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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Loucos



por Carlos Conte*

Estou cansado de dizer que os malucos foram os reformadores do mundo. [...] São eles os heróis; são eles os reformadores; são eles os iludidos; são eles que trazem as grandes ideias [...].

Nunca foram os homens de bom senso, os honestos burgueses ali da esquina ou das secretárias chiques que fizeram as grandes reformas do mundo.
Todas elas têm sido feitas por homens, e, às vezes mesmo mulheres, tidos por doidos.
(Lima Barreto, “Elogio da morte”, Marginália, 19-10-1918)

A loucura anuncia verdades insuportáveis.
(Antonin Artaud)

Em vez da histeria de todo o mundo, prefiro falar dos loucos da minha rua. Aos distúrbios do mercado mundial, à crise política que não tem fim, aos abalos sísmicos noticiados diariamente, a essas efemérides bandidas que vivem nos atormentando nesta cidade doente, nesta crônica prefiro evocar os loucos que sobrevivem na minha memória.

Os loucos dos meus sonhos infantis. Outro dia mesmo era o Teresinha que me atormentava, com sua camisa regata, seu shorts curto, suas pernas extremamente longas e finas e extremamente trançadas, quando se sentava falando sozinho num banco da praça central da cidade de Lins. Outro dia era o Teresinha, com seu rosto desesperado e suas pernas inquietas, que torturava o meu sono. Há pesadelos antigos. Será que um dia me livrarei da sombra do Teresinha?

Que foi feito de você, Cadão, o louco da minha primeira infância? A média de idade da turma da rua não passava de dez anos, Cadão já tinha 18. Falasse mal do Corinthians, o bicho esquentava, mandava tomar no cu e tudo mais. E nisso, confesso, sou igualzinho a ele. Cadão chegava com seu rádio, conversava, jogava bola, participava das brincadeiras; tudo normal. Mas ainda assim era o louco da rua; que vai fazer? Tudo ia bem até que, sem motivo, descontrolava-se, e aí só a mãe pra lhe convencer a não meter a mão na cara de um. Dava pena vê-lo retornar a casa chorando, cabisbaixo, jurando pra mãe que não tinha sido ele. E na maior parte das vezes não tinha acontecido nada mesmo; surtava, pronto! A troco de nada, encrencava com quem estivesse mais perto. Da última vez em que deram notícias suas, disseram que o Cadão tinha sido pego se masturbando no portão da casa de uma menina gostosa da rua. Que perigo! Não se falava de outra coisa na Ipojuca. Por onde você anda fazendo suas loucuras, Cadão?

E você, Moedinha, será que morreu? Quando eu era pequeno, Moedinha já era velho. Não tem lapeano dos lados da Ipojuca, Siciliano, Romana, Bela Aliança que não o conheça. Imaginem um típico corcunda de histórias infantis... Calvo, barrigudo, passava todos os dias na minha rua, repetindo a ladainha de um tal padre que tinha dado o cu. Era sua obsessão. Não sei se sustentado por delírios ou por fatos verdadeiros, isso nunca vou saber, ele afirmava conhecer um padre que tinha dado a bunda na sacristia. O padre deu a bunda na sacristia! Se a molecada ia lhe encher a paciência, lá ia ele outra vez falar do rabo do padre, e isso bastava para o nosso divertimento. Mas tinha quem se incomodasse com ele: nossos pais. Não se sabe por que, o Moedinha tinha criado o hábito de roubar o jornal dos outros logo pela manhã. Para isso, carregava consigo um pedaço longo de vara com o qual arrastava os jornais pelo portão até o alcance de suas mãos. Era se demorar um pouco mais que o habitual para apanhar o periódico de manhã para o velho Moedinha entrar em ação. “Volta aqui, Moedinha, seu filho da puta!”. E lá ia ele, rapidinho, curvado sobre sua pança, repetindo para sempre a história do padre pederasta.

Atualmente tem o vizinho da padaria Natalina, aonde vou comprar pão. Mas, diferente dos outros, este vive encarcerado. Devem esconder a chave do portão com medo de que ele fuja. Mas isso não o impede de fazer suas loucuras publicamente, já que o portão, feito de barras de ferro, permite comunicação fácil entre a casa e a rua. Com o fuço metido entre as barras de ferro, ele lança seu urro com uma potência impressionante, fazendo-o ecoar longe, até os ouvidos das estudantes, dos clientes da padaria, dos entregadores de marmita, dos funcionários das oficinas, dos idosos e inclusive dos seus cães, que têm a audição muito mais aguçada que a nossa, não é de hoje que a Lapa está transbordando de cães. Ele grita. Mas alguém lhe dá atenção? Afinal, é o louco da rua. Só a molecada se mete com ele – sempre a molecada!, que passa tirando sarro, fazendo troça – e não tem como segurar o riso ao vê-lo se esmagar no portão, projetar seus dentes pra fora da grade, tentando responder às provocações. Mas os moleques passam, as tardes passam, e o louco da Rua Sepetiba vai continuar anunciando aos berros a verdade universal: “O que foi? Vocês não sabem? Ah, vocês não sabem... Eu sei de tudo! Eu sei de tudo!...”. Mas ninguém se interessa por suas verdades.


* Carlos Conte, sociólogo e cronista, mantém a coluna mensal Casa de Loucos, uma homenagem aos mestres João Antônio e Lima Barreto. Ilustração: foto da escultura "Boy" do artista australiano Ron Mueck.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

O samba da nossa terra


por André Carvalho   ilustração de Kelvin Koubik


Acontece que ele era baiano. Da Bahia, da praia de Itapuã, de Maracangalha, da lagoa escura do Abaeté, da ladeira do Bonfim, dos balangandãs e do samba que quando se canta todo mundo bole. Dorival Caymmi, que, a despeito do grande talento com tintas e pincéis – era um exímio pintor –, entrou para história da cultura brasileira como um dos mais geniais compositores do século XX. Criador de uma obra única, sem antecedentes nem sucessores, cantou, tocou – com seu violão – e registou, para a eternidade, o cancioneiro da Bahia.

Suas músicas são atemporais. Verdadeiras pérolas, que parecem brotadas da terra, ou trazidas à terra pelo sopro dos ventos que conduzem as embarcações no mar. Expressões divinas, lapidadas pela paciência dolente de um ourives das melodias e palavras, porta-voz de um lugar, uma época, um viver, que só a Bahia tem.

Caymmi observava a vida pelas janelas, tinha a sensibilidade para criar, sem pressa, em forma de música, cenas cotidianas que o cativavam – e compunha letra e melodia, de uma vez, sem necessidade do acompanhamento do violão. Demorava anos, às vezes décadas, para terminar as composições. Quando deixou a Bahia, e se mudou para o Rio de Janeiro, levou um caderno cheio de músicas iniciadas, que foram concluídas sob o sopro de outros mares, das águas da Guanabara.

Tinha por convicção que a verdadeira música popular era aquela feita para os garis, os pedreiros, as lavadeiras e os pescadores cantarem. Seu sonho era criar canções que se incorporassem ao imaginário, ao folclore popular dos brasileiros. Considerando que a expressão “quem não gosta de samba, bom sujeito não é, é ruim da cabeça ou doente do pé” virou ditado popular, e que suas canções praieiras se incorporam ao cancioneiro do povo brasileiro, pode se dizer que Caymmi alcançou seu objetivo.

Além das canções praieiras, que distinguem o compositor de todos os outros criadores de melodias e versos da história da música popular brasileira, a obra caymmiana possui outras três vertentes: os temas baseados no folclore, os sambas “sacudidos, corridinhos, mexidinhos” (como ele os definia)  – influenciados pelo samba de roda local –, e os sambas-canções, urbanos, cariocas.

Suas influências são os sons que vinham das ruas soteropolitanas, a nascente música popular – que tinha em Sinhô, nos anos 20, seu máximo expoente –, além de compositores como Debussy, Fauré, Mozart, Bach e Gershwin. Atento às expressões do folclore, nutriu-se também da literatura de Drummond, Neruda, Bandeira e daquele que viria a ser um de seus grandes amigos, Jorge Amado.

grandes amigos: Jorge Amado e Caymmi
Desse balaio de influências e vivências, o que o marcou, de forma indelével, foi o mar. De fato, em sua obra, são muito celebradas as canções praieiras, clássicos absolutos de nossa música. Composições como ”O mar”, “É doce morrer no mar”, “Quem vem pra beira do mar”, “A jangada voltou só” e “Saudade de Itapoã” são sempre lembradas quando falamos de Caymmi. Seus sambas, no entanto, merecem uma análise à parte. Influenciados pelo samba de roda, vertente baiana do gênero que se espalhou pelo Brasil e ganhou cores particulares em cada pedaço de nosso país, Caymmi criou um samba só dele. Sacudido. Corridinho. Mexidinho.

“Quando se canta,
todo mundo bole”


Dorival Caymmi brinca com as palavras, encaixando-as nas melodias de forma buliçosa, dando um andamento “corridinho” aos sambas que fez. “Quando você se requebrar, caia por cima de mim, caia por cima de mim, caia por cima de mim”. Diferente do uso constante da síncope, que caracteriza o samba carioca, o samba baiano, que o compositor se nutriu, é o samba de mote e glosa, com estribilhos fortes, que pedem resposta do côro. “Lá tem vatapá. Então vá! Lá tem caruru. Então vá! Lá tem munguzá. Então vá! Se quiser sambar. Então vá!”

Quando chegou a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, em 1938, Caymmi já havia desenvolvido muitos de seus sambas. Chegou para fazer história, ingressando, com destaque, na Era de Ouro da música brasileira, iniciada em 1929 e que perduraria até 1945. Trouxe, de Salvador, um violão embrulhado, escondido – não queria se passar por malandro (naquela época, era crime de vadiagem tocar violão pelas calçadas da então Capital Federal).

Mas, em seu quarto de pensão, primeiro lar em terras cariocas, longe de tudo e de todos, seguia criando melodias. Fazia seus acordes dissonantes, que gostava de criar, com os sons que, segundo ele, lembravam os toques de berimbau das ruas da Bahia de São Salvador. Não demoraria muito, entretanto, para entrar no meio artístico. E a entrada não poderia ter sido melhor: com o sucesso estrondoso de “O que é que a baiana tem?”, que ganhou o Brasil (e depois, os Estados Unidos) na voz de Carmen Miranda. Um detalhe importante: a partir daí, Carmen não abandonaria mais os balangandãs, o torço de seda, os brincos de ouro, o pano da Costa, a saia engomada e as sandálias enfeitadas.

Cantando suas próprias canções, originais na estética e no conteúdo, e dispensando orquestras e conjuntos regionais, valendo-se apenas de seu violão, o compositor baiano seguia criando, sem pressa e com a paciência que sempre o acompanhou, novas peças. Muitos sambas “sacudidos” vieram, quase sempre lembrando – na letra – o requebrar, o balançar, o remelexo, o bolir das baianas, que seguiam presentes em seu imaginário. Do requebrado da nega, da baiana, da moreninha da sandália do pompom grená, surgiram clássicos. Este requebrar, presente nas letras, também são sentidos nas melodias “corridinhas”.

“É no mexido, é no descanso, é no balanço
É no jeitinho requebrado que essa nega tem
Que todo mundo fica enfeitiçado
E atrás do dengo dessa nega todo mundo vem”
(O dengo que a nega tem) 
“Quando você se requebrar caia por cima de mim”
(O que é que a baiana tem)
“Acontece que eu sou baiano, acontece que ela não é
Mas, tem um requebrado pro lado
Minha Nossa Senhora
Meu Senhor São José
Tem um requebrado pro lado
Minha Nossa Senhora
E ninguém sabe o que é”
(Acontece que eu sou baiano)
“Requebre que eu dou um doce
Requebre que eu quero ver
Requebre, meu bem, que eu trouxe
Um chinelo pra você, ai
Pra você requebrar
Moreninha da sandália do pompom grená”
(Requebre que eu dou um doce)

Mexer as cadeiras, bolir, sambar. Quem escuta os sambas de Caymmi, não consegue ficar parado.

"Ela mexe com as cadeiras pra cá
Ela mexe com as cadeiras pra lá
Ele mexe com o juízo

Do homem que vai trabalhar"
(A vizinha do lado)

“Samba da minha terra deixa a gente mole
Quando se canta todo mundo bole
Quando se canta todo mundo bole”
(O samba da minha terra)

“Não vou porque não posso resistir à tentação
Se ela sambar, eu vou sofrer
Esse diabo sambando é mais mulher
E se eu deixar ela faz o que bem quer”
(Lá vem a baiana)

Há, ainda, outras páginas de ouro do livro do samba brasileiro escritos pelas mãos do genial compositor baiano, como “O vestido de bolero”, “Maracangalha”, “Vatapá”, “365 igrejas”, “Eu não tenho onde morar” e “Você já foi a Bahia?”

Caymmi é mar, areia, vento e embarcações. É Itapuã, Maracangalha, Bonfim e Abaeté. É Bahia. Caymmi é folclore brasileiro. É Copacabana. É violão. É Rio de janeiro. É Brasil. Caymmi também é samba. Sacudido, corridinho e mexidinho. Samba da nossa terra.

Escute os sambas de Caymmi:

 


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André Carvalho, jornalista, mantém a coluna mensal Batucando, sobre samba. Ilustração de Kelvin Koubik, colunista do NR, artista visual, grafiteiro e músico de Porto Alegre

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Horizonte


por Ricardo Sangiovanni*

Se acaso sentires teu cérebro assim meio fritado; se acaso notares que, infeliz e fortuitamente, desperdiçaste em tolices outras a cota toda de tutano da semana; pois não te afligirás, amigo escriba, amigo trabalhador, amigo-irmão das galés.

Não te desesperarás: apenas e simplesmente tomarás pela mão tua companheira ou companheiro, e escaparás da casa, fugirás da cidade, embarcarás no encalço da praia mais amena que conheceres (ou de praia desconhecida, a decisão será tua).

Olvidarás o barulho dos carros e bares, te esquivarás de pesares, de pensares, de passares. Abandonarás ao mar azul teu olhar anuviado, beberás uma cerveja, saciarás a sanidade.

E então enxergarás, quiçá por primeira vez, que a linha do horizonte, de ponta a ponta, não é, jamais terá sido, uma reta. Cuidado, pois não poderás mais voltar atrás, dileto amigo: terás descoberto que a linha do horizonte tem ligeira – tem quase imperceptível – curvatura.

*Ricardo Sangiovanni, jornalista, coordena o blog O Purgatório e mantém no NR a coluna Mistério do Planeta. Escreve de Salvador.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

O partido de Marina Silva em oito (curtos) parágrafos


por Moriti Neto*

Não é fácil compreender a essência das propostas do recém-anunciado Rede de Sustentabilidade. O “partido que não é partido”, da ex-senadora Marina Silva, dona de quase 20 milhões de votos nas últimas eleições para a presidência da República, é atravessado por flacidez argumentativa.

Durante o último Roda Viva, da TV Cultura, na segunda-feira, dia 18, em que este colunista do NR esteve presente na bancada de tuiteiros, a nova querida da mídia tradicional mostrou que, além da busca por uma agremiação, tenta encaixar um discurso de pura espuma.

Discurso, aliás, que ficou ainda mais na superfície com a ausência do debate sobre a visão de Marina a respeito dos direitos civis e a hipócrita ideia de plebiscitar – caso seja eleita presidente – questões como descriminalização do aborto, da maconha, e reconhecimento do casamento gay, sabendo antecipadamente que elas sairiam derrotadas pelo conservadorismo da maioria. Isso, sem mencionar a postura a favor do ensino religioso na escola pública.

Alguns conceitos encerrados em frases como “nossa Rede vem para trazer protagonismo aos diversos setores da sociedade, algo que as siglas atuais não atendem” e “não somos nem de esquerda nem de direita, estamos a frente, somos pela sustentabilidade”, soam rasos vindo de alguém com a bagagem intelectual e política de Marina.

Sobre protagonismo e sustentabilidade, são muito mais slogans de campanha do que propriamente propostas. Como falar em formação de protagonismo político sem clareza de quem é a base social do tal Rede? Aliás, a líder do projeto chega, de forma generalizante, a afirmar que o formato da sigla permitiria que empresários e trabalhadores, entre outras categorias de atores pouco claras, lutem por uma causa. Daí entra em cena a ideia simplista de sustentabilidade. Seria ela a linha condutora, a causa comum entre classes distintas. De novo, o palavrório aponta para um conceito de rede capaz de envolver diversos grupos em torno da defesa do desenvolvimento sustentável. Porém, o que é sustentabilidade para o pobre? E para o rico? Como encara a ideia um megaempresário do agronegócio? E um índio?

Nesse raciocínio, se apresenta a parte que julgo mais preocupante por trás de seu discurso e dos “sonháticos da nova política”: é que jogar na vala comum as definições de esquerda e direita, como se a responsabilidade sobre alianças que buscam a governabilidade fossem apenas opções partidárias, enfraquece o debate necessário quanto a validade do nosso sistema de democracia representativa, construído pela e para a elite, gerador de grandes desequilíbrios na representatividade proporcional da sociedade.

O argumento de nem esquerda nem direita esvazia o debate, desideologiza, e deveria causar arrepios em quem se diz progressista. Nos anos 1990, a estratégia de radicalização da receita neoliberal passava justamente por colocar a ideologia a escanteio e reduzir as disputas políticas a critérios de avaliação dos “melhores gerentes”. Foi um momento de pobreza intelectual que paralisou movimentos sociais e diminuiu espaços para conquistas populares.

Com um emaranhado de frases de efeito, como “quero democratizar a democracia” (???), Marina Silva, até agora, diz mais do mesmo conteúdo em nova embalagem. E o pior: o tom de que nenhum partido existente serve à construção de seus projetos e que o Rede de Sustentabilidade é o paraíso dos puros de coração, a arremessa ao salvacionismo, que serve, historicamente, aos interesses de grupos reacionários.

*Moriti Neto, jornalista, mantém a coluna mensal Escarafunchar. Foto: Pedro Ladeira/AFP

A Copa de Nações Africanas e a crônica esportiva tupiniquim



por Cidinha da Silva*

Começa o jogo e recomeçam os comentários batidos sobre a força e os músculos proeminentes dos jogadores africanos. Se o narrador acrescentasse o fato de que a maioria deles jogou futebol amador por tempo considerável, que compatibilizou trabalho braçal, em muitos casos desde a infância, com o sonho de serem astros do futebol, talvez o telespectador pudesse contextualizar tanta explosão muscular e baixo percentual de comida, ops, de gordura.

O narrador da final inédita entre Nigéria e Burkina Faso é negro. É provável que sua escalação tenha sido um espasmo politicamente correto da emissora, assim como fazem na cobertura estatal do carnaval baiano, ao desenterrar jornalistas negros ou mais melanizados de todos os lugares possíveis, para dar a impressão de que foram visíveis desde sempre. É um profissional negro, daqueles negros que inoculam diariamente a diluição da negrura na própria corrente sanguínea, na aflição de serem engolidos pelo racismo cordial. Ficam tão viciados na poção mágica que, entorpecidos frente ao poder de comunicação direta com a massa, querem passar como brancos. Brancos não são, mas é como se negros não fossem.

Podia ter caprichado na pesquisa irmão, como vocês fazem quando se trata de um país desconhecido do Leste europeu. É tanta informação que depois da transmissão esportiva a gente sai expert em História, geopolítica, economia e cultura do país focalizado. É justo, muito justo, é justíssimo! Mas os países africanos também merecem carinho.  Ah, mas quem faz a pesquisa é a produção... Em que pese o microfone estar em sua mão, não é mano?

Seria de bom alvitre que os telespectadores tivessem elementos para compreender porque os africanos são tão coloridos, como vocês gostam de dizer. O amarelo, o verde, o preto e o vermelho, presentes em várias bandeiras de países africanos (e nas roupas da torcida) são as cores do pan-africanismo, da crença na unidade política de África frente ao colonizador branco-europeu. Ideário de luta de Du Bois, Marcus Garvey, Abdias Nascimento e Bob Marley na Diáspora Africana, Kwame Nkrumah, em África. One people! One Love! Broda!

O cinema, sim, o cinema tem grande importância cultural e econômica na vida de Nigéria e Burkina Faso, países da África do Oeste, finalistas da Copa de Nações Africanas. Ouagadougou, capital de Burkina, abriga um importante festival de cinema, o FESPACO, no qual cresce a participação de cineastas afro-brasileiros a cada edição. Na Nigéria, a produção cinematográfica anual supera a de Hollywood, cujo nome serviu de inspiração para o pólo africano (Nollywood), a exemplo do Bollywood indiano. A ordem mundial de produtores de cinema é a seguinte, só para firmar: Índia em primeiro (Bollywood), EUA em segundo (Hollywood) e Nigéria em terceiro (Nollywood).

Simples, não, produção? Vocês poderiam ainda esmiuçar o tema e mostrar que a indústria cinematográfica da Nigéria desenvolveu-se como alternativa à falta de salas de cinema. É um mercado predominante de vídeos para serem assistidos em casa, passíveis de aquisição nos mais diversos pontos comerciais das cidades e lugarejos. Pode ser também que isso esteja em alguma medida relacionado com o resultado das guerras que tanto destaque merecem nas transmissões de vocês, cabe a pesquisa.
Participantes do III Encontro de Cineastas da África
e da Diáspora.
Burkina Faso (Foto: Joel Zito Araújo)

Ah... ainda sobre a Nigéria, é de lá que vem uma cultura enraizada no Brasil chamada I-o-ru-bá? Já ouviram falar, não é? Aquela tradição presente nos rituais de candomblé ridicularizados pela mídia em geral, pelos programas humorísticos etc. Da Nigéria foram retirados milhares de pessoas, escravizadas no Brasil e aqui reinventaram a cultura iorubana possível.

Quando se trata de Portugal e Brasil em competições esportivas, vocês gostam de chamá-los de países co-irmãos. Nos casos de Nigéria, Angola, Moçambique, Benin, podem chamar de mãe e filho que não será exagero. Captou produção?

Produção, agora, uma curiosidade sobre o camelo, animal muito utilizado no transporte de pessoas e coisas, ainda hoje, em Burkina. Embora já existisse no Egito antigo, o camelo passou a ser usado para a circulação de pessoas e mercadorias no deserto, a partir do século IV da nossa era, dinamizando a economia. Este simpático animal, que dizem se alimentar até de pedras, dada sua resistência, foi grande impulsor da vitalidade do comércio de curta, média e longa distância dentro do continente africano. Esse comércio permitia que os grupos humanos tivessem acesso a coisas que não produziam diretamente, bem como a novas idéias e comportamentos.

Existem outros animais em África além das zebras, girafas, crocodilos e hipopótamos fetichizados por vocês. Existe, por exemplo, o utilíssimo camelo, grande protagonista na comunicação entre a floresta e o deserto, as populações costeiras e ribeirinhas e as savanas. Sacou produção?


* escritora, Cidinha da Silva mantém a coluna quinzenal Dublê de Ogum. Imagem: dancarinos se apresentam durante a cerimonia realizada antes da final da Copa das Nações.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Os que ficam


por Júnia Puglia ilustração Fernando Vianna*

“Comemore-se muito”, digo com frequência aos aniversariantes. É a maneira que encontrei de expressar meu desejo de que a pessoa de fato sinta a celebração, mesmo que esta não seja das mais exuberantes. Afinal, já sabemos todos, viver é uma tarefa bem complexa.

Isto me faz lembrar uma conhecida cronista, que, em suas memórias, relata seu inusitado aniversário de setenta anos, comemorado em total e intencional solidão, com uma taça de champanhe e uma plenitude arrasadora. É preciso muita competência para viver plenamente, em qualquer idade. Sabedoria é essencial, com um pouco de sorte e um tanto de oportunidades bem aproveitadas. Mas longe de mim formular receitas, quem dera eu as tivesse para mim mesma.

Alguns anos atrás, eu estava em Montevidéu, no inverno. Num dia de folga, e sem poder zanzar pela cidade devido ao frio danado e à chuva incessante, entrei numa livraria próxima ao hotel e comprei um livro, de forma quase aleatória. Jogada numa poltrona e enrolada num cobertor, passei horas de intenso prazer, lendo e pensando na vida, até que uma citação do poeta argentino Antonio Porchia pulou do papel: “só envelhecem os anos que ficam conosco e não os que passam”. Naquela mesma noite, amigos queridos me levaram a um sarau de poesia, num daqueles incríveis bares montevideanos que fazem a gente se sentir em 1950. Esse dia ficou aqui, envelhecendo comigo, junto com outros de diferentes naipes.

Acabei formulando uma versão personalizada da reflexão de Porchia, porque cheguei à conclusão de que só me interessam os anos que ficam, não os que passam. Todos os dias, o espelho me fala dos que passam, e o coração, dos que ficam. Os que passam, levam consigo sua porção de energia, agilidade física, memória (vai pra onde, caramba?), frescor, certezas, ressentimentos, dores diversas, e os que ficam me devolvem um pouco de tudo isto, misturado com serenidade, maturidade, ironia e uma crescente disposição para rir de mim mesma e das minhas tolices. E cada dia que passa, me levo menos a sério.


* Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto 

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

O avô da história

por fernanda pompeu*

A queixa é antiga. A base se esfola, carrega o piano, beira a exaustão. Na hora do crédito e de virar tinta impressa nos livros, a massa se evapora. Se perpetuam os cabeças, os líderes, os abastados, os poderosos.

Qual era o nome do cozinheiro que alimentou Pero Vaz de Caminha enquanto ele se divertia descrevendo o Brasil para o Rei de Portugal? Qual o nome do segurança do Zumbi de Palmares que evitou que o líder quilombola fosse capturado em várias ocasiões?

Na música, costuma-se dar crédito ao segundo violino. O cinema nacional credita inclusive os motoristas. Mas os compêndios de história e os poderes padecem de uma amnésia severa.

Grupos se reúnem, organizam fóruns, trabalham muitas vezes gratuitamente, queimam pestanas, gastam salivas, põem a cara para bater. Transformam a pequena iniciativa em uma política pública. Então lá chega o governo (de qualquer partido) e se apropria do feito.

Talvez esse hábito de ressaltar seis e esconder seiscentos seja até anterior aos portugueses - que a gente adora culpar pelo ruim em nós. Talvez tenha a ver com os caciques indígenas. Ou, diriam os céticos, seja inerente ao ser humano.

Mas será? O que vemos hoje na internet é um movimento de aparições. Uma tremenda atividade de comentar, completar, discordar. Usando uma imagem gasta - mas nem por isso fraca - parece um rio pulando do leito, tomando as margens.

Outro dia, escrevi uma crônica na qual eu citava que havia estudado no Instituto La-Fayette, no Rio. Essa escola ocupava um casarão que tinha sido uma das residências do Duque de Caxias.

Eu lamentava que o casarão tivesse vindo abaixo para dar lugar a um supermercado sem nenhuma personalidade arquitetônica. Pois um leitor comentou que não se importava. Ele contou que a casa do avô dele também tinha sido derrubada. E ninguém, além dele, havia protestado.

Isso me fez pensar que ele comparava o avô dele ao Duque de Caxias. O comentarista igualava em importância um anônimo ao general da guerra Paraguai-Brasil. Um casarão histórico à casinha do avozinho.

Porém o comentário desse leitorweb não saiu da minha cabeça. Ainda está dando voltas, indo do hemisfério esquerdo para o direito. Pergunto-me: Será que estamos na boquinha de ver surgir uma nova maneira de encarar os donos da história?

Seja o que for. Sinto um cheiro de chuva no ar. Um temporal redentor? Pois o mundo é como ele é. Mas é também como o pensamos. Toda lógica social é datada. Tudo que é datado tem prazo de validade.

*fernanda pompeu, webcronista do Yahoo e do Nota de Rodapé, escreve às quintas.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Memórias impregnadas


por Alexandre Luzzi*

Pode não parecer, mas nutrição e economia são dois assuntos muito comuns entre os profissionais da saúde e o público em geral. É que o ato de comer passou a ser tratado como um índice econômico, com taxa adequada para tudo, seja com medida certa ou percentual a ser alcançado. Não é à toa que, recentemente, um dos programas de maior audiência da televisão aos domingos exibiu um jogador famoso aumentando sua conta bancária na mesma proporção em que perdia calorias.

Sendo o corpo, obviamente, um dos seus alvos, essa produção de imagens ideais e a oferta excessiva de produtos vinculados ao prazer e a felicidade são mecanismos que se contrapõem dando as nuances perversas de nossa sociedade mercadológica que insiste em transformar tudo em espetáculo e produto de consumo.

Nesse sentido a alimentação se torna um processo pragmático e mecanizado, em que seguimos as orientações dos especialistas e pronto. Admito: minhas experiências pessoais sempre contradizem os especialistas! Explico: cresci ao redor de uma cozinha ouvindo barulhos de panelas, pratos e o som do chiado da panela de pressão. Recordo-me do cheiro dos alimentos e da movimentação de minha mãe, sempre apressada, como se todo tempo do mundo nunca fosse o suficiente para as atividades da manhã.

Em casa, para cada dia da semana havia um cheiro específico. Às segundas tinham cheiro de legumes refogado, às terças cheiravam a arroz refogadinho. E cheiro de feijão no fogo e molho de macarrão eram às quintas e domingos. Quando o pra lá e pra cá de minha mãe ficava mais apressado e aflito era sinal de que eu tinha de ir para a escola.

Penso que toda boa cozinheira é uma grande mestra do tempo. Aprendi isso ao fazer alguns pratos em que a receita determina que se deixe um tempo para se processar isso ou aquilo. Nunca deu certo. Aprendi que o tempo de se processar um alimento é o tempo da intuição e não o da receita. Meu prato favorito é uma boa macarronada. A massa italiana me remete a um tempo mais devagar, mais contemplativo, ao tempo do domingo, um dia paradoxal, que começa lento e acelera ao final da tarde.

Dizem que o tempo existe e é algo em si mesmo. No entanto, todas essas experiências me revelam que o tempo é algo dentro da gente e que anda depressa ou não e de acordo com a qualidade das experiências do nosso dia a dia.

É cultural: em uma família italiana domingo é dia de reunião à mesa. Avós, tios, primos, pais, irmãos. Fala-se alto e se conversa sobre tudo: de futebol e política a trabalho e família. Tudo muito bem temperado pelo cheiro do tradicional molho de macarrão. O tempo do processamento do molho e o tempo do corpo é o casamento perfeito. É incrível. Existe uma sincronia entre a prontidão do molho e o pico da nossa fome.

“Uma boa macarronada espera-se sentado à mesa”, dizia minha bisavó, Maria Miranda Carillo (1890 – 1975). A conheci pelas fotos e, principalmente, por meio de um mosaico de representações transmitido pelas pessoas que conviveram com ela e com quem tive o privilégio de conhecer e conversar. Entre elas, duas muito especiais, minha avó Yolanda Carillo (1930 -2013) e meu tio-avô João Carillo.

Nessas reuniões é que incorporei alimentos para o corpo e para a alma. O alimento para a alma veio dos valores, do diálogo, dos gestos, dos olhares, das trocas afetivas e de todas as histórias que ouvi ao crescer. Tudo isso vem marcado em um ritmo emocional em meu corpo. Trago todas essas memórias impregnadas em mim. É esse ritmo emocional que hoje forma meu caráter e minha personalidade, além disso, é esse ritmo que me faz habitar um passado que insiste em se fazer presente e também a projetar um futuro que jamais excluirá tudo o que vivi e aprendi com as pessoas que amo.

Com esse pequeno relato me dou conta de que a comida nos vincula ao outro e nos dá uma história; toda alimentação é um grande processo afetivo antes de tudo. Mudar um cardápio não pode ser tratado como um processo mecânico desvinculado da maneira emocional de ser o que se é. Não significa que não devemos mudar hábitos, mas todo o processo de mudança deve considerar a subjetividade de quem se propõe ao desafio.

Essa crônica dedico a todos os considerados “mais velhos” com quem convivi: meus tios, avós e pais, principalmente. Eles me deram a oportunidade de ouvi-los e tê-los como exemplo. Acima de tudo, me ofereceram os elementos pelos quais me identifiquei e moldei minha identidade e isso, sem dúvida, é o mais genuíno ato de amor. Ah, que saudade daqueles domingos!


*Professor de Educação Física, capoeirista, Alexandre Luzzi coordena o espaço Tai Ken e mantém a coluna mensal Corpo a Corpo.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Ainda sobre o carnaval que passou

por Ricardo Sangiovanni*

Era falsa a música. O triste não era que fosse versão de canção estrangeira. O triste era que ninguém local da província tivesse conseguido criar outra que lhe sobrepujasse o diabo do visgo. O triste é que seja isso, hoje em dia, o que o carnaval que por aqui se faz tenha a oferecer.

Era falso o músico. A começar por aquele cantor de trocentos carnavais, já de tédio enrouquecido, enlouquecido pela desgraça do marketing, transmutado, por fim, de artista (de arteiro) em melancólico display luminofalante.

Era falsa a dança. Porque não dá tempo a que o povo tire dela, por si, o proveito bailarino que melhor lhe aprouver. O que houve demais foi música-bula – “dançando, dançando!”, “quero ver você na coreografia!”, sem falar nas odiosas instruções de bota a mãozinha ali, mete a cabecinha acolá. Haverá terreno mais fértil para um novo tipo de zombeteiro fascismo do que o carnaval da Bahia?

Era falso o camarote. Porque afinal não extraía sua razão de ser do espetáculo a que dava vista. Mais bem valia por si, cheio de boates, de bebidas, de gracinhas de cabelo espichado, para que tanta pintura, para que tanto salto. Onde o suor de folia? Onde o par de tênis melado de mijo de farra de rua?

Era falsa a celebridade (ou quiçá defasado demais o banco de dados deste palavrista, vai saber). Fato é que os célebres de hoje em dia nem bem vinte anos têm mais. E vêm para o carnaval crentes de serem eles quem conferem brilho à festa, quando o certo seria o contrário. São tão célebres que só se fazem notar quando empacotados e expostos na vitrine de alguma marca, muito bem pagos, obrigado. Às vezes só topam vir se acompanhados de 18 (dezoito) parentes e amigos. A Bahia virou Disneylândia.

Era falsa a festa. A festinha cool na piscina, onde os vips tomam sol, era recheada de bund… digo, de meninas bonitas, todas elas devidamente contratadas para pagar biquininho até o sol se pôr. Havia, vá lá, um clima de diversão no ar. Mas uma diversão fria de tão opulenta, sem feição de certa alegria natural de viver que dá sentido ao carnaval.

Era falso o trabalhador. Não havia carnaval na cara do garçom, do segurança, do fritador de camarão sem cabeça. Até o modelete-porteiro que distribuía sorrisos e viseiras da marca estava puto – é que o coturno cenográfico em que lhe meteram machucava-lhe o raio da unha encravada. E não ponhamos a culpa das caras amarradas no pouco preço da paga, porque o pessoal do isopor de rua fatura bem menos e se diverte bem mais. O que ninguém suporta muito cheio de risada é essa atmosfera odiosa de glamour e famosidade, essa falsa mistura, esse agressivo apartheid.

Era falso o jornalista. Éramos todos falsos nós, jornalistas, alugando nossas canetas, nossas câmeras, para essa festa pobre que os homens armaram para nos convencer. Falsas as nossas perguntas, falsas as imagens que publicamos. Nós, como todo o restante da criadagem, não estávamos ali por sombra de querer, e era ruim pensar que estávamos perdendo, por mais um ano, a chance de mandar pro diabo essa palhaçada infeliz em que se transformou o carnaval baiano.

Era, ademais, desolador saber que logo ali, tão perto de nós quanto fora de nosso alcance neste ano, desfilava verdadeira felicidade. Porque de verdade no meio daquilo tudo, só mesmo, atrás do trio de Armandinho, a pipoca moderna pulando solta, passando comum, fugidia – como é, aliás, toda vera alegria.


*Ricardo Sangiovanni, jornalista, coordena o blog O Purgatório e mantém no NR a coluna Mistério do Planeta. Escreve de Salvador. Imagem do quadro Arlequin et Pierrot (1924), de André Derain, Paris

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

O Papa arrependido?


por Thiago Domenici*

A renúncia do quase ex-papa Bento XVI é mais um desses assuntos mundano-celestiais que me intrigam. Querendo ou não, católicos e simpatizantes, sejam favoráveis a linha conservadora adotada, criam esperança com o anúncio da renúncia e vinda de um novo pontífice por um mundo, sei lá, menos desigual? mais espiritualizado? O que esperam as pessoas de um novo Papa? O que espera o Papa das pessoas?

Não sei se por ranhetice, não acho que a mudança do padre alemão para um latino-americano ou africano influencie atitudes mais nobres e humanas das pessoas. O que está em jogo nessa história é a tentativa de recuperação política da igreja que, desgastada e envolvida em brigas pelo poder e falta de carisma, busca um respiro de renovação.

A Igreja joga com essa renúncia os holofotes para si, num período em que perde fiéis para outras religiões e vive assombrada por escândalos de pedofilia. Entre 1960 e 2010, por exemplo, o Brasil viu a parcela de sua população que se declara católica cair de 93,1% para 64,6%, segundo dados do último senso do IBGE.

Seguindo nesse meu raciocínio, não entendo como uma Igreja que fala em amor ao próximo, fé em Deus, bondade, justiça social se mantém soberba em vestimentas, atitudes e pensamentos como, por exemplo, em relação ao uso da camisinha e do casamento entre pessoas do mesmo sexo. E as mulheres religiosas na Igreja, que tem papel sempre inferior ao do homem religioso. Por que isso ainda tem de ser assim? Será que somente nos próximos 700 anos veremos uma Papisa?

O Vaticano, um país sem povo, é um império cheio de riquezas e ostentação. É curioso que uma das últimas atitudes de Bento XVI foi escolher o novo presidente do banco do Vaticano, já que o anterior em busca de mais "transparência" foi demitido pelo secretário do Vaticano, o papável italiano Tarcisio Bertone.

A igreja católica que aplaudo, de uma vertente verdadeiramente social, a teologia da libertação, uma espécie de agulha no palheiro, rara mais ainda presente na figura de alguns batalhadores, como Dom Pedro Casaldáliga, que no último sábado fez 85 anos, e que foi soterrada com ajuda do mesmo que agora pede para sair, será apoiada por um novo santo padre?

É interessante que Bento XVI, a figura central do que se tornou a igreja católica nas últimas décadas, peça uma “verdadeira renovação” daqui em diante.  Ele usou essa expressão em cerimônia de despedida com padres de sua diocese em Roma e afirmou que ficará "escondido do mundo" depois de renunciar no fim deste mês. Será, diante de sua nítida fragilidade e da Igreja, um sinal de arrependimento?

*jornalista, Thiago Domenici coordena e edita o Nota de Rodapé

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Coisa Íntima # Autorreflexão

Série Coisa Íntima
Autorretratos por fotógrafos profissionais e amadores.
Participe, saiba + 

“Tirar a própria fotografia é a terceira coisa mais íntima que uma pessoa pode fazer com ela mesma, depois da masturbação e do suicídio”.



clique para ampliar



Título Autorreflexão
Ano 2012
Autora
Heloisa Marques, artista visual
Saiba mais: http://cargocollective.com/percevejos

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Cadê a minha vaga?



por Júnia Puglia       ilustração Fernando Vianna*

Quando alguém ataca de “no meu tempo” não era assim, era assado, tudo era muito melhor etc., me dá uma preguiça danada. Mesmo que a pessoa seja um tanto mais velha que eu, sempre acho que o tempo de quem está vivo é agora. Se, no entanto, disser que “trinta anos atrás os computadores não dominavam a nossa rotina como hoje” e outras constatações sobre a inevitável passagem do tempo, vou concordar com muitas delas.

Um das boas que têm frequentado as conversas Brasil afora é “no meu tempo, empregada doméstica se vestia de empregada, não tirava férias e nem pensava em viajar de avião”. Outra: “no meu tempo, era fácil estacionar; hoje em dia, está impossível encontrar vaga, depois que todo mundo comprou carro em sessenta prestações”. Mais uma: “antigamente, só vinha gente bonita nesse shopping; agora, dá de tudo”. É, minha gente, os últimos anos viraram nosso mundinho classe média de pernas pro ar.

Quinze anos atrás, as filas de check-in nos aeroportos, bem como as salas de embarque e os aviões, eram territórios demarcados de homens brancos engravatados, quase sempre viajando a trabalho. Éramos poucas mulheres, umas gatas pingadas, as exceções que confirmavam a regra. Aeroporto não era lugar de multidão e caos, pois cabíamos todos, e éramos quase sempre bem adestrados.

Neste nosso tempo de hoje, seu, meu e de todo mundo que respira, as cartas se embaralharam mesmo. Sabe por que? Os pobres e incultos de ontem estão comendo, estudando e acessando informação como nunca. Em consequência, a miséria vai ficando pra trás, num caminho sem volta dos mais virtuosos, que tenho o privilégio de acompanhar no meu tempo. Se nenhuma catástrofe política, econômica, institucional ou natural se interpuser, as próximas gerações terão da miséria e das privações apenas uma vaga lembrança.

Sua vaga de estacionamento sumiu? Seu assento fica bem no meio daquele animado grupo de cinquentonas que pisa num avião pela primeira vez, rumo a Lisboa, e com enorme dificuldade encontra seus lugares e acomoda dezenas de malas, bolsas e sacolas? Ficou chocado com a quantidade de formandos negros no curso de arquitetura do seu filho? Trate de se acostumar e encarar com bom humor, porque aquele cada um no seu quadrado “de antes” já era, e vem muito mais por aí. Este é o nosso tempo, que, da minha parte, é mais do que bem-vindo.

* Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

A síndrome Safatle/Dutra – parte II

por Izaías Almada*

 “Ao afirmar que os condenados do mensalão não seriam desligados do partido, ao aceitar organizar uma contribuição para manter tais condenados a pagarem as multas aplicadas pelo STF e, agora, ao achar normal que alguém condenado em última instância assuma uma vaga no Congresso, o PT age como um avestruz que coloca a cabeça na terra e erra de maneira imperdoável” Vladimir Safatle em artigo na Folha de S. Paulo

“... todos os que o conhecem nunca tiveram um minuto de dúvida quanto à sua integridade de caráter e quanto à limpidez de sua trajetória de vida. Entre eles estou eu, admirador que sempre o considerou um militante exemplo pela sua dignidade, a coragem e a lucidez...” Prof. Antonio Candido, em carta ao deputado José Genoíno

Com a contextualização em relação ao título desses meus artigos feita no primeiro deles atempadamente pela amiga Conceição Lemes – do VIOMUNDO – volto ao assunto sobre as opiniões do professor Vladimir Safatle e do ex-governador gaúcho Olívio Dutra. Vamos em frente.

Em 1997 tive o privilégio de coordenar, junto com os jornalistas Granville Ponce e Alípio Freire, o livro de memórias de prisioneiros políticos Tiradentes: um presídio da ditadura. Privilégio acrescido com a honra de ter como apresentador da obra o professor Antonio Candido de Mello e Souza, um de nossos mais brilhantes intelectuais.

No seu prefácio, o professor Candido destaca o seguinte trecho dos organizadores à página 16, referindo-se aos memorialistas: “Ninguém é vítima ao aderir a uma causa (a opção pela luta armada) de livre e espontânea vontade, mesmo considerando a possibilidade de uma ou de outra falha no recrutamento de um militante. É curioso notar, inclusive, que de todos os textos que recebemos, não há nenhum em que o autor faça qualquer alusão a uma eventual condição de vítima daquele processo de luta política. E só não comete erros quem não ousa”.

De certa maneira, a autocrítica daquele processo de ousada luta política foi feita por muitos que após e experiência da luta armada se incorporaram à criação do Partido dos Trabalhadores, que teve o professor Antonio Candido como um de seus fundadores. Autocrítica que pressupunha a crença em valores democráticos ainda por conquistar. Entre eles estavam José Genoíno e José Dirceu.

Vencida a ditadura em alguns dos seus aspectos mais sensíveis e visíveis, como a liberdade de reunião e a volta dos sindicatos, das organizações estudantis, o fim da censura a imprensa, a retorno do ‘habeas corpus’, o direito de ir e vir, o cessar das mortes e desaparecimentos de opositores ao regime, parte representativa da esquerda e não só, organizou e fundou o PT. E partidos políticos, ao que se sabe, se organizam para chegar ao poder político, como é óbvio, e se possível chegar ao mais alto cargo governamental republicano, o que foi conseguido em 2002 com a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Refém de uma economia de mercado atrelada aos interesses rentistas e corporativos, nacionais e internacionais, bem como de um quadro político partidário anômalo, fisiológico e bastante conservador, o PT – como qualquer outro partido de esquerda progressista e democrático – apesar das seguidas vitórias eleitorais viu-se jogado às feras numa arena onde a platéia dividia-se entre a esperança e o medo. Diariamente, desde então, jornais, rádios, televisões, revistas semanais vêm tentando colocar o PT, seus militantes e seus eleitores no “seu devido lugar”. A Casa Grande mostrava e continua a mostrar as garras por meio dos seus porta-vozes.

Visto pelas lentes da dialética pode-se dizer que para os seus eleitores, o PT trouxe a esperança; para os adversários, em particular os mais conservadores, o medo, o receio. Quem não se lembra da campanha contra Lula em 1989? Do ponto de vista interno, entretanto, há o natural medo de não se corresponder à imensa responsabilidade de governar o país consoante as expectativas criadas e, na contramão desse medo, a esperança dos adversários pelo fracasso nesse sentido. E governar não é ir para um baile de debutantes ou praticar boas ações para ganhar o reino dos céus. Essa, quando muito, será a visão edulcorada de um medievalismo tardio, de uma cultura acadêmica afrancesada, de tempos inquisitoriais ou de exacerbado e ingênua recato quase religioso diante do poder econômico dominante.

Passados poucos mais de 40 anos, nos quais muito se fez para o estabelecimento de um pensamento único no mundo, após a queda do socialismo real na Europa, proclamando-se para isso até o fim da História, os vários discursos neoliberais vão tendo vencidas as suas datas de garantia de uso, a última delas em 2008, já com algumas trombetas de alarme soando na Europa, nos EUA e no Japão para dias futuros.

Também após esses 40 anos é possível encontrar a sensibilidade e a solidariedade, entre centenas de milhares de brasileiros, de um professor Antonio Candido, por exemplo, que atento ao que se passa à sua volta, escreve a carta que escreveu ao deputado José Genoíno Neto, de cabeça erguida, ao contrário de outros que abandonaram, senão a luta, os caminhos escolhidos pelo PT.

Também durantes esses 40 anos, novas gerações de brasileiros se formaram e se prepararam para as mais diversas atividades no campo do saber e do fazer. E cada geração, mesmo bebendo nos clássicos a sua formação e especialização, e amparada pelo conhecimento já comprovado e contínuo pelas ciências exatas ou humanas, sabemos que será sempre influenciada pelo confronto das idéias no seu dia a dia, por novas descobertas e avanços da humanidade. Ou por teorias ainda carentes de comprovação, quando não estas são lançadas apenas como estratégia de espalhar a dúvida e a confusão. Nesse confronto, nessa batalha de idéias, será preciso algum discernimento e, se necessário, saber remar contra a maré, quando for o caso.

Para os mais novos haverá sempre a tentação de reinventar a roda ao assumir a realidade do dia a dia como sendo a expressão de toda e qualquer realidade. Pedir a um partido que faça autocrítica das suas ações no atual contexto da política brasileira é direito que assiste a qualquer cidadão. Até porque, as condenações de uma ação penal ainda não concluída, é bom lembrar, não o foram em “última instância”, mas em única instância. Contudo, é preciso distinguir, no caso do PT, se tal avaliação provém de uma reflexão histórica consistente de quem vive o jogo político por dentro ou é fruto de um desejo subjetivo de escaramuças intelectuais obtidas em salas acadêmicas e redações midiáticas. Ou como diria o grande filósofo Millôr Fernandes: “Certas coisas só são amargas, se a gente as engole”.

*escritor e dramaturgo, Izaías Almada mantém a coluna mensal Pensando Alto

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Carnaval é bom e o povo gosta

Faremos uma pequena pausa para a folia ou, para quem preferir, o descanso. Voltamos na quinta-feira com mais textos. Até já.

Abre as asas sobre nós


por Júnia Puglia              Ilustração Fernando Vianna*

Dois filmes, diferentes no enredo, no contexto e no tempo retratado: o primeiro, “Argo”, é sobre um engenhoso e arriscadíssimo artifício para libertar diplomatas americanos refugiados na embaixada canadense em Teerã, no final dos anos setenta; o outro, “No”, conta a história da campanha pelo Não a Pinochet no Chile, quase dez anos depois da fuga dos americanos do Irã. Vi os dois há poucos dias.

Ambos falam de ditaduras, mas pertencem a um outro tempo, quando o mundo era comandado pela Guerra Fria, os Estados Unidos de um lado, a União Soviética do outro. O embate permanente entre esses dois polos sugava a energia política, e não deixava espaço para quase nada mais. A derrubada do Muro de Berlim, em 1989, que teve um fascinante efeito dominó demolidor de regimes totalitários, estreou uma nova etapa, recebida com júbilo e muita fé no futuro, rumo à liberdade e à democracia, finalmente!

O futuro é hoje. A opressão das ditaduras minguou bastante, ao menos aqui pelos nossos lados. Mas a tirania continua seduzindo, e há que manter corações e mentes bem abertos para reconhecê-la. A verdade é que muitos a amam e desejam, pois não suportam o peso de pensar com a própria cabeça e escolher a vida que querem viver. Dá trabalho e implica assumir responsabilidades.

De mim ela não se esconde. Vejo-a escancarada, tanto na atuação de figuras públicas quanto em manobras conservadoras, estas quase sempre inspiradas em crenças religiosas, que buscam tenazmente o retrocesso e o obscurantismo. Em que pese tudo o que pudemos avançar na compreensão da natureza humana e do valor da liberdade, da capacidade de escolha e da autonomia individual como motores da construção de um mundo mais justo – e não me refiro a nenhuma ideologia ou corrente política – os promotores do conservadorismo e do atraso insistem em que é aí mesmo que mora o perigo, e muita gente vai atrás.

Os exemplos estão por toda parte. De leve: quando um governante decide controlar o que os meios de comunicação publicam, está pura e simplesmente cerceando o acesso à informação, essencial para permitir que cada pessoa tire suas próprias conclusões sobre os fatos. E não sou ingênua a ponto de pensar que a mídia é imparcial ou neutra, muito longe disto, mas quem tenta controlá-la tampouco o é.

Diferentes grupos religiosos que se unem, de forma oportunista e insidiosa, para impedir a aprovação de leis que ampliam direitos individuais – como o aborto e o casamento de pessoas do mesmo sexo, por exemplo – estão decidindo e impondo previamente que escolhas todas as pessoas devem fazer, com base nas convicções de algumas. Havendo a possibilidade de optar, todas poderiam tranquilamente decidir segundo sua crença.

Assim como aprendemos a somar e subtrair, a ler e escrever, cozinhar, cuidar dos filhos, fabricar aviões e computadores e uma infinidade de coisas, podemos aprender e ensinar a ser livres e dispensar tutelas. Como em tudo o mais, a insistência, a prática e o incentivo são determinantes. Já pensou? Escolas de liberdade, igrejas de liberdade, famílias de liberdade, empresas de liberdade, governos de liberdade, esta “hermana muy hermosa”. Que traz, no mesmo pacote, a solidariedade e o bem comum. Estou mesmo romântica hoje.


* Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

É o poder, Maria!


por Fernanda Pompeu  Ilustração de Carvall*
 

Estou numa idade curiosa. Uma espécie de adolescência da velhice. Muito longe da juventude e muito perto da difusa Terceira Idade. Se for verdade que o inverno é a velhice, digamos que me encontro no outono. Época em que caem as folhas, os seios, a pele.

Época também em que há muita matéria de vida a ser lembrada e narrada. O fato é que me pego lembrando de cada coisa! Exemplos, do sabor do Grapette, da ditadura militar, do Sidney Miller: "Segue em frente, violeiro, que lhe dou a garantia de que alguém passou primeiro na procura da alegria."

E lembro do meu grupo escolar. Lá tive lições permanentes. A mais importante delas foi a de que mulheres não tinham importância. Só dava homem: Pedro Álvares Cabral, Mem de Sá, Araribóia, Zumbi dos Palmares. Eu matutava: cadê nós?

no ginásio (era assim que se chamava), tomei coragem e perguntei para o professor de história: "Onde diabo estavam as mulheres na história do país?". Um colega espertinho respondeu: "Nas cozinhas."

Hoje tenho certeza que nós – descendentes das cozinheiras – até que ousamos bastante. Sem nenhum passado reconhecido ou glorioso fomos muito longe. Mas não é suficiente. Porque ninguém é feito só do presente. E o futuro é igual a comer ar.

Vamos precisar de escavadeiras para trazer à superfície nomes e histórias de mulheres que fizeram muitas arruaças e mudanças sociais. Negras e brancas que realizaram e não levaram crédito nenhum.

Aqui conto uma passagem. Em 2004, escrevi uma série de perfis de escritores hispano-americanos para o suplemento Fim de Semana da Gazeta Mercantil – jornal que fechou e não me pagou as duas últimas colaborações.

Eu tinha carta branca para escolher o escritor que me desse na telha. Escrevi sobre Juan Rulfo, Augusto Monterroso, Pablo Neruda, Julio Cortázar, entre outros. Não encarei nenhuma escritora.

Deixei de fora Alfonsina Storni, Rosario Castelanos, Gabriela Mistral, entre muitas outras. Sabe por quê? Porque, há nove anos, era trabalhoso encontrar boas informações sobre elas no Google. Eu dispunha de um dia para pôr no papel oito mil caracteres com espaço.

Ao menos essa é a desculpa racional que dou para mim mesma. Não quero crer que a falta de modelos femininos na minha infância tenha alguma relação com a minha omissão no caderno Fim de Semana.

Mas foram ocasião e oportunidade perdidas. Para não afundar no mantra minha culpa, minha máxima culpa, vou comprar uma pá. Oxalá, ainda terei tempo de escavar muitas histórias de mulheres.


* webcronista do Yahoo e do Nota de Rodapé, fernanda pompeu escreve às quintas. Ilustração de Fernando Carvall, especial para o texto.

Cerveja "brinda" a decadência do jornalismo

por Thiago Domenici*

Jornalistas, repórteres e admiradores da profissão e quem mais se interessar, agora vocês podem (quem sabe no futuro) tomar uma cerveja exclusiva que contém "chocolate e cevada queimada, tão escura como o futuro do jornalismo”. No caso, o jornalismo dos EUA, pois a cerveja Unemployed Reporter Porter (algo como Repórter Desempregado) é criação de Jon Campbell, um norte-americano que largou a profissão para se "dedicar" a produção da bebida nas horas vagas.

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Seu logotipo (na imagem) é a figura de um jornalista chorando diante de uma máquina de escrever. Um ar retrô ao negócio-brincadeira. A cerveja do tipo "Porter", diz o rótulo, foi popularizada no século XIX por marinheiros mercantes e trabalhadores.

O ideia da cerveja surgiu depois que Campbell foi demitido em 2011 do semanário alternativo Hartford Advocate, na região de Connecticut. A garrafa é cheia de mensagens irônicas como essa: "Repórter Desempregado é trabalhada na antiga tradição em honra de uma profissão igualmente condenada à decadência e à irrelevância”. Seu teor alcoólico é um tanto elevado para "aplacar a dor da lenta e inexorável marcha em direção à absolescência", diz.

Diante da repercussão, Campbell escreveu recentemente em sua página na internet. "Infelizmente, a produção ainda não se expandiu para além do balde de cinco litros de plástico no meu armário".

Uma critica inusitada a profissão. E, convenhamos, o marketing da cerveja de Campbell é universal diante da precarização da profissão em vários países. A ideia merece um brinde.

*  jornalista, Thiago Domenici coordena e edita o Nota de Rodapé

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Racismo no Brasil e afetos correlatos

por Cidinha da Silva*

Pilar, a vilã e Pitanga, a mocinha negra
Na novela Lado a lado três personagens femininas são centrais para pensar o tema do racismo. Laura (Marjorie Estiano), mocinha branca, filha da vilã, professora idealista e mulher divorciada, melhor amiga da mocinha negra. Constância (Patrícia Pillar), baronesa cruel, saudosa dos tempos escravistas e Isabel (Camila Pitanga), mocinha negra, arrojada, bela, libertária e pertencente a uma comunidade negra. Três excelentes atrizes potencializadas por belos papeis. Patrícia e Camila conseguem ser magistrais e ratificam o lugar de seguidoras de grandes atrizes como Fernanda Montenegro, demonstrado nas múltiplas e surpreendentes personagens que ambas vêm interpretando com competência ao longo da carreira.

Constância é protótipo da elite escravista decadente que manteve o poderio econômico, a mentalidade de subjugo aos negros e que consegue se reinventar na política, da corte imperial a família migra para o Senado.

Laura faz oposição à mãe: é humana, honesta, respeita as outras pessoas, acredita em uma sociedade igualitária e empenha-se para construí-la nas mínimas atitudes. Isabel é a rainha negra, a mulher que vence pelo trabalho artístico e emprega o dinheiro economizado durante seis anos no exterior para comprar uma casa, um teatro e construir uma escola para as crianças do Morro, do qual também é originária.

Marjorie (à dir): filha da vilã
e amiga da mocinha negra
Isabel tem um filho, fruto de relação acidental com o filho da vilã. O recém-nascido é raptado no momento do parto e trocado por um bebê morto entregue à parturiente enfraquecida pelo clorofórmio. Tudo isso planejado por Constância e executado por suas comparsas, a saber, a empregada branca e pobre que, por sua vez, contrata um homem branco que compra o corpo de um bebê para trocar pelo nascido vivo; uma parteira, também branca, reconhecida pela “habilidade” de matar crianças indesejadas no momento do nascimento e outra mulher (branca) que ajuda a parteira ao fugir com o bebê de Isabel.

Talvez o leitor ou a leitora tenha sentido certo desconforto na reiteração da branquitude das personagens da novela Lado a lado, escrita por Cláudia Lage e João Ximenes Braga. Paciência! Mas considerem que pela primeira vez há mocinhas e vilãs negras e brancas, portanto, é necessário distingui-las.

Os autores, de maneira inaugural na teledramaturgia tupiniquim rasgam, dilaceram, escancaram os privilégios dos brancos brasileiros alicerçados na exploração reiterada e arraigada dos negros ao longo de séculos. Eu não queria estar no lugar dos brancos, deve ser desconfortável mesmo. Digo isso porque outro dia, em uma dessas listas de comentários sobre o texto de alguém, li um rapaz branco reclamando do absurdo de pretenderem “culpar os brancos de hoje pelo que os de ontem fizeram, foram outros tempos e agora é bola para frente, sem olhar para o passado.” Quanto a isso, não dá para ter paciência.

Há também os que jogam no time de Laura e transformam o desconforto em atitude de mudança, em desconstrução dos privilégios da branquitude. Para estes, como para os autores da novela, flores, em que pese o tema dos afetos que ainda obsta entendimento pleno da questão.

Qual é o laivo de humanidade de Constância? O declínio da decisão de matar o neto, resolvendo entregá-lo a uma mulher (irmã da vilã negra) que pudesse criá-lo, financiada por sua generosidade. Aqui começa o problema do afeto e sua convivência harmônica com o racismo no Brasil. Constância tem pena de matar o neto mestiço (existe sentimento maternal difuso por ele), mas não titubeia em roubá-lo da mãe negra, mero ventre parideiro sem qualquer valor humano, como o ventre das mulheres outrora escravizadas por ela. E como um filho de mulher escravizada, real ou simbolicamente, também o é, Constância rouba o bebê da mãe negra, singelo capricho de senhora branca escravizadora.

ERA assim lá, naqueles tempos, e permanece assim cá, nos tempos de hoje. A discriminação racial é relativizada pelo afeto do branco pelo negro, é o carinho do senhor pelo escravo

Elias (Afonso Nascimento Neto) recebe da avó-megera quinhões mensais de atenção: dinheiro suficiente para garantir a sobrevivência de uma mulher adulta, dois adolescentes e uma criança, além de propina para a tia Berenice (Sheron Mennezes), intermediadora do negócio – cabe aqui a observação de que não deve ser muito dinheiro, é que pretos, naquela época e ainda hoje, vivem com muito pouco.

Elias recebe também olhares carinhosos. Ele é tão bonito, um tanto escurinho, é verdade, mas uma graça de menino. Às vezes até, o garotinho mestiço tem o beneplácito de aproximar-se daquela beleza radiante da avó e trocar duas ou três palavras com ela. Certa feita recebe um doce como presente e é fulminado pelo olhar de nojo da tia-avó Carlota (Christiana Guinle), também presente à cena.

Era assim lá, naqueles tempos, e permanece assim cá, nos tempos de hoje. A discriminação racial é relativizada pelo afeto do branco pelo negro, é o carinho do senhor pelo escravo, como disse tia Jurema (Zezé Barbosa). Ou você vê alguma diferença entre a postura de Constância e das patroas (sabidamente brancas) que tratam as empregadas domésticas (negras majoritariamente, não porque eu queira, mas porque assim atestam as estatísticas) como seres a quem fazem o favor de pagar salário irrisório, negam direitos trabalhistas e como compensação, doam roupas velhas e retalhos de carne para levar à casa nos finais de semana? Afora as humilhações, os palavrões, toda sorte de maus tratos e a possível iniciação sexual dos filhos ou assédio dos decrépitos maridos!

Outro aspecto importante para compreender a dinâmica do afeto como reforço da assimetria nas relações raciais, principalmente no Brasil, é a postura de Laura que, mesmo sabendo o quanto a mãe é peçonhenta, tenta relativizar o processo preparatório do veneno junto à Isabel, principal alvo da crueldade materna. Laura ouve as justificativas e explicações da mãe e surpreendentemente, tomada por amor filial, dá crédito a elas e tenta amainar o coração da amiga em relação à genitora. Isabel não aceita sequer ouvir, não tem paciência (como eu), mas Laura prossegue, é a representação da mulher branca não-racista que não compreende a ignomínia do racismo e por isso rejeita o fato de que uma igual, a mãe, a quem ela percebe como um ser humano ruim, mas humano, possa ser tão racista.

E, se Laura continuar assim, com a visão ingenuamente obliterada pelo afeto, não caminhará a humanidade, pois haverá, sempre, o carinho do escravizador pelo escravizado.


* escritora, Cidinha da Silva estreia hoje sua coluna mensal Dublê de Ogum.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Em busca das cuecas ideais

Após um longo período de buscas e tentativas frustradas, aos trinta anos de idade, finalmente encontrei as cuecas ideais. E, antes que as leitoras se inquietem diante do assunto aparentemente fútil e desinteressante, adianto que essa não é, nem de longe, uma tarefa simples, nem sequer corriqueira.

Fosse pelo gosto feminino todos os homens usariam o mesmo tipo de cuecas: boxers pretas (cheguei a tal conclusão após uma exaustiva enquete em mesas de bar). Mas a verdade é que, do ponto de vista masculino (ao menos do meu) as boxers pretas estão longe de ser a embalagem ideal. Elas esquentam, apertam as pernas e embolam quando vestimos calças jeans. Portanto, fosse somente pelo conforto, continuaríamos eternamente apegados à boa e velha zorbinha de algodão, modelo “presente de vó”.

Como, contudo, nosso objetivo maior na passagem por este mundo é agradar as mulheres, buscamos alternativas. A que encontrei foi quase uma boxer preta. Mas por ser um pouco mais curta, não esquentava tanto nem embolava nas calças. Era de puro algodão, preta, elástico incorporado, com uma sutil lista cinza escura. Uma aparência sóbria, algo máscula, madura mas não senil e discretamente sexy (a depender do recheio, obviamente).

Comprei uma pra experimentar. E, após dois ou três turnos de test-drive, aprovei e fui aprovado pelo gosto feminino. Quinze dias depois voltei à loja e comprei logo mais três.

E por algum tempo vivi feliz e satisfeito com minhas roupas íntimas. Uma conquista e tanto, caras leitoras. Pensem na quantidade de pequenas tarefas e decisões cotidianas, como escolher cuecas. Pensem no tempo gasto com cada uma dessas semi-inutilidades. Pois então. Ao menos no quesito cuecas eu estava bem resolvido e não teria mais de me preocupar. Caminharia assim, com minhas boxers pretas um pouco mais curtas, quiçá até a derradeira velhice, quando, já despojado de qualquer vaidade, sucumbiria à samba-canção de seda.

Acontece que, após alguns meses, minhas cuecas ideais começaram a dar sinais de fadiga. Eu, obviamente, não tive dúvida. Voltei à mesma loja e fui certeiro até a parede coberta de modelos de todos os tipos, cores e tamanhos.

Mas, bastou correr a vista pelo mostruário para sentir uma pontada de angústia no peito. Não havia nenhum exemplar do meu modelo à mostra. Tudo bem, pensei comigo, devem ter se esgotado. Afinal, diante de tantos predicados, era de se esperar uma demanda acima da média. Certamente teriam peças em estoque, ou, na pior das hipóteses, mandariam buscar na fábrica.

Estava lá em pé, meio desolado, conduzindo este monólogo interno, quando um vendedor se aproximou oferecendo ajuda. – Estou procurando um modelo básico de algodão – expliquei, e verbalizei um retrato falado:

– preta um pouco mais curta do que a boxer, tem uma listrinha cinza no elástico.

O homem me encarou com ares de incompreensão. Olhou os modelos à mostra, perguntou se não era mesmo nenhum daqueles. – Não, claro que não, oras! Eu vou lá brincar com assunto tão importante, companheiro?

O homem finalmente viu que a coisa era séria e se condoeu diante da minha aflição. Foi até o computador, inseriu meu CPF e descobriu o modelo que eu havia comprado anteriormente, o modelo ideal, que havia resolvido de uma vez por todas minhas questões íntimo-estilísticas.

– Ah, essa nós paramos de fabricar – respondeu como se nada fosse.

Depois me ofereceu um modelo similar, feito de elastano, ou modal ou qualquer porcaria de tecido sintético. Imagine só, guardar partes tão importantes em um tecido que não sabemos realmente a composição e que, como quase tudo que não sabemos realmente a composição, deve ser altamente cancerígeno.

Olhei de novo para o sujeito agora cheio de raiva e indignação. Tudo bem que a profissão de vendedor de cuecas não deve ser das mais cobiçadas. Fosse vendedor de lingeries, certamente teria mais amor pela causa. Mas daí a nem sequer tomar conhecimento de que um dia, aquelas prateleiras ostentaram as cuecas ideias... Era demais pra mim.

E, novamente, me defendo das leitoras que por ventura vejam exagero ou ranhetice na minha indignação. A essas, explico que eu não me indignava apenas pelas cuecas. Me indignava porque ali estava o reflexo de todo o nosso desapreço pela memória. Do desrespeito histórico que tanto mal faz ao nosso povo e à nossa cultura. Mais um sinal do fenômeno que faz arranha-céus neoclássicos esmagarem nossas casinhas de vila, pagodes e sertanejos estupidificarem nossa música popular, fast-foods homogeneizarem nossa comida, chapinhas alisarem nossas mulatas...

Mas, que remédio. Não há como lutar contra as forças destruidoras do capital. Ou, nas palavras de Marx, tudo que é sólido desmancha no ar. Inclusive as cuecas.


Tomás Chiaverini é autor do romance Avesso (Global), e dos livros reportagem Cama de Cimento e Festa Infinita (ambos pela Ediouro). Mantém a coluna mensal Abelha na Orelha. Ilustração de Caco Bressane, especial para o texto

Que calor!

Que calor! Enquanto o centro comercial do bairro fervilha, como um vespeiro atiçado, aqui no meio da Vila Romana os cães estão esparramados pelos jardins, como se estivessem na natureza. As férias escolares trazem tranquilidade. A frota circulante diminui. As piruas, cheias de estudantes, não correm mais ladeira abaixo e, principalmente, não buzinam mais histericamente às seis horas da tarde em frente à casa da vizinha de parede, a Denise, que, apesar de ser jovem – a maior gata do pedaço –, já é mãe de um menino de cinco anos. Eu gosto desta época do ano.

As crianças, enjoadas de ficar em casa vendo TV e jogando videogame, vão timidamente ganhando a rua, como se avançassem por território inimigo. A princípio é assim. Não demora, já estão reunidos na calçada para admirar as primeiras pipas das férias, sob o olhar zeloso de algumas mães, que aproveitam a oportunidade para jogar conversa fora, pôr o papo em dia, como elas dizem, o que na prática pode significar muitas coisas, mas principalmente falar mal dos outros, atualizar o obituário, o cadastro dos doentes, desempregados, desenganados, loucos, e também dos novos endinheirados, que se mudaram para os novíssimos edifícios de nome francês. Queixam-se sobretudo do calor. É o assunto principal. Que calor! Não se encontra posição na cama. Os pés estão inchados que só vendo! Assim quem é que aguenta? Melhor dormir na sala, onde é mais fresquinho (mas, aqui entre nós, também pra tirar uma folga do marido, que ronca que nem motor de barco).

Enquanto as velhas conversam, a molecada já invadiu a rua transversal, longe do olhar materno, onde eles esticam as linhas entre os postes pra passar cerol. Estão de olho nas pipas que já subiram. É só o início da longa temporada das pipas. Primeiro, comprar as varetas de bambu, o papel de seda, a cola; depois, arranjar umas garrafas de vidro para fabricar o cerol – a arma usada nos duelos incríveis que se travam nos ares. “Chupa, trouxa!”, um moleque grita de uma rua da Ipojuca, enquanto no céu uma pipa vem descendo, boiando, desmaiada. “Pipa no alto não tem dono!”. E é uma correria para ver quem chega primeiro.

Além da garotada, muitas pessoas escolhem tirar folga nesta época. Os rapazes aproveitam o tempo quente para jogar uma água no carro, tarefa que costuma durar horas, às vezes uma tarde inteira, dedicada a esguichar, esfregar, encerar o xodozinho, um Gol 2001, quatro portas. Mas isso é pretexto pra ficar na rua, olhando o movimento, as meninas. Sim, as meninas também saem. Nesse calor! Mas não ficam à toa na calçada, como os rapazes. Geralmente são vistas ou saindo ou entrando em casa, indo ou chegando do shopping, do cinema. Exceção são as que levam o cachorro pra passear. Não tem ocasião melhor para se conhecer a vizinha gata. Minha estratégia é também levar meu cachorro pra passear; se os cães se entendem, é meio caminho andado.

Dia desses, na padaria, enquanto pedia 200g de petit-four estilo ferradura, percebi que o Roque, meu cachorro, se agitou na calçada por causa da aproximação de alguém conhecido. Vi uma criança brincando com ele. Era o filho da Denise, a vizinha gata. Entrou rapidamente na padaria e parou de pé ao meu lado. Chamou o filho com rispidez. Mesmo usando roupa de trabalho, sapatinho de salto, vestido sóbrio, comprido, sem decote, estava linda. Apesar da cara de enfado, de quem passou o dia num escritório ou firma qualquer, numa sala com janelas fechadas, luz fria, ar-condicionado, ela continuava atraente, olhos grandes, lábios vermelhos, bem firmes, peitos firmes (que só vendo!...), sobre os quais os meus olhos se deitaram ansiosos e ingênuos, como os do Roque quando vê uma fêmea passeando; e vai segurar! Só que no mundo dos humanos é preciso que se cumpram certos rituais. Nem toda menina é papo reto. No geral é necessário lançar mão de estratégias galanteadoras, às vezes certas mumunhas, as palavras devidamente encaixadas, no tempo certo, evitando ser invasivo, óbvio ou clichê, todo esse papo aranha que a gente conhece de velho.

Mas Denise não estava de folga. Seu filho, agarrado às suas pernas, como um macaquinho, pedia sorvete com insistência. A atendente lhe perguntou se queria mais alguma coisa, além dos pães. Tentando conciliar as chaves de casa, bolsa, filho, atendente, pães, e o sorvete, claro, senão o menino vai ter um treco!, ela se virou, depressa, e finalmente me reconheceu. “Calor, hein?”, ela disse, dirigindo-se ao caixa com rapidez. Só tive tempo de responder o óbvio: “Que calor!”, antes dela sumir com chaves, bolsa, pães, sorvete e filho porta afora.


Carlos Conte, sociólogo e cronista, mantém a coluna mensal Casa de Loucos, uma homenagem aos mestres João Antônio e Lima Barreto 

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Ele enganou o El País?

NR entrevista Tommaso Debenedetti, 43 anos, que se diz professor de literatura e história em Roma, com “vida normal” e pai de “dois filhos”. Ele afirma ser o responsável por plantar a falsa foto de Hugo Chávez publicada na capa do jornal espanhol El País no mês passado. Além desse ato, Debenedetti alega ser o autor de outras mentiras publicadas em jornais e divulgadas na internet nos últimos anos.

por Ricardo Viel, de Lisboa

No último 24 de janeiro o prestigiado jornal espanhol El País cometeu um erro que custou à empresa cerca de 300 mil euros e arranhou profundamente sua credibilidade: publicou uma suposta foto do presidente venezuelano Hugo Chávez sendo operado em um hospital cubano. Como se confirmou em seguida, não era Chávez, mas uma fraude grosseira.

Durante a madrugada daquela sexta-feira, o periódico espanhol, após perceber o erro, colocou em marcha uma operação para resgatar seus exemplares das bancas. Conseguiu, em parte, recuperá-los e substituí-los por outra edição, mas a foto falsa já havia se espalhado pelo internet – onde o jornal também a publicou com destaque em seu site.

Como foi possível que um dos mais prestigiados periódicos do mundo cometesse um erro tão grosseiro? Parte da resposta deu o próprio jornal, ao publicar no domingo dia 26 um extenso relato em que conta, passo a passo, a sucessão de erros cometidos até a publicação da imagem (leia aqui).

Falhas tão absurdas como, por exemplo, não contatar o seu correspondente na Venezuela e nem sua colunista em Cuba. O jornal relata que a foto foi comprada por 15 mil euros de uma agência que prestava serviços ao jornal. Venderam a foto como tendo sido feita por uma enfermeira cubana que tinha familiares na Espanha. Era mentira.

O que o jornal não explica é como essa foto chegou à agência. Um personagem pode ter a resposta. Tommaso Debenedetti é um italiano que ficou famoso em 2010 quando foi desmascarado (o próprio El País publicou uma entrevista muito divertida com ele).

Durante dez anos o jornalista inventou entrevistas que nunca aconteceram e as vendeu para pequenos jornais da Itália. Foram mais de cem, com personalidades como Mijaíl Gorbatchov, Dalai Lama, Joseph Ratzinger, além de dezenas de prêmios Nobel de literatura. Ficou conhecido como o campeão italiano da mentira, e foi descoberto quando o escritor norte-americano Philip Roth, indagado sobre uma suposta entrevista em que criticava Obama, disse nunca ter feito tal afirmação. Foi quando a farsa veio abaixo.

Debenedetti classifica suas mentiras como um “jogo literário” e continua gerando falsas notícias na rede. Recentemente criou um perfil de Vargas Llosa no Facebook e plantou declarações polêmicas publicada por vários meios como sendo do Nobel peruano.

No ano passado, o italiano “matou” o escritor Gabriel García Márquez e Fidel Castro. Agora, assegura ser o autor da falsa foto que o El País publicou. O Nota de Rodapé o entrevistou por email. Leia a seguir.

O "campeão" da mentira Debenedetti (Foto: Stephanie Gengotti / Iberpress / Caters)

NR – Foi você que fez a foto que o El País publicou?
TD – Sim, eu sou o “autor” da falsa foto de Chávez publicada pelo El País. Posso dizer que se tratava de um jogo, um jogo de suplantar midiaticamente uma notícia para denunciar a falta de credibilidade dos meios.

NR– Como foi que criou esse jogo?
TD – No dia 10 de janeiro, por circunstâncias casuais, encontrei no Youtube o vídeo de um homem sendo entubado. Pensei: “parece um pouco a Chávez. Um pouco não, muito!” Portanto, como um jogo, tomei uma foto desse vídeo e a enviei a três agências de notícias, uma na Costa Rica, outra na Venezuela e outra de Cuba. Enviei a foto de uma conta falsa no nome do ministro venezuelano de cultura Pedro Calzadilla. Mandei com as seguintes palavras: o comandante Hugo Chávez hospitalizado em Havana. Não recebi resposta e a foto não foi publicada, mas dois dias depois um homem que se apresentava como jornalista cubano respondeu o correio: “muito importante, vamos enviar a Porto Rico e Madri.” Dias depois a conta de e-mail falsa que eu criei foi bloqueada, não sei por que, e não tive mais respostas. Só na manhã do dia 24 a foto apareceu na capa do El País. Tenho para mim que a foto foi enviada a Madri por jornalistas cubanos com duas finalidades: tirar dinheiro e, sobretudo, desacreditar o El Pais e, de certa forma, a imprensa ibérica.

NR – Teme ser processado? Recebeu algo pela foto?
TD – Ninguém me ameaçou e eu não tenho nenhum medo de ser processado: sou o autor “intelectual” da farsa, mas não tenho responsabilidade nenhuma na publicação da foto por um periódico. Não me deram qualquer dinheiro pela foto.

NR – Crê na versão que o El País dá sobre toda essa história?
TD – Acho que a reconstrução que o jornal faz é justa e verdadeira. Mas eu, como “autor” da foto e quem iniciou sua circulação, posso dizer que o jornal foi claramente vítima de uma manobra política que não deve ser ignorada. Repito: creio que de dentro de Cuba alguém quis desacreditar a imprensa europeia e por isso inventou essa história de que a foto teria partido de uma enfermeira cubana com familiar na Espanha.

NR – Mudando um pouco de assunto. Gostaria de saber sobre as entrevistas que o senhor criou. Como as justifica? Nesses casos o senhor recebeu pelo trabalho?
TD – As entrevistas eram jogos literários. Eu recebi 20 euros por cada entrevista, e só isso. Era um jogo de suplantar a identidade própria da literatura do último século. Eu gostava muito de fazer e a imprensa italiana, onde normalmente ninguém checa qualquer informação, me ofereceu a possibilidade de fazê-lo.

NR – Depois das entrevistas falsas, o senhor partiu para as redes sociais. Criou perfis falsos e plantou notícias. Há alguma surpresa que está preparando?
TD – Continuo com o Twitter e tenho duas grandes surpresas: um texto literário que aparecera assinado por um grande escritor Prêmio Nobel e que é, na verdade, meu. Também sou o autor de vários erros no Wikipédia. Faço para demonstrar como falta credibilidade na internet. Eu aconselharia os jornalistas a ficarem atentos com textos e fotos que são apresentadas como exclusivas. O caso Chávez pode se repetir em outros países.

Finalizada a entrevista durante a semana passada, Debenedetti enviou-me uma nova mensagem, em que dizia:

Posso lhe passar outra informação sobre ideias minhas futuras. As contas do Twitter do Papa (especialmente as em inglês, espanhol e português) não são seguras: é muito fácil encontrar o password e entrar. Se o Vaticano não muda seus critérios, será possível para mim escrever tweets com o nome do Papa. A mesma fragilidade de senhas há no Brasil com duas personalidades. Um famosíssimo escritor e um político. Saudações, Tommaso Debenedetti

Ricardo Viel, jornalista, atualmente em Lisboa, Portugal, é colunista do NR
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