anos, obrigatoriamente – é bom que se diga – e se tenta reclamar alguma coisa, corre o risco de ter a PM no seu calcanhar. Ou a reputação enxovalhada pela tal liberdade de imprensa.
Qualquer indício de que a sociedade brasileira gostaria de mudar esse padrão viciado de cidadania a que chamam de democracia, começam a pipocar na imprensa e não só, as “advertências” sobre os perigos que corre o país: querem instituir a censura e calar a liberdade expressão, dizem uns, querem a hegemonia do poder, esbravejam outros, querem o revanchismo, boquejam terceiros, e por aí afora.
O esquema é tão safado e sem vergonha, além de útil, que bastou a presidente Dilma Roussef mandar embora ou aceitar a demissão de alguns ministros (com provas ou não, outra gracinha da nossa grande democracia), que alguns dos partidos políticos aliados (imaginem se não fossem) já iniciaram a cantilena das chantagens nas votações no Congresso Nacional.
"TUDO BEM TIRAR MILHÕES DE BRASILEIROS DA MISÉRIA, MAS PRECISAMOS GARANTIR A NOSSA MAMATA, O NOSSO MINISTERIOZINHO E AS NOSSAS VERBAS!"
Apurar mazelas e trambiques do Poder Judiciário? Nem pensar. Isto é uma afronta a democracia. Levar criminosos do colarinho branco aos tribunais e, uma vez comprovado o crime, às prisões? De forma alguma, “somos um povo pacífico, que detesta a violência”. E no dia seguinte, os mesmos argumentadores em causa própria pedem providências contra a violência do dia a dia nas grandes cidades brasileiras, a violência dos pobres, bem entendido.
Tamanha hipocrisia e cinismo já ultrapassam os limites da tolerância, do bom senso. Os próximos meses, com as eleições municipais que se aproximam, irão deixar à mostra o lado mais sórdido da nossa democracia: aquele em que se pode dizer tudo e mais alguma coisa do adversário, mesmo sem provas e, eleitos, alguns milhares de prefeitos e vereadores – em sua maioria – se oferecerão como base de troca para as presidenciais de 2014. Será tudo uma questão de distribuição de verbas, chantagens e alianças espúrias, onde a governabilidade se define entre o péssimo e o menos ruim.
Grande democracia!
Izaías Almada, dramaturgo e escritor, colunista do NR. Concorra na promoção do novo romance do autor, "A sucursal do inferno".
sexta-feira, 16 de março de 2012
Papo sério
Um dos requisitos pra trabalhar nos organismos internacionais é ter disposição pra atuar num ambiente multicultural, saber conviver com gente de outras origens, religiões, crenças, etnias e orientações sexuais. A gente sempre pensa que isto é muito importante para os jovens profissionais brasileiros, que quando entram precisam se integrar a um ambiente de diversidade e tolerância.
Então chegou a jovem profissional belga. Naquela disposição típica de quem acredita que vai contribuir decisivamente para elevar os índices de desenvolvimento. E aquela já vinha meio enturmada, pois estava morando com seu namorido, um legítimo representante das profundezas do Triângulo Mineiro. Estava aprendendo português na cama, um lugar com óbvias vantagens para o dia a dia, mas meio complicado para os ambientes oficiais. Já tínhamos tido algumas amostras de que o aprendizado ia por caminhos tortuosos.
Íamos para uma reunião com um senador das antigas, um daqueles senhores idosos de nobre estirpe paulistana. No táxi, eu rezava pra que nada de grave acontecesse, pois precisávamos muito do aval e da parceria do senador pra um grande evento que estávamos organizando em São Paulo. A moça belga, que de burra não tinha nada, me perguntou como deveria tratá-lo.
Dei aquela orientação básica e certeira: chame-o de senhor, cumprimente com cerimônia, mas não precisa muita reverência, ele é bastante informal. Aliás, trate sempre as pessoas por “senhor” e “senhora” no primeiro contato, isso evita muitos problemas. Use as palavras que você conhece, pois é o caminho mais seguro, e as pessoas aqui sempre ajudam. E ela com aquela cara concentrada, levando muito a sério as instruções.
A reunião correu bem. Eu expliquei o que queríamos, ele foi muito amável e receptivo, deu-nos algumas dicas valiosas e instruções sobre como resolver diversos nós institucionais. Lá pelas tantas, perguntou a ela, que até então estivera calada, quem eram as pessoas que estávamos convidando, que tipo de público esperávamos.
Ela, muito compenetrada, respondeu que eram mulheres dos movimentos sociais, líderes feministas, sindicalistas, representantes de organizações de base e das grandes redes nacionais e regionais. Respirei aliviada. E ela emendou: “vomos convidarr tombém umas muié bem fodidas, que vem lá do cu do mundo, nunca forram a Sompaulo”.
Silêncio. Ele sorria, estático. Nem tentei ajeitar nada. Em segundos, nos despedimos, agarrei-a pelo braço e saímos disparadas pelos corredores do Senado, enquanto eu mentalmente desancava todos os namorados jecas da face da terra.
Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo no NR.
Então chegou a jovem profissional belga. Naquela disposição típica de quem acredita que vai contribuir decisivamente para elevar os índices de desenvolvimento. E aquela já vinha meio enturmada, pois estava morando com seu namorido, um legítimo representante das profundezas do Triângulo Mineiro. Estava aprendendo português na cama, um lugar com óbvias vantagens para o dia a dia, mas meio complicado para os ambientes oficiais. Já tínhamos tido algumas amostras de que o aprendizado ia por caminhos tortuosos.
Íamos para uma reunião com um senador das antigas, um daqueles senhores idosos de nobre estirpe paulistana. No táxi, eu rezava pra que nada de grave acontecesse, pois precisávamos muito do aval e da parceria do senador pra um grande evento que estávamos organizando em São Paulo. A moça belga, que de burra não tinha nada, me perguntou como deveria tratá-lo.
Dei aquela orientação básica e certeira: chame-o de senhor, cumprimente com cerimônia, mas não precisa muita reverência, ele é bastante informal. Aliás, trate sempre as pessoas por “senhor” e “senhora” no primeiro contato, isso evita muitos problemas. Use as palavras que você conhece, pois é o caminho mais seguro, e as pessoas aqui sempre ajudam. E ela com aquela cara concentrada, levando muito a sério as instruções.
A reunião correu bem. Eu expliquei o que queríamos, ele foi muito amável e receptivo, deu-nos algumas dicas valiosas e instruções sobre como resolver diversos nós institucionais. Lá pelas tantas, perguntou a ela, que até então estivera calada, quem eram as pessoas que estávamos convidando, que tipo de público esperávamos.
Ela, muito compenetrada, respondeu que eram mulheres dos movimentos sociais, líderes feministas, sindicalistas, representantes de organizações de base e das grandes redes nacionais e regionais. Respirei aliviada. E ela emendou: “vomos convidarr tombém umas muié bem fodidas, que vem lá do cu do mundo, nunca forram a Sompaulo”.
Silêncio. Ele sorria, estático. Nem tentei ajeitar nada. Em segundos, nos despedimos, agarrei-a pelo braço e saímos disparadas pelos corredores do Senado, enquanto eu mentalmente desancava todos os namorados jecas da face da terra.
Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo no NR.
quinta-feira, 15 de março de 2012
lições
Imagine o Rio de Janeiro em 1965. Isso mesmo, quarenta e sete anos atrás. Vamos lá: tinha a bossa nova com seus barquinhos e bolinhas de sabão. Tinha o povo em pé e feliz na Geral do Maracanã. Tinha a barca cantareira fazendo-se de ponte entre o Rio e Niterói. Tinha o vendedor de mate gelado nas areias escaldantes de Copacabana.
Tinha, e ainda tem, o jogo do bicho. Sempre popular, com toda gente fazendo a sua fezinha. Lembro da Alzira, empregada doméstica, que a vida inteira apostou num bicho só, o jacaré. Entrava ano, saía ano. E numa véspera de Carnaval o jacaré deu uma bolada para ela. Lembro dos dentes da Alzira rindo de felicidade.
Para mim, então uma garotinha, o mundo soava suave e promissor. O mar era o céu. A floresta da Tijuca, uma Amazônia inteira. É claro, havia sofrimento: o governo militar, a igreja conservadora, o machismo ainda enaltecido, o racismo debaixo dos panos, a pobreza nos subúrbios, a miséria nas favelas.
Porém para a maioria das crianças, a parte ruim mesmo era a Escola. Autoritária e burra. Já sei, não posso e não devo generalizar. No entanto a minha escola, o Grupo Escolar Soares Pereira, era um matadouro de iniciativas. O prédio era até bonito. Um casarão tijucano, no estilo neocolonial luso-brasileiro. Em frente dele tinha uma praça, a Xavier de Brito.
Essa praça foi importante, pois da janela da minha sala de aula eu a namorava com uma paixão tremenda. Tudo nela - as árvores, os pássaros nos galhos, o imponente chafariz de bronze, a gangorra - era o avesso da minha escola. Antípoda dos corredores proibidos, da fila dos alunos na merenda, do mau humor das professoras, do meu dissabor de aprender pela decoreba.
Filha de pais ateus, eu era obrigada a assistir às aulas de religião. Era Jesus Cristo para cá, Judas Iscariotes para lá e no meio uma tal de Madalena Arrependida. Histórias confusas em aulas mais incompreensíveis do que se fossem de javanês. E vinha a ameaça da catequista: "Quem não crê em Deus está à beira de um abismo". Batata! Eu ia e voltava da escola, temendo que de repente a rua se abrisse me matando.
Também teve a vez da grande humilhação. A professora pegou meu caderno com letras garranchadas e páginas amassadas. Na sequência, ela o comparou com o caderno do Ernani, desgraçadamente com letras perfeitas e páginas impecáveis. Na frente de toda a turma, exclamou: "Uma menina com um caderno mais porco do que o de um menino"!?!
Deixei a Soares Pereira em prantos. Eu era mais porca do que um menino! Pior, mais porca do que o antipático Ernani! Lembro que corri para a Xavier de Brito esperando que as árvores, os pássaros nos galhos, o imponente chafariz de bronze, a gangorra me dessem consolo. Não deram.
Mas a espantosa lição, aquela que calou mais profundo na minha consciência de nove anos, estava por vir. Antes tenho que contar da merenda servida na Soares Pereira. Invariável em dois: ou uma caneca de mingau, ou uma caneca de sagu. Gosmentos. Naquela época, as crianças mais pobres eram as que sempre estavam na fila da merenda. Eu quase nunca.
Pois numa manhã qualquer, a bedel dona Iracema, de quem nunca vi um sorriso, entrou na sala de aula com um bloquinho em punho. Perguntou quem merendaria naquele dia. Estranhei. Nunca ninguém havia feito essa pergunta. Aliás, excetuando a tabuada e o bê-a-bá, ninguém perguntava nada para a gente. Me bateu uma dúvida se levantava o dedo ou não. Mas ao lembrar do mingau e do sagu fiquei quieta.
No recreio, assisti à cena: a merenda dessa manhã tinha cachorro quente! Saborosa salsicha com saboroso molho no saboroso pão! Mas só para aqueles que tinham dito sim ao mingau e ao sagu de todo dia. Entendi na hora: não havia para todo mundo.
Também compreendi que omitir informações, enganar, manipular eram estratégias para a vitória de um objetivo. Elas não estavam nas cartilhas escolares. Mas estavam, pujantes, na vida.
fernanda pompeu, escritora e redatora freelancer, colunista do Nota de Rodapé, escreve às quintas a coluna Observatório da Esquina. Ilustração de Carvall, especial para o texto.
quarta-feira, 14 de março de 2012
Prosa de corredor
É que outro dia, encompridando pelos corredores da Redação aqui do NR a conversa com minha colega Fernanda Pompeu sobre seu texto Bye, Bye, há duas semanas, ocorreu que ela me referisse - acrescendo à Kodak, marca recém-extinta que lhe recordava a juventude - Grapette, um refrigerante de uva que também já desapareceu, e que a faz lembrar da infância.
Fiquei com isso de lembrar da infância na cabeça e, de noite - artimanha do inconsciente - sentei-me cheio de decisão para ver aquele documentário sobre Ayrton Senna de que o pessoal anda falando. Aí me lembrei da conversa com Fernanda, porque para mim Senna (feito Grapette para ela) também retraz a infância.
Eu era um menino de dez anos quando “Senna bateu forte”, como disse Galvão Bueno para que minha memória jamais pudesse esquecer. Não era fã em especial de Formula 1, o esporte, mas acordava todas as manhãs de domingo para me juntar a meu pai e meu tio André, que então morava conosco, e “ver a largada”.
Meu pai e meu tio, um, Flamengo, o outro, Vasco, viviam por isso às turras, e estendiam a rivalidade esportiva dos gramados para as pistas - meu pai torcia (pasmem!) para Prost, e meu tio, para Senna. Menino, dividia-me entre o amor de um, paterno, e o do outro, paternal; de modo que eu, desde cedo cultor do bom senso e da conciliação, virei Flamengo e Senna.
Mas o caso é que, voltando ao assunto, chorei novamente a morte de Ayrton Senna ao ver o filme. Por transportado de volta à infância, chorei não a perda de um herói nacional, senão a do meu próprio. Chorei de certa adrenalina, vinda não da velocidade dos carros, senão da catarse de ter-me revisto menino - por semanas desenhando (visto de cima) ou montando de Lego protótipos de carrinhos de F1, após o desastre da Tamburello.
Sentir ser de novo menino emociona acho que porque o tempo da infância é o que de mais parecido existe na experiência da gente com o tempo do mito, que é um tempo assim sempiterno, só de presente e mais nada. Tempo que nunca passa - e que, de tão bom, também nunca chega.
Acho que é por isso que a gente, daqui e dali, fica sempre flertando com voltar para ele, Fernanda. Por isso que a gente marca o caminho que faz no percurso da vida com Grapettes e Ayrtons Sennas, feito Joãozinho (irmão de Maria) marcou uma trilha na mata com migalhinhas de pão. Aí a gente, besta, acha que só consegue voltar lá para onde fica nossa casa porque enxerga as migalhas no chão. E só quando a gente não as vê mais, porque comidas pelos corvos (pelo tempo) é que a gente descobre que nunca dependeu delas - porque, no fundo, sempre soube o caminho de cor.
Talvez porque nunca tenha havido sequer nem caminho, e a gente tenha estado mesmo sempre sempre lá em nosso velho lugar de cada um.
Ricardo Sangiovanni, jornalista, coordena o blog O Purgatório e mantém no NR a coluna Mistério do Planeta, com um texto mensal toda primeira quarta-feira do mês corrente. Escreve de Salvador.
Fiquei com isso de lembrar da infância na cabeça e, de noite - artimanha do inconsciente - sentei-me cheio de decisão para ver aquele documentário sobre Ayrton Senna de que o pessoal anda falando. Aí me lembrei da conversa com Fernanda, porque para mim Senna (feito Grapette para ela) também retraz a infância.
Eu era um menino de dez anos quando “Senna bateu forte”, como disse Galvão Bueno para que minha memória jamais pudesse esquecer. Não era fã em especial de Formula 1, o esporte, mas acordava todas as manhãs de domingo para me juntar a meu pai e meu tio André, que então morava conosco, e “ver a largada”.
Meu pai e meu tio, um, Flamengo, o outro, Vasco, viviam por isso às turras, e estendiam a rivalidade esportiva dos gramados para as pistas - meu pai torcia (pasmem!) para Prost, e meu tio, para Senna. Menino, dividia-me entre o amor de um, paterno, e o do outro, paternal; de modo que eu, desde cedo cultor do bom senso e da conciliação, virei Flamengo e Senna.
Mas o caso é que, voltando ao assunto, chorei novamente a morte de Ayrton Senna ao ver o filme. Por transportado de volta à infância, chorei não a perda de um herói nacional, senão a do meu próprio. Chorei de certa adrenalina, vinda não da velocidade dos carros, senão da catarse de ter-me revisto menino - por semanas desenhando (visto de cima) ou montando de Lego protótipos de carrinhos de F1, após o desastre da Tamburello.
Sentir ser de novo menino emociona acho que porque o tempo da infância é o que de mais parecido existe na experiência da gente com o tempo do mito, que é um tempo assim sempiterno, só de presente e mais nada. Tempo que nunca passa - e que, de tão bom, também nunca chega.
Acho que é por isso que a gente, daqui e dali, fica sempre flertando com voltar para ele, Fernanda. Por isso que a gente marca o caminho que faz no percurso da vida com Grapettes e Ayrtons Sennas, feito Joãozinho (irmão de Maria) marcou uma trilha na mata com migalhinhas de pão. Aí a gente, besta, acha que só consegue voltar lá para onde fica nossa casa porque enxerga as migalhas no chão. E só quando a gente não as vê mais, porque comidas pelos corvos (pelo tempo) é que a gente descobre que nunca dependeu delas - porque, no fundo, sempre soube o caminho de cor.
Talvez porque nunca tenha havido sequer nem caminho, e a gente tenha estado mesmo sempre sempre lá em nosso velho lugar de cada um.
Ricardo Sangiovanni, jornalista, coordena o blog O Purgatório e mantém no NR a coluna Mistério do Planeta, com um texto mensal toda primeira quarta-feira do mês corrente. Escreve de Salvador.
segunda-feira, 12 de março de 2012
“Toda Carta de Amor…”
À Organização do Concurso Literário “Toda Carta de Amor…”
Prezados,
Segue meu trabalho.
Atenciosamente,
H.M.S
Maía,
Sensato seria escrever apenas: Feliz aniversário, te desejo o melhor. E te enviar essa mensagem insossa, como se eu tivesse me lembrado de você hoje meio sem querer e, por gentileza, me dei ao trabalho de te mandar uma linha de parabéns.
Não. Sensato, mesmo, seria não te mandar nada. Fingir que consegui o que há tanto tempo busco: não pensar em você por um dia. Vinte e quatro horas sem que uma palavra, uma música, um cheiro, um lugar, a fruta que você sempre tinha na bolsa, o poeta que você tanto gostava… digo, sem que nenhum desse (e de muitos outros) fantasmas, nem em sonho, me assediem.
Você acha que é pedir muito?
Em realidade, muito mais sensato, mais correto, seria que eu ou você não estivéssemos naquela noite – ou que aquela noite simplesmente não tivesse existido. E que se tivesse existido, eu não tivesse te procurado. E que se eu tivesse te procurado, você nunca tivesse me respondido. E que eu nunca tivesse colocado a mão no teu ombro, e ainda que eu tivesse feito isso você nunca, jamais, tomasse a minha mão.
Lembra aquele acidente em que dois aviões se chocaram em pleno ar, na Amazônia? Foi isso que aconteceu com a gente. Soma de um erro enorme e muito azar. Alguns metros mais ou menos e cada um seguiria seu caminho sem um arranhão. Mas aconteceu. Você passou por ali, eu cruzei o teu caminho (talvez tenha sido o contrário) e veio a colisão. Mas você, como aquele avião menor, seguiu seu rumo, sem talvez saber muito bem o estrago que fez, sem saber que derrubou o outro (que segue no chão).
Se pelo menos hoje fosse sábado eu sairia com meus amigos, encheria a cara, falaria de amenidades e por alguns instantes esqueceria essa história. Mas não, ainda é terça-feira, e hoje a desculpa para pensar em você é que é seu aniversário. Mas amanha não haverá aniversário, não haverá desculpas e os fantasmas seguirão me torturando.
Como tantas outras, esta carta ficará em cima da mesa e nunca verá um envelope. Porque a única mensagem que eu queria mesmo te mandar era uma que dissesse: “conheci uma mulher incrível, linda, doce, inteligente e que me ama”. Tenho medo de que essa carta, como todas as outras, nunca chegue a ser enviada.
Se pelo menos esta carta servisse pra alguma coisa, talvez pra ganhar um concurso literário. Mas não, não vai servir, porque nela há tanta verdade que parece ficção.
Kike
Ricardo Viel, jornalista, colunista do Purgatório e do NR, escreve às segundas, direto de Salamanca, Espanha.
Prezados,
Segue meu trabalho.
Atenciosamente,
H.M.S
Maía,
Sensato seria escrever apenas: Feliz aniversário, te desejo o melhor. E te enviar essa mensagem insossa, como se eu tivesse me lembrado de você hoje meio sem querer e, por gentileza, me dei ao trabalho de te mandar uma linha de parabéns.
Não. Sensato, mesmo, seria não te mandar nada. Fingir que consegui o que há tanto tempo busco: não pensar em você por um dia. Vinte e quatro horas sem que uma palavra, uma música, um cheiro, um lugar, a fruta que você sempre tinha na bolsa, o poeta que você tanto gostava… digo, sem que nenhum desse (e de muitos outros) fantasmas, nem em sonho, me assediem.
Você acha que é pedir muito?
Em realidade, muito mais sensato, mais correto, seria que eu ou você não estivéssemos naquela noite – ou que aquela noite simplesmente não tivesse existido. E que se tivesse existido, eu não tivesse te procurado. E que se eu tivesse te procurado, você nunca tivesse me respondido. E que eu nunca tivesse colocado a mão no teu ombro, e ainda que eu tivesse feito isso você nunca, jamais, tomasse a minha mão.
Lembra aquele acidente em que dois aviões se chocaram em pleno ar, na Amazônia? Foi isso que aconteceu com a gente. Soma de um erro enorme e muito azar. Alguns metros mais ou menos e cada um seguiria seu caminho sem um arranhão. Mas aconteceu. Você passou por ali, eu cruzei o teu caminho (talvez tenha sido o contrário) e veio a colisão. Mas você, como aquele avião menor, seguiu seu rumo, sem talvez saber muito bem o estrago que fez, sem saber que derrubou o outro (que segue no chão).
Se pelo menos hoje fosse sábado eu sairia com meus amigos, encheria a cara, falaria de amenidades e por alguns instantes esqueceria essa história. Mas não, ainda é terça-feira, e hoje a desculpa para pensar em você é que é seu aniversário. Mas amanha não haverá aniversário, não haverá desculpas e os fantasmas seguirão me torturando.
Como tantas outras, esta carta ficará em cima da mesa e nunca verá um envelope. Porque a única mensagem que eu queria mesmo te mandar era uma que dissesse: “conheci uma mulher incrível, linda, doce, inteligente e que me ama”. Tenho medo de que essa carta, como todas as outras, nunca chegue a ser enviada.
Se pelo menos esta carta servisse pra alguma coisa, talvez pra ganhar um concurso literário. Mas não, não vai servir, porque nela há tanta verdade que parece ficção.
Kike
Ricardo Viel, jornalista, colunista do Purgatório e do NR, escreve às segundas, direto de Salamanca, Espanha.
sexta-feira, 9 de março de 2012
Em silêncio
Tomando o café da manhã num hotel, durante um evento de trabalho, compartilhei a mesa com uma ex-jogadora da seleção brasileira feminina de basquete. Enquanto rolava uma conversa de praxe entre pessoas que não se conhecem, ela fez um comentário que me incomodou muito.
Disse que na noite anterior, enquanto jantava num restaurante, observou um casal de uma mesa próxima, que “era um daqueles casais cujo casamento já acabou há muito tempo”. Esperaram a comida calados, comeram em silêncio.
Não foi a primeira vez que ouvi um comentário desses sobre situações semelhantes. Às vezes, acontece mesmo de vermos por aí casais ou famílias inteiras comendo juntas sem que se observe qualquer conversa ou outra expressão de que alguém está curtindo o momento.
É bom que se diga que os restaurantes não são necessariamente lugares de intensa conversa ou troca afetiva. No entanto, é muito comum e normal que sejam usados pra isto.
Mas o que me chamou a atenção no comentário foi concluir que se tratava de uma relação acabada, um caso perdido, porque as pessoas não conversavam. Talvez esta pessoa não saiba que, em relações muito antigas, conversar já não seja tão necessário, pois estar junto pode ser suficientemente bom, confortável e prazeroso.
Ter que conversar sempre pode ser tão chato e forçado quanto qualquer outra coisa que se faça apenas para preencher o silêncio, que pode ser um vazio insuportável pra muita gente.
Trocar ideias, comentários, impressões, fofocas, opiniões, confidências, contrariedades, sentimentos também deve ser um exercício prazeroso e, sobretudo, espontâneo.
Não conversar, de maneira nenhuma significa que tudo acabou.
Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo no NR.
Disse que na noite anterior, enquanto jantava num restaurante, observou um casal de uma mesa próxima, que “era um daqueles casais cujo casamento já acabou há muito tempo”. Esperaram a comida calados, comeram em silêncio.
Não foi a primeira vez que ouvi um comentário desses sobre situações semelhantes. Às vezes, acontece mesmo de vermos por aí casais ou famílias inteiras comendo juntas sem que se observe qualquer conversa ou outra expressão de que alguém está curtindo o momento.
É bom que se diga que os restaurantes não são necessariamente lugares de intensa conversa ou troca afetiva. No entanto, é muito comum e normal que sejam usados pra isto.
Mas o que me chamou a atenção no comentário foi concluir que se tratava de uma relação acabada, um caso perdido, porque as pessoas não conversavam. Talvez esta pessoa não saiba que, em relações muito antigas, conversar já não seja tão necessário, pois estar junto pode ser suficientemente bom, confortável e prazeroso.
Ter que conversar sempre pode ser tão chato e forçado quanto qualquer outra coisa que se faça apenas para preencher o silêncio, que pode ser um vazio insuportável pra muita gente.
Trocar ideias, comentários, impressões, fofocas, opiniões, confidências, contrariedades, sentimentos também deve ser um exercício prazeroso e, sobretudo, espontâneo.
Não conversar, de maneira nenhuma significa que tudo acabou.
Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo no NR.
quinta-feira, 8 de março de 2012
vermelhos
Tenho para mim que a filha de um pastor evangélico, por mais ateia que se torne, nunca se sentirá confortável na profissão de stripper. Da mesma forma a filha de uma cozinheira, por mais apressada que esteja, nunca engolirá o slogan dos alimentos de caixinha: "Aqueça e Pronto". A filha de um pedreiro jamais dormirá segura dentro de uma barraca de camping.
É claro, quando adultos, vamos nos desprendendo dessas heranças fundamentais. Muitas vezes até nos insurgimos. Um caso é o do político Carlos Lacerda (1914-1977). Filho de um entusiasta do socialismo, seu nome é Carlos em homenagem ao Karl Marx e Frederico em homenagem ao Friedrich Engels. O Carlos Frederico Lacerda acabou entrando para a eternidade como um feroz anticomunista.
Cito o Lacerda por conta de uma lembrança anedótica da minha infância carioca. O ano era o fatídico 1964. Numa rádio, Lacerda fazia um discurso lambisgoio e laudatório ao golpe militar. Meu tio, sindicalista da cabeça aos pés, ouvia raivoso. Eu sempre gostei do nome Carlos e também para desafiar o tio Walter, gritei: "Viva o Carlos Lacerda!"
Então meu tio correu atrás de mim com um chinelão em punho. O alvo era o meu traseiro. Eu me safei daquela. Neta de tenentista, filha e sobrinha de comunistas, o que eu esperava? Ainda tem gente que pergunta se eu sou comunista. Respondo: só de família. Passadas tantas ideologias debaixo do meu nariz, o único ista de que não abro mão é o de flamenguista. Por enquanto.
Mas tal como a filha do pastor, a filha da cozinheira e a do pedreiro, sempre serei filha de um comunista. Sempre desconfiarei dos bancos e dos patrões. Agora se me perguntassem qual o sistema ideal, eu não titubearia: capitalismo para todos! Sonho que cada habitante da Terra, além de moradia, saúde, educação e de quatro refeições por dia, tenha direito a um iPad.
Ser filha de um comunista me trouxe muitas vantagens. Por exemplo, ter lido na adolescência os melhores escribas do século XIX. A brilhante literatura de Dostoiévski, Tolstói, Gogól, Tchecov. Tudo pela casualidade deles serem russos. Soviéticos, segundo meu pai. E desvantagens: só fui ler Borges e Nelson Rodrigues nos anos da faculdade. Meu pai e meu tio os vetavam por reacionários.
Na Escola de Comunicações e Artes da Usp, em 1977, me tornei ativista da Liberdade e Luta – tendência estudantil monitorada por uma organização trotskista. Entre as tendências, a Liberdade e Luta, Libelu, era a mais aguerrida e determinada no combate à camarilha militar. Porém, o mesmo ódio que dedicava à ditadura, dedicava aos militantes do Partidão – apelido histórico do Partido Comunista Brasileiro.
O PCB, através do meu pai e do meu tio, havia sido na minha casa tão reverenciado quanto é o Papa nas famílias católicas. Nunca me esqueço do dia que meu pai, com uma imensa mágoa, me mostrou um panfleto assinado pela Liberdade e Luta descendo o cassete nos velhos comunistas, acusando todos eles de stalinistas e traidores da classe operária.
Eu até que aguentei firme o embate entre a tradição familiar e a minha descoberta de juventude. Acho que o que eu queria, e ainda quero, era pensar livremente. Não demorei para perceber o sectarismo e autoritarismo dos dirigentes da Liberdade e Luta. Um belo dia, a direção decretou que marihuaneros e delirantes seriam expulsos da tendência estudantil.
Quem me salvou, naquela altura, foi o feminismo. Na época, deliciosamente libertário. Feminismo desprezado tanto pelo Partidão quanto pela Libelu, que insistiam que as reivindicações das mulheres eram blablablá burguês. A filósofa e ativista do movimento negro Sueli Carneiro uma vez me disse uma frase inesquecível: "Entre a esquerda e a direita, eu sou negra".
Daí parafraseei: Entre Josef Stalin e Leon Trotsky, eu sou mulher.
Hoje admiro as vidas de lutas do meu pai e do meu tio, ambos fiéis ao socialismo. Também trago boas lembranças da minha juventude libelu que, ao menos, me fez gostar de rock and roll e de certa irreverência.
fernanda pompeu, escritora e redatora freelancer, colunista do Nota de Rodapé, escreve às quintas a coluna Observatório da Esquina. Ilustração de Carvall, especial para o texto.
É claro, quando adultos, vamos nos desprendendo dessas heranças fundamentais. Muitas vezes até nos insurgimos. Um caso é o do político Carlos Lacerda (1914-1977). Filho de um entusiasta do socialismo, seu nome é Carlos em homenagem ao Karl Marx e Frederico em homenagem ao Friedrich Engels. O Carlos Frederico Lacerda acabou entrando para a eternidade como um feroz anticomunista.
Cito o Lacerda por conta de uma lembrança anedótica da minha infância carioca. O ano era o fatídico 1964. Numa rádio, Lacerda fazia um discurso lambisgoio e laudatório ao golpe militar. Meu tio, sindicalista da cabeça aos pés, ouvia raivoso. Eu sempre gostei do nome Carlos e também para desafiar o tio Walter, gritei: "Viva o Carlos Lacerda!"
Então meu tio correu atrás de mim com um chinelão em punho. O alvo era o meu traseiro. Eu me safei daquela. Neta de tenentista, filha e sobrinha de comunistas, o que eu esperava? Ainda tem gente que pergunta se eu sou comunista. Respondo: só de família. Passadas tantas ideologias debaixo do meu nariz, o único ista de que não abro mão é o de flamenguista. Por enquanto.
Mas tal como a filha do pastor, a filha da cozinheira e a do pedreiro, sempre serei filha de um comunista. Sempre desconfiarei dos bancos e dos patrões. Agora se me perguntassem qual o sistema ideal, eu não titubearia: capitalismo para todos! Sonho que cada habitante da Terra, além de moradia, saúde, educação e de quatro refeições por dia, tenha direito a um iPad.
Ser filha de um comunista me trouxe muitas vantagens. Por exemplo, ter lido na adolescência os melhores escribas do século XIX. A brilhante literatura de Dostoiévski, Tolstói, Gogól, Tchecov. Tudo pela casualidade deles serem russos. Soviéticos, segundo meu pai. E desvantagens: só fui ler Borges e Nelson Rodrigues nos anos da faculdade. Meu pai e meu tio os vetavam por reacionários.
Na Escola de Comunicações e Artes da Usp, em 1977, me tornei ativista da Liberdade e Luta – tendência estudantil monitorada por uma organização trotskista. Entre as tendências, a Liberdade e Luta, Libelu, era a mais aguerrida e determinada no combate à camarilha militar. Porém, o mesmo ódio que dedicava à ditadura, dedicava aos militantes do Partidão – apelido histórico do Partido Comunista Brasileiro.
O PCB, através do meu pai e do meu tio, havia sido na minha casa tão reverenciado quanto é o Papa nas famílias católicas. Nunca me esqueço do dia que meu pai, com uma imensa mágoa, me mostrou um panfleto assinado pela Liberdade e Luta descendo o cassete nos velhos comunistas, acusando todos eles de stalinistas e traidores da classe operária.
Eu até que aguentei firme o embate entre a tradição familiar e a minha descoberta de juventude. Acho que o que eu queria, e ainda quero, era pensar livremente. Não demorei para perceber o sectarismo e autoritarismo dos dirigentes da Liberdade e Luta. Um belo dia, a direção decretou que marihuaneros e delirantes seriam expulsos da tendência estudantil.
Quem me salvou, naquela altura, foi o feminismo. Na época, deliciosamente libertário. Feminismo desprezado tanto pelo Partidão quanto pela Libelu, que insistiam que as reivindicações das mulheres eram blablablá burguês. A filósofa e ativista do movimento negro Sueli Carneiro uma vez me disse uma frase inesquecível: "Entre a esquerda e a direita, eu sou negra".
Daí parafraseei: Entre Josef Stalin e Leon Trotsky, eu sou mulher.
Hoje admiro as vidas de lutas do meu pai e do meu tio, ambos fiéis ao socialismo. Também trago boas lembranças da minha juventude libelu que, ao menos, me fez gostar de rock and roll e de certa irreverência.
fernanda pompeu, escritora e redatora freelancer, colunista do Nota de Rodapé, escreve às quintas a coluna Observatório da Esquina. Ilustração de Carvall, especial para o texto.
quarta-feira, 7 de março de 2012
Você está vulnerável
Sem dúvida estamos vivendo o boom das redes sociais. Provavelmente até a sua avó tem perfil no Facebook e tuita loucamente enquanto você faz um check in no seu tablet ou celular na lanchonete do outro lado da cidade.
Utilizo esses sites para xeretar a vida dos outros, compartilhar fotos, notícias e expressar minha opinião – como muitos fizeram na última eleição para presidente, por exemplo. Quem acompanhou o pleito passado viu uma clara divisão partidária e extremamente belicosa dos usuários da rede. Não perdi “amigos”, mas sei quem são as pessoas que não quero trocar opinião sobre assuntos polêmicos.
Há mais ou menos um ano tenho analisado com mais atenção o tema comunicação e compartilhamento na web. Apesar de muitas manifestações e questionamentos, no começo deste mês entrou em vigor a nova política de privacidade do Google, que unificou todos os produtos da empresa em um só login, recolhendo e reunindo todas as informações possíveis sobre você em todas as páginas de seus mais de 70 produtos.
Tá, e daí? E daí é que você provavelmente não foi perguntado se poderia ser rastreado e ter suas informações reunidas e documentadas pelo Google. Você deve ter visto uma mensagem esquisita na sua caixa postal e quando bateu os olhos não entendeu nada e deletou. Você de 99% das pessoas fizeram exatamente o mesmo. Bom, e agora?
Se você é um usuário comum como eu, provavelmente não sabe que seus cliques já são rastreados e todos os seus acessos, seja no computador ou celular, registrados, monitorados e transformados em ações de marketing.
Explicado agora porque aquele anúncio de um produto que estava pesquisando o preço em outra página, agora está logo ali, ao lado direito, no canto superior da sua tela? E aquela newsletter do site de compra coletiva que passou a receber sem se cadastrar?
Obter dados para medir a audiência de um portal é uma coisa. Outra é analisar suas preferências por meio de seus cliques junto com um monte de informações reais sobre você sem sua autorização consciente.
Não está satisfeito? Na semana passada a revista Info publicou matéria em que diz que o Twitter vendeu dois anos de seu banco de dados para uma empresa de marketing. “A Datasift irá utilizar as informações para ajudar outras a atingir usuários influentes. A medida é mais uma forma de o Twitter gerar receita. Essa é a primeira vez que a prática é noticiada. Tuítes patrocinados, venda de trending topics e de sugestões de usuários a serem seguidos são algumas outras formas usadas pela empresa para gerar receita.”
Enfim, você sabia que poderia virar um produto quando se cadastrou em um desses sites? Eu também não, mas está lá na política de privacidade.
Mas o que realmente incomoda é saber que muitos não percebem que os resultados de busca do Google são totalmente favoráveis aos seus parceiros comerciais, independentemente de serem confiáveis ou não. Do tipo pagou, passou.
Não, não tente denunciar alguma bobagem no Youtube ou até mesmo um site abusivo. Quando te respondem, e o processo é raro e demorado, o papo é o da liberdade de expressão. Ok! Então pode tudo e tudo pode, é isso? Se for assim por que tirar do ar o WikiLeaks e o Megaupload e não fazer nada com o Google, Twitter e Facebook?
Se tiver algum problema mais sério com eles do tipo fui crackeado e estão gastando com o meu cartão, o problema é seu, vai ter que gastar um tempão danado – em vão porque a merda já foi feita –, apagando suas informações, bloqueando seus cartões, e um dinheirão com advogados que, vamos combinar, ainda não entendem muito de internet até porque suas leis não estão claras ou simplesmente não existem para determinados casos.
E cresce o número de perfis falsos, robots, pedófilos, crackers etc. E cresce o número de perfis hackeados por colegas da escola que são usados para bullying. E cresce o número de pessoas incriminadas por crimes que não cometeram. E crescem os posts de gente que acha que pode julgar, ofender, discriminar e falar tudo e qualquer coisa na internet como se o ambiente virtual não contasse na vida real.
E aí, quem é quem nessa história? Quem responde por tudo isso? O que vale e o que não vale?
"A internet é como água: vai achar o seu caminho", disse Eric Schmidt, presidente do conselho de administração do Google. Concordo em parte, já que antes o ideal era ser popular entre os amigos e aparecer nos resultados de pesquisa. Hoje, quanto mais anonimato, melhor.
A mesma frase, no entanto, é bastante cômoda e isenta de qualquer responsabilidade. O que esperar de empresas privadas com IPOs gigantescos administrando, comercializando conteúdo e e formando opinião? #ficaadica
Ligia M. (Sem o sobrenome para não ficar evidente nas pesquisas do Google), designer, especial para o NR.
Utilizo esses sites para xeretar a vida dos outros, compartilhar fotos, notícias e expressar minha opinião – como muitos fizeram na última eleição para presidente, por exemplo. Quem acompanhou o pleito passado viu uma clara divisão partidária e extremamente belicosa dos usuários da rede. Não perdi “amigos”, mas sei quem são as pessoas que não quero trocar opinião sobre assuntos polêmicos.
Há mais ou menos um ano tenho analisado com mais atenção o tema comunicação e compartilhamento na web. Apesar de muitas manifestações e questionamentos, no começo deste mês entrou em vigor a nova política de privacidade do Google, que unificou todos os produtos da empresa em um só login, recolhendo e reunindo todas as informações possíveis sobre você em todas as páginas de seus mais de 70 produtos.
Tá, e daí? E daí é que você provavelmente não foi perguntado se poderia ser rastreado e ter suas informações reunidas e documentadas pelo Google. Você deve ter visto uma mensagem esquisita na sua caixa postal e quando bateu os olhos não entendeu nada e deletou. Você de 99% das pessoas fizeram exatamente o mesmo. Bom, e agora?
Se você é um usuário comum como eu, provavelmente não sabe que seus cliques já são rastreados e todos os seus acessos, seja no computador ou celular, registrados, monitorados e transformados em ações de marketing.
Explicado agora porque aquele anúncio de um produto que estava pesquisando o preço em outra página, agora está logo ali, ao lado direito, no canto superior da sua tela? E aquela newsletter do site de compra coletiva que passou a receber sem se cadastrar?
Obter dados para medir a audiência de um portal é uma coisa. Outra é analisar suas preferências por meio de seus cliques junto com um monte de informações reais sobre você sem sua autorização consciente.
Não está satisfeito? Na semana passada a revista Info publicou matéria em que diz que o Twitter vendeu dois anos de seu banco de dados para uma empresa de marketing. “A Datasift irá utilizar as informações para ajudar outras a atingir usuários influentes. A medida é mais uma forma de o Twitter gerar receita. Essa é a primeira vez que a prática é noticiada. Tuítes patrocinados, venda de trending topics e de sugestões de usuários a serem seguidos são algumas outras formas usadas pela empresa para gerar receita.”
Enfim, você sabia que poderia virar um produto quando se cadastrou em um desses sites? Eu também não, mas está lá na política de privacidade.
Mas o que realmente incomoda é saber que muitos não percebem que os resultados de busca do Google são totalmente favoráveis aos seus parceiros comerciais, independentemente de serem confiáveis ou não. Do tipo pagou, passou.
Não, não tente denunciar alguma bobagem no Youtube ou até mesmo um site abusivo. Quando te respondem, e o processo é raro e demorado, o papo é o da liberdade de expressão. Ok! Então pode tudo e tudo pode, é isso? Se for assim por que tirar do ar o WikiLeaks e o Megaupload e não fazer nada com o Google, Twitter e Facebook?
Se tiver algum problema mais sério com eles do tipo fui crackeado e estão gastando com o meu cartão, o problema é seu, vai ter que gastar um tempão danado – em vão porque a merda já foi feita –, apagando suas informações, bloqueando seus cartões, e um dinheirão com advogados que, vamos combinar, ainda não entendem muito de internet até porque suas leis não estão claras ou simplesmente não existem para determinados casos.
E cresce o número de perfis falsos, robots, pedófilos, crackers etc. E cresce o número de perfis hackeados por colegas da escola que são usados para bullying. E cresce o número de pessoas incriminadas por crimes que não cometeram. E crescem os posts de gente que acha que pode julgar, ofender, discriminar e falar tudo e qualquer coisa na internet como se o ambiente virtual não contasse na vida real.
E aí, quem é quem nessa história? Quem responde por tudo isso? O que vale e o que não vale?
"A internet é como água: vai achar o seu caminho", disse Eric Schmidt, presidente do conselho de administração do Google. Concordo em parte, já que antes o ideal era ser popular entre os amigos e aparecer nos resultados de pesquisa. Hoje, quanto mais anonimato, melhor.
A mesma frase, no entanto, é bastante cômoda e isenta de qualquer responsabilidade. O que esperar de empresas privadas com IPOs gigantescos administrando, comercializando conteúdo e e formando opinião? #ficaadica
Ligia M. (Sem o sobrenome para não ficar evidente nas pesquisas do Google), designer, especial para o NR.
segunda-feira, 5 de março de 2012
É grave, doutoras?
Saudáveis leitores, primeiramente peço desculpas por essa tosse seca que ainda me persegue. A palidez, a voz sem ânimo e a cabeça baixa não são por causa da gripe, mas um sinal do maltrato que sofri e que, se me permitem, passo a relatar.
Pois como os mais próximos já sabem, vivo há cinco meses em terras ibéricas. Tempo no qual, por sorte, não havia necessitado socorro médico. Pois chegou o dia em que precisei. Muito atenciosos, me perguntaram qual era meu problema e disseram que um médico viria a minha casa.
Adverti que eu podia me deslocar até o hospital. Era uma gripe com um pouco de catarro e uma dor bem chata nas costas, mas nada de vida ou morte. Minha argumentação não os convenceu. Um doutor iria até minha casa e eu a arrumei (como pude) para recebê-lo.
Não demorou nada e vi, pela janela do meu quarto, a chegada do meu socorro. A ambulância estacionou em fila dupla e vi, entre incrédulo e contente, descer dela duas médicas. Pensei que no Brasil, quando acontece de uma ambulância parar em frente a um edifício, os vizinhos todos ficam alvoroçados e sabem que em minutos uma maca trará um defunto, um enfartado, quiçá um baleado ou grávida em trabalho de parto.
Abri a porta às duas doutoras da maneira mais amável possível, mas sem saber se deveria cumprimenta-las com um aperto de mão, um par de beijos ou simplesmente uma saudação marcial.
Era de notar na cara de ambas (a mais brava era a dos olhos claros) o incômodo da situação. Não sei o que relataram a elas, mas parecia que esperavam que um familiar, talvez com os olhos lacrimosos, abrisse a porta e as encaminhasse até o leito do enfermo que, com as poucas forças que lhe restava, abriria os olhos e lhes diria: boa tarde, meus anjos.
Pois não, quem abriu a porta da casa foi o próprio (enfermo), que de doente não aparentava nada. Caminhava, dizia palavras que tinham algum sentido e até o braço esticava para cumprimenta-las.
Como um adestradora de cães, a mais brava, com seu sotaque do leste europeu, começou a me dar instruções. A outra médica se colocou de lado, prancheta na mão e cara de desdém.
Pouparei o leitor da descrição da forma como me ordenou que retirasse a camisa, do desprezo como me obrigou a deitar na cama e da forma como simplesmente segurou minha perna esquerda e a dobrou, sem saber que aquele joelho, desde o dia 06 de abril do ano passado, era incapaz de dobrar-se ao 100%.
Pois naquele dia, graças ao atendimento que a europeia do leste me fez, o joelho que havia sido operado fazia sete meses voltou a dobrar por completo (não sem dor, há que matizar).
Passados menos de cinco minutos e alguns procedimentos recebi o diagnóstico: não era nada grave. Enfim, pode ser que elas tivessem razão. Eu estava gripado e as dores nas costas eram apenas uma contratura muscular. Conjunção de um banho quente mais rajada de vento frio.
Mas do jeito em que a situação se pintou parecia que eu havia mentido, que simulara um mal crônico para receber atenção médica. “É que pensei que essa dor podia ser o pulmão”, argumentei já como o réu que será executado e pede inutilmente clemencia.
Foi quando o menosprezo por parte delas atingiu o nível máximo. “Você teria que ter um pulmão enorme para que doesse onde diz que dói. Seria um caso único na medicina”, disse a carrasca número 1. Momento no qual a carrasca número 2, que até então parecia não ter dentes, sorriu.
Tive ainda que esperar que a dupla de torturadoras psicológicas preenchessem um formulário sobre meu caso. Eu ali, sentado na cama do meu quarto, lamentava que minha doença não fosse grave. Se eu morresse amanha de tanto tossir pelo menos essas duas teriam o diploma de medicina cassado, pensei eu.
Sem olhar-me nos olhos, a médica do sorriso sarcástico me entregou uma cópia da ficha que acabara de preencher e me falou que eu deveria comprar uma pomada para aliviar a dor nas costas.
E foi quando veio a bofetada final. “Você tem alguém para te aplicar uma massagem?”. Sim, saudável leitor, ela me perguntou isso. Não, saudável leitor, não era uma pergunta simples que um profissional faz ao paciente. Estava carregada de ironia.
Queria ouvir da minha boca que eu não tinha quem me fizesse uma massagem, que eu era um homem solitário e que qualquer tipo de atenção, ainda que fosse a de uma dupla de médicas sem compaixão, me fazia feliz.
Mantive a calma, perguntei pelo nome da pomada e não respondi à provocação. Tratei de acompanha-las até a saída e, educadamente, desejar-lhes um bom dia.
Quando tudo já parecia terminado, me veio a iluminação. Minha redenção aconteceu aos 47 do segundo tempo, na última bola do jogo. “Por certo, espero não vê-las nunca mais”, disse eu, e com um sorriso no rosto fechei a porta de casa.
Ricardo Viel, jornalista, colunista do Purgatório e do NR, escreve às segundas, direto de Salamanca, Espanha.
Pois como os mais próximos já sabem, vivo há cinco meses em terras ibéricas. Tempo no qual, por sorte, não havia necessitado socorro médico. Pois chegou o dia em que precisei. Muito atenciosos, me perguntaram qual era meu problema e disseram que um médico viria a minha casa.
Adverti que eu podia me deslocar até o hospital. Era uma gripe com um pouco de catarro e uma dor bem chata nas costas, mas nada de vida ou morte. Minha argumentação não os convenceu. Um doutor iria até minha casa e eu a arrumei (como pude) para recebê-lo.
Não demorou nada e vi, pela janela do meu quarto, a chegada do meu socorro. A ambulância estacionou em fila dupla e vi, entre incrédulo e contente, descer dela duas médicas. Pensei que no Brasil, quando acontece de uma ambulância parar em frente a um edifício, os vizinhos todos ficam alvoroçados e sabem que em minutos uma maca trará um defunto, um enfartado, quiçá um baleado ou grávida em trabalho de parto.
Abri a porta às duas doutoras da maneira mais amável possível, mas sem saber se deveria cumprimenta-las com um aperto de mão, um par de beijos ou simplesmente uma saudação marcial.
Era de notar na cara de ambas (a mais brava era a dos olhos claros) o incômodo da situação. Não sei o que relataram a elas, mas parecia que esperavam que um familiar, talvez com os olhos lacrimosos, abrisse a porta e as encaminhasse até o leito do enfermo que, com as poucas forças que lhe restava, abriria os olhos e lhes diria: boa tarde, meus anjos.
Pois não, quem abriu a porta da casa foi o próprio (enfermo), que de doente não aparentava nada. Caminhava, dizia palavras que tinham algum sentido e até o braço esticava para cumprimenta-las.
Como um adestradora de cães, a mais brava, com seu sotaque do leste europeu, começou a me dar instruções. A outra médica se colocou de lado, prancheta na mão e cara de desdém.
Pouparei o leitor da descrição da forma como me ordenou que retirasse a camisa, do desprezo como me obrigou a deitar na cama e da forma como simplesmente segurou minha perna esquerda e a dobrou, sem saber que aquele joelho, desde o dia 06 de abril do ano passado, era incapaz de dobrar-se ao 100%.
Pois naquele dia, graças ao atendimento que a europeia do leste me fez, o joelho que havia sido operado fazia sete meses voltou a dobrar por completo (não sem dor, há que matizar).
Passados menos de cinco minutos e alguns procedimentos recebi o diagnóstico: não era nada grave. Enfim, pode ser que elas tivessem razão. Eu estava gripado e as dores nas costas eram apenas uma contratura muscular. Conjunção de um banho quente mais rajada de vento frio.
Mas do jeito em que a situação se pintou parecia que eu havia mentido, que simulara um mal crônico para receber atenção médica. “É que pensei que essa dor podia ser o pulmão”, argumentei já como o réu que será executado e pede inutilmente clemencia.
Foi quando o menosprezo por parte delas atingiu o nível máximo. “Você teria que ter um pulmão enorme para que doesse onde diz que dói. Seria um caso único na medicina”, disse a carrasca número 1. Momento no qual a carrasca número 2, que até então parecia não ter dentes, sorriu.
Tive ainda que esperar que a dupla de torturadoras psicológicas preenchessem um formulário sobre meu caso. Eu ali, sentado na cama do meu quarto, lamentava que minha doença não fosse grave. Se eu morresse amanha de tanto tossir pelo menos essas duas teriam o diploma de medicina cassado, pensei eu.
Sem olhar-me nos olhos, a médica do sorriso sarcástico me entregou uma cópia da ficha que acabara de preencher e me falou que eu deveria comprar uma pomada para aliviar a dor nas costas.
E foi quando veio a bofetada final. “Você tem alguém para te aplicar uma massagem?”. Sim, saudável leitor, ela me perguntou isso. Não, saudável leitor, não era uma pergunta simples que um profissional faz ao paciente. Estava carregada de ironia.
Queria ouvir da minha boca que eu não tinha quem me fizesse uma massagem, que eu era um homem solitário e que qualquer tipo de atenção, ainda que fosse a de uma dupla de médicas sem compaixão, me fazia feliz.
Mantive a calma, perguntei pelo nome da pomada e não respondi à provocação. Tratei de acompanha-las até a saída e, educadamente, desejar-lhes um bom dia.
Quando tudo já parecia terminado, me veio a iluminação. Minha redenção aconteceu aos 47 do segundo tempo, na última bola do jogo. “Por certo, espero não vê-las nunca mais”, disse eu, e com um sorriso no rosto fechei a porta de casa.
Ricardo Viel, jornalista, colunista do Purgatório e do NR, escreve às segundas, direto de Salamanca, Espanha.
sábado, 3 de março de 2012
Promoção do novo romance de Izaías Almada
Izaías Almada, nosso colunista mensal, vai presentear o leitor do NR com seu novo romance, lançado pela editora Prumo, “Sucursal do Inferno”.
Segundo o autor, "Sucursal do Inferno é um desabafo de alguém que vê aumentar a cada dia que passa a mercantilização da fé, a exploração da ingenuidade das pessoas diante do dia a dia de violência, do medo diante do desconhecido, daquilo que se considera - por vezes - inexplicável. Por trás desse comércio de almas, corre muito dinheiro em nome de uma salvação, que ninguém sabe muito bem o que é. "
São cinco exemplares. Três serão sorteados via sorteie.me do Facebook e dois pelo Twitter no dia 1 de abril. Para participar é simples. Siga os passos:
1 – Siga o NR no Twitter ou curta nossa fanpage no Facebook.
2 – Divulgue a seguinte mensagem no seu Facebook:
Promoção: NR sorteia o novo romance Sucursal do Inferno de Izaías Almada. http://sorteie.me/facebook/compartilhar.php?id=34825
ou a seguinte mensagem no seu Twitter:
#Promoção: NR sorteia o novo romance Sucursal do Inferno de Izaías Almada. http://kingo.to/10Rn
3 – Pronto, agora é torcer para ser um dos cinco ganhadores.
4 – Será permitido apenas um ganhador por perfil. Exemplo, se a mesmo perfil ganhar no twitter e no facebook, só terá direito a um exemplar. Outra coisa: perfis feitos exclusivamente para participar de promoções não serão aceitos.
"Uma sucursal do inferno: sinfonia brasileira contemporânea
E se esse festejado passo da democracia brasileira não passasse de uma transação faustiana, em que a religião do Capital, tendo penetrado todos os poros da sociedade, revivesse as piores criaturas paridas nos porões da ditadura e forjasse a pauta do novo espetáculo Demo? E se, convocados os versos de Dante, Shakespeare, Pessoa, Perrault, dos Evangelhos, permanecêssemos ainda assim em transe alucinógeno, entre os parques Ibirapuera e D. Pedro, nesta São Paulo irreal, por isso mesmo fatal, em que a história de um poder discricionário afirma-se como rito satânico no Paraíso dos Impunes?
Atreva-se, leitor! Adentre logo esta Sucursal do Inferno. Felizmente para nós, cá fora, há ainda portas de saída. Para quem conhece o domínio do ofício literário do ator, diretor, dramaturgo e prosador Izaías Almada, a tensão dramática destas páginas apenas confirmará a trajetória do ficcionista, portadora, sempre, de alta voltagem política. Esta “sinfonia brasileira” poderia ser puro Beethoven, mas está mais para ópera wagneriana sem apelo. Entre otários crentes e vampiros ativos, não haverá mais perdão para a inocência. Os novos barões da fé – ao deus Manon – continuam a delivrar seus monstros. E Brasília lhes dá lastro e segredo. No caminho, tombam todos esses nossos pequenos sonhos de verdade."
Sobre o autor
Izaías Almada, mineiro de Belo Horizonte, escritor, dramaturgo, roteirista é colunista do Nota de Rodapé e autor dos romances A metade arrancada de mim, O medo por trás das janelas, Florão da América e Venezuela, Povo e Forças Armadas e Teatro de Arena – Uma estética da resistência. Publicou ainda dois livros de contos, Memórias emotivas e O vidente da Rua 46. Como ator, trabalhou no Teatro de Arena entre 1965 e 1968.
Segundo o autor, "Sucursal do Inferno é um desabafo de alguém que vê aumentar a cada dia que passa a mercantilização da fé, a exploração da ingenuidade das pessoas diante do dia a dia de violência, do medo diante do desconhecido, daquilo que se considera - por vezes - inexplicável. Por trás desse comércio de almas, corre muito dinheiro em nome de uma salvação, que ninguém sabe muito bem o que é. "
São cinco exemplares. Três serão sorteados via sorteie.me do Facebook e dois pelo Twitter no dia 1 de abril. Para participar é simples. Siga os passos:
1 – Siga o NR no Twitter ou curta nossa fanpage no Facebook.
2 – Divulgue a seguinte mensagem no seu Facebook:
Promoção: NR sorteia o novo romance Sucursal do Inferno de Izaías Almada. http://sorteie.me/facebook/compartilhar.php?id=34825
ou a seguinte mensagem no seu Twitter:
#Promoção: NR sorteia o novo romance Sucursal do Inferno de Izaías Almada. http://kingo.to/10Rn
3 – Pronto, agora é torcer para ser um dos cinco ganhadores.
4 – Será permitido apenas um ganhador por perfil. Exemplo, se a mesmo perfil ganhar no twitter e no facebook, só terá direito a um exemplar. Outra coisa: perfis feitos exclusivamente para participar de promoções não serão aceitos.
"Uma sucursal do inferno: sinfonia brasileira contemporânea
E se esse festejado passo da democracia brasileira não passasse de uma transação faustiana, em que a religião do Capital, tendo penetrado todos os poros da sociedade, revivesse as piores criaturas paridas nos porões da ditadura e forjasse a pauta do novo espetáculo Demo? E se, convocados os versos de Dante, Shakespeare, Pessoa, Perrault, dos Evangelhos, permanecêssemos ainda assim em transe alucinógeno, entre os parques Ibirapuera e D. Pedro, nesta São Paulo irreal, por isso mesmo fatal, em que a história de um poder discricionário afirma-se como rito satânico no Paraíso dos Impunes?
Atreva-se, leitor! Adentre logo esta Sucursal do Inferno. Felizmente para nós, cá fora, há ainda portas de saída. Para quem conhece o domínio do ofício literário do ator, diretor, dramaturgo e prosador Izaías Almada, a tensão dramática destas páginas apenas confirmará a trajetória do ficcionista, portadora, sempre, de alta voltagem política. Esta “sinfonia brasileira” poderia ser puro Beethoven, mas está mais para ópera wagneriana sem apelo. Entre otários crentes e vampiros ativos, não haverá mais perdão para a inocência. Os novos barões da fé – ao deus Manon – continuam a delivrar seus monstros. E Brasília lhes dá lastro e segredo. No caminho, tombam todos esses nossos pequenos sonhos de verdade."
Francisco Foot Hardman
Escritor, ensaísta e crítico literário
Sobre o autor
Izaías Almada, mineiro de Belo Horizonte, escritor, dramaturgo, roteirista é colunista do Nota de Rodapé e autor dos romances A metade arrancada de mim, O medo por trás das janelas, Florão da América e Venezuela, Povo e Forças Armadas e Teatro de Arena – Uma estética da resistência. Publicou ainda dois livros de contos, Memórias emotivas e O vidente da Rua 46. Como ator, trabalhou no Teatro de Arena entre 1965 e 1968.
sexta-feira, 2 de março de 2012
Continente
Quando acabamos o jardim de infância e a escola começou a ficar séria, aprendemos que continente era uma grande extensão de terra, maior que os países, ou a soma de alguns deles. Como as Américas, por exemplo, onde cabe de tudo.
“Recipiente” é o original português para “container”, uma dessas palavrinhas inglesas que há muitos anos prevalecem em nosso cotidiano, contaminado pela língua que se impõe pra nos reafirmar a sensação de que estamos progredindo, sim. Num container também cabe de tudo: soja, computadores, carros, relógios, roupas, milho e sei lá mais o quê.
No território do lado de dentro, onde carros e computadores se misturam com países, rios e montanhas, muitas vezes nosso “continente”, nosso “container” não dá conta da quantidade de itens a ser acomodados, ou da erupção de algum vulcão que ferve, obstinado, ignorando as ordens em contrário, como convém a um vulcão que se preze.
É nesta hora que acontece uma de duas: ou nos viramos sozinhos, mastigando e engolindo a lava, que desce arrancando pedaços, ou temos a sorte, o privilégio, a bênção de ter quem nos contenha, apare a chuva de pedras incandescentes, apague o incêndio e sugira onde colocamos os fardos de algodão e onde as caixas de relógios chineses.
Felizmente, ninguém se ocupa de inventar um neologismo idiota pra definir as pessoas que se dispõem a nos conter – pelo menos, não que eu saiba. Pode ser que exista, em psicologuês... Mas não me interessa, nem quero saber, não me contem. A mim me encanta e me basta que existam esses seres iluminados que, naqueles momentos em que estamos nos desfazendo, nos franqueiam seu amor, sua atenção e seus braços, uma saladinha de atum com torradas e um bom xale.
Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo no NR. Ilustração de Luiz Carlos Bergamasco, especial para o texto.
“Recipiente” é o original português para “container”, uma dessas palavrinhas inglesas que há muitos anos prevalecem em nosso cotidiano, contaminado pela língua que se impõe pra nos reafirmar a sensação de que estamos progredindo, sim. Num container também cabe de tudo: soja, computadores, carros, relógios, roupas, milho e sei lá mais o quê.
No território do lado de dentro, onde carros e computadores se misturam com países, rios e montanhas, muitas vezes nosso “continente”, nosso “container” não dá conta da quantidade de itens a ser acomodados, ou da erupção de algum vulcão que ferve, obstinado, ignorando as ordens em contrário, como convém a um vulcão que se preze.
É nesta hora que acontece uma de duas: ou nos viramos sozinhos, mastigando e engolindo a lava, que desce arrancando pedaços, ou temos a sorte, o privilégio, a bênção de ter quem nos contenha, apare a chuva de pedras incandescentes, apague o incêndio e sugira onde colocamos os fardos de algodão e onde as caixas de relógios chineses.
Felizmente, ninguém se ocupa de inventar um neologismo idiota pra definir as pessoas que se dispõem a nos conter – pelo menos, não que eu saiba. Pode ser que exista, em psicologuês... Mas não me interessa, nem quero saber, não me contem. A mim me encanta e me basta que existam esses seres iluminados que, naqueles momentos em que estamos nos desfazendo, nos franqueiam seu amor, sua atenção e seus braços, uma saladinha de atum com torradas e um bom xale.
Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo no NR. Ilustração de Luiz Carlos Bergamasco, especial para o texto.
quinta-feira, 1 de março de 2012
bye, bye
Em certa década do século XX fui uma estudante de cinema. Para nós, a palavra Kodak era sinônimo de magia. Kodak era igual a rolos de negativos, portanto significava fazer filmes. Latas com a etiqueta amarela eram, na falta de uma metáfora melhor, alimento para almas famintas de realização.
Na escola, havia mais vontades do que metragens de filmes, mais roteiros do que recursos. Os estudantes se dividiam em duas tendências. A primeira, da qual eu fazia parte, sonhava com os filmes de autor. Nossos ídolos eram Jean-Luc Godard (O Acossado), Glauber Rocha (Deus e o Diabo na Terra do Sol), Rogério Sganzerla (O Bandido da Luz Vermelha), Werner Herzog (O Enigma de Kaspar Hauser).
A segunda tendência, hoje majoritária e vitoriosa, sonhava com os filmes de público. Seus ídolos eram todos os que deram certo em Hollywood, isto é, cinema com bilheteria gorda, diretores milionários e Oscar na prateleira. Para além dessa divisão, havia outra mais prosaica: os que preferiam as latas Fujifilm e os devotos da Kodak.
Eu era da turma Kodak. Adorava a historinha da firma nascida em 1888 nos Estados Unidos. O Steve Jobs dela atendia pelo nome de George Eastman. Ele queria tornar a fotografia "tão simples como um lápis". A empresa pegou porque fez algo inovador: "Você aperta o botão, nós fazemos o resto". O resto era revelar o filme e devolver a máquina com um novo rolo dentro. Prontinha para as próximas poses.
Esse processo, com consideráveis mudanças, teve sucesso por mais de um século. A Kodak começou a ser desbancada pela fotografia digital. Leia-se: celulares que fotografam; programas que corrigem sombras, rugas, celulites, barrigas, carecas; computadores que armazenam do primeiro beicinho do bebê ao último suspiro do vovô.
Mas quando eu era uma aluna de cinema não existia experiência digital. Me lembro do cheiro dos filmes nas latas Kodak. Acreditem, um cheio tão inebriante quanto o exalado pela dama-da-noite quando o vento agita suas flores. As latas eram a senha para o excitante comando: câmera! (ouvia-se o barulhinho do filme rodando), luzes! (acendiam-se os refletores), ação! (a cena começava).
Também é divertida a origem do nome da empresa. Contam que o pessoal do marketing queimou as pestanas para encontrar uma palavra pronunciável em qualquer idioma. Chegaram em Kodak.
A partir daí, popularizaram a câmera fotográfica. Ela saiu dos estúdios para a vida doméstica, das mãos de profissionais para dedos diletantes.
Ao ler a recente notícia de que a Kodak está próxima do The End, duas palavrinhas imortalizadas por filmes que ela possibilitou, senti uma lufada de nostalgia no meu cérebro século XX. Voltei à sensação recorrente, desde os meus 40 anos, de ser um disco de vinil num ambiente iTunes.
Tá bom! É só uma empresa. Apenas uma marca como tantas outras navegando célere para a falência. A Kodak vai fazer companhia à Varig – estrela brasileira no céu azul. Companhia ao Bamerindus – onde o vampiro de Curitiba tinha uma poupança. Companhia ao Jornal do Brasil – que se calou depois de 119 anos. E sabe-se lá a quais mais defuntos.
Não precisa me lembrar que isso acontecerá com todas as outras. Um dia a Apple fechará as portas, num outro será a Folha de S. Paulo, mais adiante a Estação Primeira de Mangueira. Sei que toda vez que uma delas fechar, alguém reabrirá o Dom Casmurro, do Machado de Assis, publicado em 1899. Está escrito lá : "Tudo acaba, leitor. É um velho truísmo, a que se pode acrescentar que nem tudo o que dura dura muito tempo." Mas como dói.
fernanda pompeu, escritora e redatora freelancer, colunista do Nota de Rodapé, escreve às quintas a coluna Observatório da Esquina.
Na escola, havia mais vontades do que metragens de filmes, mais roteiros do que recursos. Os estudantes se dividiam em duas tendências. A primeira, da qual eu fazia parte, sonhava com os filmes de autor. Nossos ídolos eram Jean-Luc Godard (O Acossado), Glauber Rocha (Deus e o Diabo na Terra do Sol), Rogério Sganzerla (O Bandido da Luz Vermelha), Werner Herzog (O Enigma de Kaspar Hauser).
A segunda tendência, hoje majoritária e vitoriosa, sonhava com os filmes de público. Seus ídolos eram todos os que deram certo em Hollywood, isto é, cinema com bilheteria gorda, diretores milionários e Oscar na prateleira. Para além dessa divisão, havia outra mais prosaica: os que preferiam as latas Fujifilm e os devotos da Kodak.
Eu era da turma Kodak. Adorava a historinha da firma nascida em 1888 nos Estados Unidos. O Steve Jobs dela atendia pelo nome de George Eastman. Ele queria tornar a fotografia "tão simples como um lápis". A empresa pegou porque fez algo inovador: "Você aperta o botão, nós fazemos o resto". O resto era revelar o filme e devolver a máquina com um novo rolo dentro. Prontinha para as próximas poses.
Esse processo, com consideráveis mudanças, teve sucesso por mais de um século. A Kodak começou a ser desbancada pela fotografia digital. Leia-se: celulares que fotografam; programas que corrigem sombras, rugas, celulites, barrigas, carecas; computadores que armazenam do primeiro beicinho do bebê ao último suspiro do vovô.
Mas quando eu era uma aluna de cinema não existia experiência digital. Me lembro do cheiro dos filmes nas latas Kodak. Acreditem, um cheio tão inebriante quanto o exalado pela dama-da-noite quando o vento agita suas flores. As latas eram a senha para o excitante comando: câmera! (ouvia-se o barulhinho do filme rodando), luzes! (acendiam-se os refletores), ação! (a cena começava).
Também é divertida a origem do nome da empresa. Contam que o pessoal do marketing queimou as pestanas para encontrar uma palavra pronunciável em qualquer idioma. Chegaram em Kodak.
A partir daí, popularizaram a câmera fotográfica. Ela saiu dos estúdios para a vida doméstica, das mãos de profissionais para dedos diletantes.
Ao ler a recente notícia de que a Kodak está próxima do The End, duas palavrinhas imortalizadas por filmes que ela possibilitou, senti uma lufada de nostalgia no meu cérebro século XX. Voltei à sensação recorrente, desde os meus 40 anos, de ser um disco de vinil num ambiente iTunes.
Tá bom! É só uma empresa. Apenas uma marca como tantas outras navegando célere para a falência. A Kodak vai fazer companhia à Varig – estrela brasileira no céu azul. Companhia ao Bamerindus – onde o vampiro de Curitiba tinha uma poupança. Companhia ao Jornal do Brasil – que se calou depois de 119 anos. E sabe-se lá a quais mais defuntos.
Não precisa me lembrar que isso acontecerá com todas as outras. Um dia a Apple fechará as portas, num outro será a Folha de S. Paulo, mais adiante a Estação Primeira de Mangueira. Sei que toda vez que uma delas fechar, alguém reabrirá o Dom Casmurro, do Machado de Assis, publicado em 1899. Está escrito lá : "Tudo acaba, leitor. É um velho truísmo, a que se pode acrescentar que nem tudo o que dura dura muito tempo." Mas como dói.
fernanda pompeu, escritora e redatora freelancer, colunista do Nota de Rodapé, escreve às quintas a coluna Observatório da Esquina.
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