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Celso Vicenzi ilustração
Marcelo Martins Ferreira*
Circula nas redes sociais um trecho de uma entrevista de José Serra ao jornalista Boris Casoy, realizada há alguns anos, em que o político faz uma menção aos “Estados Unidos do Brasil” e é corrigido pelo jornalista, que informa o nome atual: “
República Federativa do Brasil”. Lembrei-me do episódio porque 2014 será o ano de mais uma disputa presidencial e na internet não é difícil encontrar cidadãos-eleitores que ainda fazem confusão sobre as atribuições constitucionais da União, Estados e Municípios, e dos Três Poderes. Em época de campanha eleitoral, também não é difícil encontrar, por exemplo, vereadores e deputados que prometem soluções que não são da competência do parlamento que postulam. E alguns se elegem! Na internet, as críticas à má qualidade da educação, da saúde e da segurança pública no país – entre outros problemas – geralmente são debitadas única e exclusivamente ao governo federal.
Justamente por vivermos numa República Federativa, não dá para atribuir todo tipo de problema que o país enfrenta ao presidente ou, como é o caso agora, à presidenta. Num regime presidencialista, a União detém grande poder, mas não atua isoladamente. A transversalidade que põe outros atores federativos em ação é fundamental.
Se a educação ainda está muito distante do que se deseja para o país, essa conta também deve ir, proporcionalmente, para estados e municípios. Se é para reclamar das universidades públicas e dos institutos técnicos federais, a queixa deve ser endereçada, sim, à presidenta Dilma. Mas, se for escola estadual ou municipal, é preciso lembrar que o Brasil tem 27 governadores e 5.565 prefeitos. Isso sem falar nos 1.059 deputados estaduais e nos 59.500 vereadores. São eles que também precisam fiscalizar os governos estaduais e municipais e propor projetos que resultem em melhorias para os cidadãos. Acrescente-se, ainda, a esta conta, os 513 deputados federais e os 81 senadores. Assim, fica mais fácil entender o tamanho do problema, que é dar qualidade à gestão pública e impedir que interesses privados se apropriem dos recursos comuns, enriquecendo poucos e deixando migalhas à maioria.
Há, portanto, que dividir o fardo. Até mesmo com os simples cidadãos e cidadãs, sem cargos, que podem exercer com zelo e competência uma profissão, pagar os impostos devidos e educar os filhos com valores éticos. A responsabilidade aumenta quando alguém ocupa cargo relevante, seja em entidade privada, pública ou associações patronais e de trabalhadores. O grau de responsabilidade difere, mas ninguém pode reivindicar apenas os bônus.
Virou um bordão dizer “eu pago imposto”, para exigir serviço público de qualidade. O que é justo. Na crítica aos impostos, a mídia raramente informa quem é o principal agente arrecadador. Há casos, por exemplo, em que o ICMS (um imposto estadual) é o que mais incide sobre determinado produto.
A corrupção e a ineficiência são, certamente, problemas crônicos da sociedade brasileira, mas não apenas de um determinado segmento. Não podemos esquecer que muitos dos que se declaram revoltados com o baixo retorno dos impostos na verdade sequer pagam o que devem. Cálculos do Sindicato dos Procuradores da Fazenda Nacional (Sinprofaz) indicaram que em 2013 o país deixou de arrecadar cerca de R$ 415 bilhões por conta da sonegação de impostos. É quase a metade do que o país arrecada por ano. E é quatro vezes maior do que o orçamento da educação nacional, que cresceu mais de 205% na última década.
O estudo revela, ainda, que a carga tributária poderia ser reduzida em 30%, mantendo o valor atual da arrecadação, caso não houvesse sonegação. E se fosse somada ao que hoje já se arrecada, quanto mais poderia ser feito na saúde, na educação e na segurança pública? É simplório demais atribuir a um governo ou a um dos Três Poderes a culpa por séculos de interesses particulares que fizeram do país um dos campeões mundiais da desigualdade e da exclusão social. É preciso uma divisão mais honesta das responsabilidades. No mundo globalizado de hoje, há também um enorme poder das grandes empresas e conglomerados multinacionais sobre a gestão pública.
O Brasil é o único país do mundo com uma rede de saúde gratuita e aberta a toda a população. E é a única alternativa para 130 milhões de brasileiros que não têm plano de saúde. Mesmo aqueles que têm planos particulares acabam por se beneficiar do sistema público, seja em cirurgias, atendimento de emergência, campanhas de vacinação ou ações da vigilância sanitária. Boa parte dos problemas existentes na saúde deve-se, principalmente, ao orçamento ainda insuficiente e à má gestão do sistema. Um problema que não compete apenas ao governo federal. O artigo 195 da Constituição diz que a seguridade social “será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”, além de contribuições sociais. União, Estados e Municípios precisam fazer cada um a sua parte para gerir bem os recursos, venham eles de onde vierem. E a sociedade precisa apoiar as ações que pretendem destinar mais recursos ao setor. Porque a conta precisa fechar e milagres são raros.
Fosse apenas isso, já seria muito. Mas o desafio é ainda maior quando se sabe que há segmentos que atuam de várias maneiras para impedir uma boa gestão pública. Por exemplo, quando pressionam para que recursos públicos sejam destinados a projetos da iniciativa privada que, em muitos casos, trazem pouco retorno à sociedade e favorecem os setores em melhor situação econômica. São esses setores, geralmente, aqueles que mais criticam os governos, quando estes destinam boa soma de recursos para políticas sociais de largo alcance e que amparam os mais pobres. O Bolsa-Família, elogiado pela ONU e ganhador de vários prêmios internacionais como exemplo de combate à miséria, tem sido atacado sem trégua nos meios de comunicação do país. Pequenos erros ou fraudes – insignificantes no contexto geral – são transformados em justificativa para pesadas críticas, disfarçadas de boas intenções. Há os que dizem, “é bom, mas não resolve”, ou “é um projeto eleitoreiro”. Outros, mais contundentes, afirmam que “é esmola” ou “estímulo à vadiagem”. Nenhum projeto social é solução para tudo. É a somatória de vários deles que poderá proporcionar perspectivas melhores e dar mais autonomia a milhões de brasileiros.
Para isso, é preciso que o dinheiro público seja investido primordialmente em políticas que diminuam a injusta desigualdade social. E que os mais ricos paguem mais impostos, proporcionais a seus ganhos. Por que o automóvel da classe média paga imposto e lanchas, iates, jatos e helicópteros da classe rica são isentos?
Órgãos públicos são, às vezes, reféns de forças políticas e econômicas que preferem sucateá-los, de olho nos ganhos privados. Quanto pior o ensino público, mais brasileiros vão tentar pagar uma escola particular. Quanto pior estiverem os hospitais e postos de saúde da rede pública, mais facilmente se venderão os planos privados de saúde. O que nem sempre significa mais qualidade. Os bancos, as operadoras de telefonia celular e os planos privados de saúde são campeões de reclamações nos Procons. A penitenciária de Pedrinhas, no Maranhão, palco recente de horrores, é administrada pela iniciativa privada.
Até mesmo a segurança pública, quando ineficaz e negligenciada pelos governos, põe a roda da fortuna a girar para os empresários do ramo, que enchem os bolsos vendendo produtos para aumentar a segurança dos cidadãos e de suas famílias. Os vigilantes privados já são mais numerosos do que o efetivo de policiais militares e somam 35% a mais do que o total de homens das Forças Armadas. O fenômeno do crescimento da criminalidade urbana não é apenas brasileiro e tem se acentuado desde o final dos anos 70. Segundo estudo da ONU, o setor de segurança privada já emprega cerca de 20 milhões de pessoas. O número é quase o dobro da quantidade de policiais em atividade no planeta. Quem ganha muito dinheiro com a violência urbana talvez tenha menos estímulo em lutar pela paz social.
Há muito mais interesses econômicos e políticos em jogo do que supõe a vã ingenuidade dos que acreditam que o caos e a ineficiência devem-se apenas à incompetência de quem exerce o poder. Em muitos casos, a inoperância é habilmente construída para favorecer e enriquecer minorias. Por exemplo, quando os setores público e privado se unem para roubar o dinheiro que deveria ser investido para melhorar a nação. Licitações viciadas para o “amigo do amigo”, parentes, correligionários – entre outros – drenam para poucos um dinheiro que deveria servir a muitos. Outra forma de dilapidar o patrimônio público são as concessões à iniciativa privada daquele tipo “bem camarada” e sem nenhuma fiscalização sobre o cumprimento do contrato. Nem todos agem assim, mas os exemplos são muito frequentes, de norte a sul do país.
Enfim, seria ótimo se os problemas mais graves do país pudessem ser resolvidos apenas por um presidente, um governador, um prefeito, um partido político, um parlamentar, um membro do Judiciário, uma federação empresarial ou uma central de trabalhadores. O problema é geral, com as exceções de praxe daqueles que, apesar de tudo, continuam impregnados de espírito público e trabalham para dar mais oportunidades a toda a população. Porque a cultura do “toma-lá-dá-cá” e das negociatas em todas as esferas de poder é visível em todo o país. E boa parte daqueles que mais têm pressiona para ganhar novas benesses. Para os mais pobres e desorganizados, sobram migalhas e sofrimento, muito preconceito e discriminação.
Para sair desse impasse, cabe ao cidadão e à cidadã, ao eleitor e à eleitora, compreender que numa República Federativa as responsabilidades precisam ser divididas. E cobrar do vereador, do deputado, do senador, do prefeito, do governador e de quem estiver na presidência aquilo que é da sua responsabilidade – exclusiva ou compartilhada. Sem esquecer das entidades de classe, ONGs, partidos políticos, movimentos sociais, todos, enfim, que compõem a sociedade precisam assumir para si, de acordo com as suas possibilidades e potencialidades, a construção de uma sociedade mais justa e solidária. É importante não dar apoio a políticas excludentes ou se omitir diante da opressão.
Eleger bodes expiatórios é, invariavelmente, contornar os problemas e nunca encará-los na sua enorme complexidade. É esperar que nos deem o que precisa ser conquistado. É atribuir constantemente ao outro a tarefa que a todos cabe. É ser egoísta, cruel e perverso diante do sofrimento alheio. É não dividir os recursos, com preferência aos mais necessitados. É não assumir a tarefa de ser parte da solução.
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Celso Vicenzi, jornalista, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina, com atuação em rádio, TV, jornal, revista e assessoria de imprensa. Prêmio Esso de Ciência e Tecnologia. Autor de “Gol é Orgasmo”, com ilustrações de Paulo Caruso, editora Unisul. Escreve humor no tuíter @celso_vicenzi. “Tantos anos como autodidata me transformaram nisso que hoje sou: um autoignorante!”. Mantém no NR a coluna
Letras e Caracteres. Ilustração de
Marcelo Martins Ferreira, design e músico, especial para o texto