por Júnia Puglia ilustração Fernando Vianna*
Foi na novela “O clone”, megassucesso de Glória Perez, de 2001, que ouvi pela primeira vez a palavra “haram”. Ambientada numa espécie de ponte aérea entre o Brasil e o Marrocos, a novela trazia personagens muçulmanos, pela primeira vez num produto de mídia para o grande público. Com todas as críticas que se possam fazer aos exageros e caricaturas típicos das telenovelas, era fácil perceber que os tais personagens eram muito mais próximos do que distantes de nós. O que não era pouco, no imediato pós-11-de-setembro, quando o anti-islamismo e o ódio religioso se mimetizavam em nossas cabeças ignorantes. No Marrocos fabricado pela Globo, que ainda não tive oportunidade de comparar com o verdadeiro, a toda hora se dizia que algo era “haram”, pecado, errado, fora do padrão considerado aceitável para um bom muçulmano. Durante alguns meses, se tornou um bordão muito popular.
De 2001 para cá, assistimos ao recrudescimento galopante do fundamentalismo religioso, um produto da incapacidade de muitos para entender que já não há mais lugar para a imposição de princípios religiosos a todas as pessoas e da dificuldade de admitir a relevância das diferentes crenças, entre outras coisas. É praticamente impossível argumentar e obter consenso entre pessoas que se dizem emissárias de Deus ou qualquer outro nome que se dê às respectivas divindades.
Mas há duas áreas em que o consenso se obtém com certa facilidade e em torno das quais rapidamente se produzem alianças demolidoras: a opressão das mulheres e o repúdio às várias expressões da sexualidade humana. Não há nada mais ameaçador para os religiosos fundamentalistas, de qualquer crença, do que meninas e mulheres empoderadas, aptas para refletir, questionar e subverter a forma como são vistas e tratadas. Quem acompanhou as mobilizações e conferências sobre os direitos das mulheres nos últimos vinte anos sabe do que estou falando.
Aí está o Boko Haram, grupo terrorista islâmico, dedicado a atacar e eliminar a educação das meninas na Nigéria, país africano dividido entre o norte, de maioria muçulmana, e o sul, majoritariamente cristão. O próprio nome da facção significa “a educação cristã é pecado”, porém não há notícias de que tenha em algum momento se insurgido contra escolas masculinas ou meninos estudantes. Seu alvo são as meninas, que jamais deveriam ter a oportunidade de se instruir, pois nasceram para servir os homens. Depois de sequestrá-las, esses criminosos malditos dos infernos as submetem a estupros constantes e as transformam em “servas”, em suas próprias palavras. Centenas já foram assassinadas.
Acredito que para seguidores do Islã inteligentes e esclarecidos não pode haver haram mais grave do que esta ignomínia praticada contra essas adolescentes. E tudo se torna ainda mais perverso quando se constata que o governo nigeriano, de tendência cristã, tem sido no mínimo negligente no combate à atuação do Boko Haram. Afinal, quem realmente se opõe às restrições que se queiram colocar à liberdade e à autonomia das mulheres?
Enquanto isto, os fundamentalistas brasileiros, quase todos cristãos, de diferentes tendências católicas e protestantes, se irmanam na pregação do atraso, supostamente em defesa da família e dos valores originais da religião. No momento, estão comemorando sua vitória na retirada da “ideologia de gênero” como vetor das estratégias e ações do novo Plano Nacional de Educação, em discussão no Congresso Nacional. Dei-me ao trabalho de ler vários textos e assistir a vídeos em que comentam o assunto. São de estarrecer as mentiras e a confusão intencional que promovem em torno do que seria essa tal ideologia e seus alegados efeitos nefastos sobre as nossas crianças e adolescentes. Os textos disponíveis na internet são todos copiados uns dos outros, rasos como um pires, sem qualquer argumentação ou contribuição reflexiva. Chegam ao ponto de todos citarem a mesma e única fonte sueca para exemplificar os supostos horrores perpetrados pelo Estado ao estabelecer a equidade de gênero e o respeito à diversidade como princípios e práticas fundamentais da educação naquele país.
À parte as ameaças que essas pessoas geralmente enxergam em tudo aquilo que significa a promoção de direitos e oportunidades iguais para todas as pessoas, essência esquecida do Novo Testamento, entendo todo este esforço conjunto por impedir o avanço como um produto direto da mais prosaica e rasteira preguiça. De pensar, de estudar, de argumentar e de buscar consensos que realmente reflitam os interesses de todas e todos, para fora dos seus cercadinhos religiosos. Um grande haram, um grave pecado, pois, quanto menos se usa a inteligência e se praticam o respeito e a tolerância, maior o risco de que eventualmente se produzam absurdos como o Boko Haram.
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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com