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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Haram


por Júnia Puglia    ilustração Fernando Vianna*

Foi na novela “O clone”, megassucesso de Glória Perez, de 2001, que ouvi pela primeira vez a palavra “haram”. Ambientada numa espécie de ponte aérea entre o Brasil e o Marrocos, a novela trazia personagens muçulmanos, pela primeira vez num produto de mídia para o grande público. Com todas as críticas que se possam fazer aos exageros e caricaturas típicos das telenovelas, era fácil perceber que os tais personagens eram muito mais próximos do que distantes de nós. O que não era pouco, no imediato pós-11-de-setembro, quando o anti-islamismo e o ódio religioso se mimetizavam em nossas cabeças ignorantes. No Marrocos fabricado pela Globo, que ainda não tive oportunidade de comparar com o verdadeiro, a toda hora se dizia que algo era “haram”, pecado, errado, fora do padrão considerado aceitável para um bom muçulmano. Durante alguns meses, se tornou um bordão muito popular.

De 2001 para cá, assistimos ao recrudescimento galopante do fundamentalismo religioso, um produto da incapacidade de muitos para entender que já não há mais lugar para a imposição de princípios religiosos a todas as pessoas e da dificuldade de admitir a relevância das diferentes crenças, entre outras coisas. É praticamente impossível argumentar e obter consenso entre pessoas que se dizem emissárias de Deus ou qualquer outro nome que se dê às respectivas divindades.

Mas há duas áreas em que o consenso se obtém com certa facilidade e em torno das quais rapidamente se produzem alianças demolidoras: a opressão das mulheres e o repúdio às várias expressões da sexualidade humana. Não há nada mais ameaçador para os religiosos fundamentalistas, de qualquer crença, do que meninas e mulheres empoderadas, aptas para refletir, questionar e subverter a forma como são vistas e tratadas. Quem acompanhou as mobilizações e conferências sobre os direitos das mulheres nos últimos vinte anos sabe do que estou falando.

Aí está o Boko Haram, grupo terrorista islâmico, dedicado a atacar e eliminar a educação das meninas na Nigéria, país africano dividido entre o norte, de maioria muçulmana, e o sul, majoritariamente cristão. O próprio nome da facção significa “a educação cristã é pecado”, porém não há notícias de que tenha em algum momento se insurgido contra escolas masculinas ou meninos estudantes. Seu alvo são as meninas, que jamais deveriam ter a oportunidade de se instruir, pois nasceram para servir os homens. Depois de sequestrá-las, esses criminosos malditos dos infernos as submetem a estupros constantes e as transformam em “servas”, em suas próprias palavras. Centenas já foram assassinadas.

Acredito que para seguidores do Islã inteligentes e esclarecidos não pode haver haram mais grave do que esta ignomínia praticada contra essas adolescentes. E tudo se torna ainda mais perverso quando se constata que o governo nigeriano, de tendência cristã, tem sido no mínimo negligente no combate à atuação do Boko Haram. Afinal, quem realmente se opõe às restrições que se queiram colocar à liberdade e à autonomia das mulheres?

Enquanto isto, os fundamentalistas brasileiros, quase todos cristãos, de diferentes tendências católicas e protestantes, se irmanam na pregação do atraso, supostamente em defesa da família e dos valores originais da religião. No momento, estão comemorando sua vitória na retirada da “ideologia de gênero” como vetor das estratégias e ações do novo Plano Nacional de Educação, em discussão no Congresso Nacional. Dei-me ao trabalho de ler vários textos e assistir a vídeos em que comentam o assunto. São de estarrecer as mentiras e a confusão intencional que promovem em torno do que seria essa tal ideologia e seus alegados efeitos nefastos sobre as nossas crianças e adolescentes. Os textos disponíveis na internet são todos copiados uns dos outros, rasos como um pires, sem qualquer argumentação ou contribuição reflexiva. Chegam ao ponto de todos citarem a mesma e única fonte sueca para exemplificar os supostos horrores perpetrados pelo Estado ao estabelecer a equidade de gênero e o respeito à diversidade como princípios e práticas fundamentais da educação naquele país.

À parte as ameaças que essas pessoas geralmente enxergam em tudo aquilo que significa a promoção de direitos e oportunidades iguais para todas as pessoas, essência esquecida do Novo Testamento, entendo todo este esforço conjunto por impedir o avanço como um produto direto da mais prosaica e rasteira preguiça. De pensar, de estudar, de argumentar e de buscar consensos que realmente reflitam os interesses de todas e todos, para fora dos seus cercadinhos religiosos. Um grande haram, um grave pecado, pois, quanto menos se usa a inteligência e se praticam o respeito e a tolerância, maior o risco de que eventualmente se produzam absurdos como o Boko Haram.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Devemos tanto ao Jimi

1964 + 50
Histórias de pessoas de carne e osso - e também de personagens de papel - que viveram na roda viva da ditadura militar. Novos episódios toda quinta-feira.

(Episódio 9)


por Fernanda Pompeu    ilustração Fernando Carvall

Ela caiu ao tentar cobrir um ponto no Aterro do Flamengo. Tudo veloz. Quatro tiras a cercaram e um deles estourou um tapa no seu rosto. É evidente que não falaram perdeu, perdeu, pois isso é expressão dos tempos de hoje. Talvez tenham dito: dançou, dançou. Ou, o mais provável, não disseram nada.

Levaram-na para uma das tantas salas de interrogatório, dessas que tinham como mobiliário: cadeira-do-dragão, pau-de-arara, tanque de afogamento. Desceram o pau. Fizeram perguntas. E o aparelho? Quem é o chefe? Onde se escondem fulano, sicrana, beltrano? Qual o endereço da gráfica?

A moça falou? Não falou? Tanto faz. O fato é que após a prisão no Aterro, não se soube mais dela. Ela não foi vista, nem subindo nem descendo, as ladeiras de Santa Teresa. Não foi vista na praia Adão e Eva em Niterói. Não foi vista tomando chope no Amarelinho da Cinelândia. Não foi vista na primeira passeata feminista. Não foi vista comendo hot-dog no Bob´s do centro do Rio.

Escafederam com ela. Nenhuma pista, nenhum osso, nenhuma cinza. Mas ele a reteve na memória. Não. Isso é pouco. Por décadas, ele usou linha e agulha para bordar as recordações. Ela rindo. Ela dormindo. Ela chorando. Ela entrando com ele no mar num réveillon em Búzios. Ele chamava essas imagens de Arquivo da Amada.

Arquivo afetivo, é claro. Nada a ver com o arquivo do Dops, no qual constava, em linguagem burocrática-policial, a mentira de que ela havia fugido e posteriormente sido vitimada pelos próprios companheiros da organização. Era bem assim que os agentes da repressão se esquivavam de qualquer indagação.

Como um devoto, uma vez ao mês, ele visitou o Aterro do Flamengo. No começo, havia choro e emoção em profusão. Por anos, ele vivenciou o luto. Até as florezinhas e as borboletas pareciam lastimar a ausência da moça. Depois, o sentimento se tornou mais fluido, menos explicável, apesar de persistir doloroso.

Por muitos domingos, ele se deitava na grama e soltava no gravador cassete e mais tarde no walkman a versão do No Woman, No Cry, gravada por Gilberto Gil: Amigos presos, Amigos sumindo assim, Prá nunca mais. A letra era lâmina afiada rasgando seu corpo. Mas de maneira estranha, ou não, ele sentia prazer em curtir essa canção.

Depois houve a época em que ele se ligou na guitarra de Jimi Hendrix, o imenso. Paixão tardia, mas redonda. Ele até se lembrava, achando graça, que a amada havia apoiado, no final dos 1960, uma passeata contra as guitarras elétricas. Imposição de gringo, ela dizia. Mas ele passara a adorar o som de Jimi. A cara de Jimi. Quando adotou o filho, na época com cinco meses, pôs o nome de Jimi.

Afinal.

Hoje ele tem rareado as excursões ao Aterro do Flamengo. Está custoso caminhar. Doem os quadris e principalmente os joelhos. Mas seu coração continua batendo por ela. A desaparecida. Volta em meia ele assobia: Não, não chore mais. Menina, não chore assim. Hê! Hê!

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Fernanda Pompeu é escritora e redatora. Fernando Carvall é o homem da arte.

terça-feira, 27 de maio de 2014

Eu, machista?

por Celso Vicenzi*

Pesquisa recente do Inter-Parliament Union, sobre as mulheres no Parlamento, mostrou que o Brasil aparece apenas na posição 125, entre 150 países. Na Câmara Federal, dos 513 parlamentares, apenas 44 são mulheres. No entanto, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral de dezembro passado, 52% do eleitorado é feminino. Há mais candidaturas masculinas, mas, ainda assim, não faltam mulheres para serem votadas. O que explica, então, tamanho descompasso?

Nas prefeituras, o problema se repete. As mulheres são prefeitas em apenas 12% dos 5.570 municípios do Brasil. No Sul do país a situação é ainda pior. O Rio Grande do Sul e Santa Catarina – quem diria! – são os estados com o menor percentual de prefeitas eleitas. Apenas 37 cidades gaúchas elegeram prefeitas, ou seja, 7,44% do total. Santa Catarina vem em segundo, com 7,79%.

Isso prova que o machismo ainda está muito enraizado na sociedade brasileira. Com dupla ou tripla jornada de trabalho, além de outros fatores, a atividade política é muito difícil para uma mulher casada, por exemplo. E mesmo quando ela consegue vencer essas barreiras, não recebe o voto de confiança da maioria das mulheres. E dos homens!

Claro, você e eu não somos machistas! Ou, pelo menos, achamos que não, embora a probabilidade não esteja ao nosso lado.

Na melhor das hipóteses, se não somos machistas, somos péssimos em matemática. Pesquisa da Expertise informa que 75% dos brasileiros percebem a nossa sociedade como machista. No entanto, quando solicitados a fazer uma autoavaliação, apenas um terço dos homens entrevistados admite ser machista ou “um pouco machista”. Conclusão: a conta não fecha, o problema é sempre o outro.

Resultado dessa cultura patriarcal que há milênios domina o mundo, o machismo é incorporado também por muitas mulheres, que reproduzem os valores mais conservadores. Isso torna o problema da representação política ainda mais complexo. Votar em uma mulher não é garantia de que ela defenderá, por exemplo, avanços na luta feminista. Mas é fato que, quanto mais equilibrado estiver o Parlamento em relação à representação política, de gênero, de classe, de etnia, dos mais diferentes segmentos da sociedade, mais aumentam as chances de que as demandas específicas de cada grupo social possam ser legitimadas e acolhidas em novas leis, novos costumes, fazendo avançar a democracia.

Admitir a existência de um problema é o primeiro passo para a resolução. Não é fácil, pois todos nós construímos uma boa imagem – necessária – de si. Mas quando todos esses dados apontam numa mesma direção, fica difícil negar.

Eu, machista?

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Celso Vicenzi, jornalista, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina, com atuação em rádio, TV, jornal, revista e assessoria de imprensa. Prêmio Esso de Ciência e Tecnologia. Autor de “Gol é Orgasmo”, com ilustrações de Paulo Caruso, editora Unisul. Escreve humor no tuíter @celso_vicenzi. “Tantos anos como autodidata me transformaram nisso que hoje sou: um autoignorante!”. Mantém no NR a coluna Letras e Caracteres.

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Engravidei, pari cavalos e aprendi a olhar salões populares de beleza com ternura

por Cidinha da Silva*

Tudo é festa, música, alegria e cor quando um livro de amor e poesia, o Baú de Miudezas, Sol e Chuva galopa como unicórnio no horizonte da vida de todo dia que por vezes nos apequena. Tudo é abundância quando a flecha de Mutalambô acerta os corações que desbordam na água maior de Kissimbi.

Entretanto, diante do livro novo e do retorno de peça vitoriosa e transformadora aos palcos, o reino vil dos repolhos acéfalos e estéreis se manifesta e macula com saliva amarga as costas da “insuportável” autora. O reino da fertilidade ri em resposta, gargalha e dá beijinho no ombro para os repolhos. Volta ao amor, sem rancor, depois do beijinho no ombro gozador.

Escrever a dramaturgia de Engravidei, Pari Cavalos e Aprendi a Voar Sem Asas me expôs a violências, solidão e desencantos, quando não, desesperos, muito comuns à vivência das mulheres negras brasileiras. Preciosa, de Sapphire, manifestou-se com virulência inesperada, desconhecida de meus sentidos e experiências. E, atendendo ao imperativo dessa lava incandescente, escrevi o texto teatral, como muitos dizem (todos homens expectadores), sem refresco, mas com a expectativa de que a lava passado o caos seja o mais poderoso fertilizante do renascimento.

Porém, nem tudo foi dor, a relação das mulheres populares com os salões de beleza, também populares, porque de baixo custo e muito acesso, me humanizou. Devo confessar que antes do Pari Cavalos achava aquele ambiente insuportável, até degradante. Continuo não gostando, mas gotas de entendimento umedecem as raízes do cactos que carrego a tiracolo.

O salão de cabeleireiros popular é divã sem o aparato de Freud ou Lacan para quem não consegue pagar sequer psicoterapias alternativas executadas por profissionais comprometidos com a saúde mental desse público. Além de divã para auto-análise da cliente da vez, assessorada pelas profissionais e demais colegas atendidas, a cadeira do salão popular é palco de devaneios, de alívio de frustrações pela conversa incessante, da cura pela palavra, mesmo que irrefletida, e da busca voraz da beleza vendida no mercado.

Fazer-se bela nos padrões da moda é mais do que o desejo incontido de aceitação social, de legitimação de um lugar escravizado de mulher, é um devir de desejo maior, aquele que quer, pela beleza conquistada e comprada, portanto, pertencente a ela, aplacar o desamor de não ser vista nem desejada, ou, pelo menos, não na medida que gostaria ou mereceria.

É mesmo complexo o universo de um salão popular de beleza com todo o imaginário evocado pela novela, do homem perfeito, cheiroso, carinhoso, pegador de mulher única, ela; dos filhos em casa, quietinhos, esquecidos por alguns minutos da existência da mãe; do apoio de outra mulher para fazer todo o trabalho de casa. Há que haver alguma ternura para decodificá-lo.

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escritora, Cidinha da Silva mantém a coluna semanal Dublê de Ogum.

domingo, 25 de maio de 2014

Real e Atlético de Madrid na Liga dos Campeões

por Pedro Mox*

Sete quilômetros separam, em Madri, o estádio Santiago Bernabéu do Vicente Calderón. O primeiro é casa do Real Madrid Club de Fútbol: time recheado de estrelas, mais vezes campeão continental, elenco mais caro do mundo. O segundo, casa do Club Atlético de Madrid: atual campeão nacional, rival citadino do Real, “primo pobre” da capital espanhola. Quis o destino que a primeira final da Liga dos Campeões da Uefa entre clubes da mesma cidade colocasse frente a frente os rivais madrilenhos.

595 quilômetros separarou a terra dos finalistas do palco do jogo, Lisboa. O Estádio da Luz, casa do Benfica, foi o escolhido para receber a final da temporada 2013/2014. Ao Atlético seria a glória, a confirmação de uma temporada perfeita. Treinado desde 2011 pelo argentino Diego Simeone, seria o ápice após levantar, nos últimos anos, La Liga, Copa do Rei e Liga Europa. Ao Real, a salvação após péssima campanha no nacional. Coube ao experiente Carlo Ancelotti arrumar os vestiários e tentar dar rumo ao galáctico plantel madridista.

Com a bola rolando, a estratégia do argentino parecia funcionar – a despeito da substituição de Diego Costa com menos de dez minutos. Consistente marcação no meio de campo, aliada a ataques rápidos pelos lados, encontravam um adversário perdido, apesar da qualidade de seus delanteros. O gol do uruguaio Godín, aos 36 minutos do primeiro tempo, era o que os atleticanos precisavam para manter a tática e erguer a taça “orelhuda”. O segundo tempo não trouxe muitas mudanças, até a entrada de Marcelo e Isco.

Mantivesse sua linha de quatro homens marcando no meio campo, e eventualmente estocando o gol de Iker Casillas, porventura o resultado seria outro. Mas o Atlético, com o passar do tempo, parecia sentir cada vez mas a troféu em suas mãos; e tal ansiedade em campo significou chamar o Real para sua área. E na desorganização ofensiva dos merengues versus nervosismo defensivo colchonero, a primeira levou a melhor.

Cinco minutos separavam os atletis da consagração. Entretanto, é difícil segurar Di Maria, Cristiano Ronaldo e cia. E foi num chute do argentino que Bale aproveitou o rebote, empatando o derby nos acréscimos da etapa final. O resultado improvável, tão próximo aos comandados de Simeone, começava a ruir. O gol, àquela altura, no placar representava apenas o empate; porém, na alma, era uma derrota.

Na prorrogação apenas uma equipe jogou. O peso da desgastante temporada era nítido nas pernas do reduzido grupo rojiblanco. A luta, a entrega, a dedicação que propiciou épicas vitórias sucumbiu ante o vigor e a qualidade do Real – o gol de Marcelo é prova disso. A torcida que passou todo o tempo quieta agora vibrava; a que cantou durante 90 minutos calou.

Nem de longe o futebol é um esporte justo, e fosse minha torcida o caneco teria ido para o Vicente Calderón. Quiseram os deuses do futebol que, em vez de um inédito vencedor, essa temporada da Liga se transformasse em la décima, o décimo título do Real Madrid. Entretanto, há de ser reconhecido, e muito, o vice campeão. O placar de 4x1 não representa em nada a história da partida, na qual o 11 espartano do atlético lutou como pode contra os persas madridistas.

O reconhecimento da torcida colchonera, que ao final da partida aplaudiu seus heróis, demonstra o quanto a equipe conquistou. A taça não veio, mas para mim, nada separa esse Atlético de um time que fez história.

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Em tempo: Note-se a bela organização pré-jogo da Uefa. Tanto a cerimônia no gramado quanto as opções fora do estádio aos torcedores. Tornam o entretenimento maior que os 90 (nesse caso, 120) minutos de bola rolando; o ideal é chegar com duas horas de antecedência para sentir o clima, passear pelos estandes, comprar um souvenir. Da ideia do quanto a Conmebol poderia aprender.

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*Pedro Mox, jornalista e fotógrafo, especial para o NR

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Valparaíso não merece


por Júnia Puglia      ilustração Fernando Vianna*

A ideia era passar dois ou três dias em Pucón por minha própria conta, mas acabei desistindo devido à chuva incessante que cai no sul do Chile. Decidi, então, conhecer Vaparaíso e Viña del Mar, onde, apesar das várias visitas anteriores ao país, ainda não havia chegado. É que eu vinha sempre a trabalho, na correria. Agora chego como uma turista à toa, tão à toa que decido entrar num tour de um dia, a bordo de uma van. (Desnecessário mencionar que sete dos dez passageiros são brasileños, incluindo o casal “japonês”.)

Valparaíso é o porto marítimo mais importante do Chile. Já teve seus dias de maior glória, pelo salitre, pelo cobre e por ter sido escala obrigatória dos navios que saíam de Nova York e outros portos espalhados pelo mundo, levando todo tipo de aventureiro para a corrida do ouro na Califórnia. Imagine que, para ir da costa leste à costa oeste dos Estados Unidos, a pessoa tinha que fazer a volta do continente americano, passando do Atlântico ao Pacífico pelas águas turbulentas do Cabo Horn, e parar no porto chileno para descansar e reabastecer o navio. Veio gente do mundo inteiro, no ritmo do frisson global retratado em muitos livros e filmes. A inauguração do Canal do Panamá, em 1914, acabou com o intenso tráfego de passageiros, mas, felizmente, as marcas dessa gente toda que passou por aqui já estavam impressas na cidade.

Nada pesquisado no Google, mas relatado pelo nosso compenetrado guia, à medida que nos aproximávamos da cidade. Num estalo, lembrei-me de já ter lido sobre isto, há muito tempo, num livro de Isabel Allende, “Retrato em sépia”, ambientado nessa Valparaíso da corrida do ouro, e que estava perdido no sétimo cérebro. É bom sentir que a memória ainda é minha amiga. Instantaneamente, voltou-me o clima do porto coalhado de desconhecidos mal encarados, hotéis sórdidos, bordéis, contrabandistas, pintores, poetas, escritores, bêbados, estivadores, falsários e piratas. O que vi hoje é ladeado por autopistas modernas e abriga uns navios grandões, sobre os quais se encaixam gruas, como num jogo de Lego em tamanho gigante.

Um emaranhado de ruas, ruelas, planos inclinados, praças, edifícios e casas de todo jeito acompanha o sobe e desce das dezenas de morros que compõem a cidade, misturando estilos e épocas até não poder mais, vigiados pela bruma estacionada sobre o Pacífico. Fiquei com uma vontade danada de me enfiar por aqueles labirintos, onde, tenho certeza, encontraria coisas do arco da velha. Já aprendi que muitas cidades são senhoras discretas, só revelam seus segredos a quem os procura. Mas essa vida de turista programada não permite improvisar, então me submeto aos desígnios do tour, volto para a van e vou ver o relógio de flores e o moai de Viña del Mar.

Diga-se de passagem, em momento algum avistamos qualquer vestígio do terrível incêndio que há poucas semanas consumiu mais de três mil casas aqui. Dizem que foi num ponto voltado para outro lado, aonde a nossa correria não permite chegar.

Dá para notar rapidinho que Viña está para Valparaíso como a Barra para o Rio, ou seja, é um lugar construído para acolher os ricos que não queriam mais conviver com o furdunço ao lado, só que em escala bem menor, e o mesmo espírito de Miami.

Você não merece esta visita ridícula, Valparaíso. Prometo voltar e te fazer justiça.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

quinta-feira, 22 de maio de 2014

As gêmeas e o ditador

1964 + 50
Histórias de pessoas de carne e osso - e também de personagens de papel - que viveram na roda viva da ditadura militar. Novos episódios toda quinta-feira.

(Episódio 8)


por Fernanda Pompeu  ilustração Fernando Carvall

Ana Maria e Maria Ana tinham oito anos. Elas estudavam na Escola Galinho Carijó, no bairro da Tijuca, Rio de Janeiro. Eram chamadas, conhecidas, referidas como as gêmeas. Tal insensibilidade dos adultos causava danos no coração das irmãs. Cada uma sentia sua individualidade roubada. Não bastasse a chatice da mãe vesti-las iguaizinhas e do pai sempre falar com elas no plural.

O fato é que a professora Eulália havia escolhido Ana Maria e Maria Ana para entregarem dois buquês de flores ao presidente da República. Ele viria inaugurar um centro de reabilitação física para crianças carentes, ligado ao Galinho Carijó. Tratava-se de evento importantíssimo, pois quantas escolas viviam o privilégio da visita do homem mais poderoso do país? Quase nenhuma.

O presidente de turno era Emílio Garrastazu Médici. Maria Ana detestou o nome Garrastazu, por difícil de pronunciar. Já Ana Maria não gostou nada da cara do senhor. Olhando o retrato do sujeito com a faixa presidencial pendurada no peito, ela lembrou (melhor, associou) com o seu Antonino da quitanda. Este havia passado a mão no corpo da menina, num abuso que ela não teve coragem de relatar para os pais.

Ou seja, se para os adultos o momento era de júbilo, para as gêmeas era constrangedor. Dona Eulália resolveu ensaiar a entrega dos buquês. Insistiu que as meninas dessem passos suaves e ritmados, "pois a suavidade e o ritmo fazem parte do feminino", ela pontuou. Depois de muito adestrar, Ana Maria e Maria Ana conseguiram.

Na véspera da visita, em casa, o tio das gêmeas resolveu contar para as sobrinhas quem era o Emílio Garrastazu Médici. Disse ele: "Trata-se de um general do Exército, estilo linha dura. Ele acoberta as torturas contra presos políticos. Sabe muito bem de mortes e desaparecimentos de opositores. Seu lado simpático é gostar de futebol e de canções nacionalistas: Eu te amo, meu Brasil, eu te amo. Meu coração é verde, amarelo, branco, azul anil."

No dia seguinte, estava tudo preparado para a festa. A escola colorida, as gêmeas segurando cada uma seu buquê. Mas um compromisso de última hora impediu a presença do general no Galinho Carijó. Foi triste para os professores e as mães. Mas Ana Maria e Maria Ana suspiraram de alívio. Veja só como o mundo pode ser um lugar feliz.

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Fernanda Pompeu é escritora e redatora. Fernando Carvall é o homem da arte.

terça-feira, 20 de maio de 2014

Oração da terça!

por Cidinha da Silva*

Terça-feira é dia d’Ogum, camarada. Conheço bem essas coisas. Para cima de mim não cola essa patacoada de terça da grande batalha espiritual contra o mal em sua Igreja. Até entendo, pois é de seu conhecimento que na rua Ogum trabalha, e antes do culto você já entregou o que é dele, assim garante o funcionamento da coisa e posa de milagreiro.

Ogum é sujeito bom. Arrisco a pensar que se diverte com sua conversa mole de quebrar as sete forças do mal, com esse jeito estúpido e nada criativo de tentar manipular os símbolos dele. Estou falando do numeral sete, porque a maldade é por conta de sua cabeça. Mas, tome tento; o cara é bom, porém, quando embravece, saia da frente, porque não sobra cabeça sobre pescoço. A sua já está na mira da espada, abra o olho!

Diferente da mensagem do panfleto entregue nas estações de trem, às 18h (hora de Exu, bem sei e você também sabe) para as pessoas que chegam em casa cansadas e desesperançadas, saiba que o povo dispõe comida, bebida, moedas, luz e flores nas encruzas, porque aqueles são lugares de confluência energética.

Recebida a entrega orientada (é tudo troca), o povo da rua cuida de espalhar no mundo as coisas do mundo e de quem vive no mundo em interação com as forças do universo: O amor/o ódio, a admiração/a inveja, a saúde/a doença, o bem-querer/o mal-querer, a luz/a sombra. Tudo varia na intenção de quem manipula a força.

A estrada aberta pode dar num beco sem saída, numa bifurcação ou em direções múltiplas, depende da mestria e dos destinos espirituais do caminheiro. Os sentidos que se encontram e também se desconectam são o princípio de tudo; a encruza, então, é lugar de principiar as coisas.

Com negócio de cemitério não mexo, mas certamente você tem muita experiência sobre o assunto. Que o digam os concorrentes na caçada ao rebanho que você deve enterrar por lá.

Os trabalhos nas pedreiras, cachoeiras, rios e matas são mobilizadores das forças da natureza.

As pedras nos trazem a noção de resistência, silêncio e a compreensão do quanto somos ínfimos diante da criação.

As raízes, flores e frutos da mata, tudo o que se transforma, apresentam a impermanência do que nasce e morre, os novos estados a cada estação.

Os rios e cachoeiras nos ensinam, água que brota não cessa, cria e recria a vida, nutre segredos tal qual o rio, calmo a nossos olhos, mas polvilhado de redemoinhos e quedas.

O mar nos dá o sentido da travessia, da profundidade de sentimentos, da imensidão de horizontes, das forças maiores que fazem surgir da inconstância das ondas, a serenidade em nós.

Orixá é poesia. É amor. É lamparina acesa na noite dos tempos. É o zelo silencioso pela energia vital e pela harmonia da vida na Terra.

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 escritora, Cidinha da Silva mantém a coluna semanal Dublê de Ogum.

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Esquina


por Júnia Puglia    ilustração Fernando Vianna*

Uma esquina do mundo, que os gaúchos consideram sua casa, onde se toma o mate e se come muita carne, sem culpa.

O Uruguai está na ordem do dia global, graças, principalmente, a José Mujica, o presidente boa praça, que diz o que pensa e age conforme o que pensa e diz. Virou celebridade pela ave rara que é, numa posição na qual o que mais se vê é gente que vende a alma para juntar e encompridar o poder. Mujica se expressa com tanta sinceridade e naturalidade, que chega a soar ingênuo. Talvez por isto seja quase impossível duvidar do que diz. Numa entrevista que deu à TV espanhola, faz alguns meses, falou, entre outras coisas, sobre a necessidade de ser solidário com as mulheres que se veem sozinhas para criar seus filhos. Falou da solidão e do abandono em que muitas delas vivem, com uma simplicidade e uma solidariedade que, independentemente da posição política, não podem ser senão genuínas. Às vezes, nos faz esquecer o homem culto e viajado que é. Com seu jeito, estilo de vida, opiniões e decisões, pôs seu pequeno país no mapa.

Décadas atrás, ouvi alguém dizer que admirava muito o Uruguai, por ter erradicado o analfabetismo nos idos de 1920. Minha hospedeira uruguaia confirma, acrescentando que seu país só chegou a ser esta sociedade culta e avançada porque há quase cem anos oferece ensino laico, gratuito e obrigatório a todas as suas crianças – um óbvio nada óbvio, quando no Brasil patinamos no caminho de reformas educacionais tímidas, e sobre as quais convicções religiosas têm prevalecido de forma constrangedora. Há poucos dias, Mujica abriu um programa de acolhimento de crianças sírias, para repartir o que tem a oferecer. Sempre se pode argumentar que tudo fica mais fácil num país pequeno, mas nem os pequenos chegam a lugar algum sem trabalho, compromisso e visão de longo prazo.

Recentemente, a despenalização do aborto foi confirmada por mais de noventa por cento dos eleitores, numa proposta de revogação da lei de interrupção da gravidez. Quer mais? Mujica comprou a briga e propôs legalizar o uso recreativo da maconha, um primeiro passo absolutamente ousado rumo à desconstrução do narcotráfico e da guerra às drogas, perdida, que já custou incontáveis vidas e quantidades colossais de dinheiro no mundo todo, corroendo as possibilidades de desenvolvimento de países inteiros, sem nem sequer começar a resolver o problema que se propôs abordar, muito ao contrário. Mais uma? Vão trazer para cá prisioneiros de Guantánamo, aqueles que não podem ser libertados porque ninguém os quer.

Aqui se vive em câmera lenta. Nada da correria e da ansiedade a que estamos acostumados. Os uruguaios são cálidos e despojados. Todo mundo se conhece, se encontra e conversa. Atualmente, faz parte do anedotário local a estima e o afeto conquistados pela embaixadora dos Estados Unidos – quem diria? Até mesmo em Montevidéu, ladeada de fio a pavio por uma rambla que acompanha por muitos quilômetros a linha do rio-mar, que se vê por todo lado, nada de gastar longas horas e a paciência no trânsito. Uma esquina simpática, velha conhecida, onde se discute futebol e política, muita política, no melhor sentido, enquanto sopra sem parar um vento que vem dos quatro cantos direto nas orelhas da gente.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Cabeça no capacete

1964 + 50
Histórias de pessoas de carne e osso - e também de personagens de papel - que viveram na roda viva da ditadura militar. Novos episódios toda quinta-feira.

(Episódio 7)


por Fernanda Pompeu    ilustração Fernando Carvall

Faz uns dias que o general Olympio Mourão Filho anda pisando duro nas ideias. Pôs todo o quartel em prontidão. Ontem fez uma preleção para as tropas: Vamos lutar pelo Brasil contra o comunismo! Só os fracos e frouxos assistem à comunização da nossa pátria sem pegar em armas. Nós, o exército brasileiro, vamos cortar as nove cabeças da Hydra vermelha. Ele seguiu falando muito e bonito.

Quando eu era menino, lá em Curvelo, conheci um comunista de carne e osso. Era amigo do meu avô. Sapateiro como ele. Chama-se Tonho e residia em Niterói. Acho que ainda reside. Porque se ele tivesse morrido, meu avó teria comentado. Certo verão, Tonho foi de visita na casa do meu avô, passou uns dias. Eu tinha meio medo dele. Pois minha professora, irmã Angelina, dizia que comunista comia criancinhas.

Mas o Tonho não me comeu. Ao contrário, foi simpático. Dedicou um pouco de sua atenção para mim. De noite, apontou no céu estrelas. Disse até o nome de algumas delas. Fiquei confuso com um comunista que gostava de estrelas. Depois, memória que adormece, me esqueci completamente do amigo do meu avô.

Agora voltei a lembrar dele por conta do general Mourão Filho. Fico imaginando quantos Tonhos vamos ter que enfrentar no Rio de Janeiro. Pois é para lá que a tropa está indo. Os tanques de guerra já fazem manobras no pátio. Desta vez, a coisa é séria. O Jango está com as horas contadas.

Eu mesmo nunca fui com a cara do presidente. Nem concordo com essa história de reforma agrária. Onde já se viu tirar a terra dos outros? Cada qual com o seu qual. O mundo sempre teve ricos e pobres. Brancos e negros. Mulheres e homens. Deus escreveu um destino para todos eles. Os pobres ficarão ricos no reino do Senhor. Os ricos vão prestar contas tintim por tintim. Os negros têm talento para servir, para praticar trabalhos braçais ou miúdos. As mulheres nasceram para engravidar da espécie e serem companheiras dos homens.

Nós, os homens, nascemos para proteger as mulheres e comandar as mudanças do mundo. Desconfio que estamos marchando para ajeitar as coisas. Para recolocar o que foi tirado do lugar. Os comunas gostam de bagunça. Enfiam bobagens na cabeça dos jovens e dos trabalhadores. Os sindicalistas também são o diabo. Querem fazer greve toda semana.

Trinta e um de março de 1964, lembrei que é aniversário da minha mãe. Dona Regina, a maior cozinheira das Minas Gerais. Uma mulher corajosa. Suportou os berros do meu avô até se casar com o meu pai. Depois teve que aguentar a violência de papai quando bebia. Mas ela nunca disse um ai, um ui. Dona Regina sabe que quando nascemos nossa vida inteira já está escrita. Depois da morte, Deus na certa vai explicar porque disso, porque daquilo outro.

Quando a revolução acabar, tenho que arranjar um jeito de escrever uma cartinha para minha mãe. Acredito que ela ficará orgulhosa deste filho que luta para que tudo siga em ordem. Cuida para que o mundo gire do mesmo jeitinho com que sempre girou. Galinhas põem ovos, garanhões cobrem éguas, o sol nasce e morre todos os dias. Vamos nessa, meu general!

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Fernanda Pompeu é escritora e redatora. Fernando Carvall é o homem da arte.

quarta-feira, 14 de maio de 2014

Medo e culpa na prática de exercício


por Alexandre Luzzi   ilustração Marcelo Martins Ferreira*

É comum ouvirmos das pessoas que há uma relação de causalidade entre a prática de exercícios físicos e o conceito de saúde. É um posicionamento com raízes no consenso encabeçado, principalmente, pela comunidade médica e científica.

O certo e o errado, as relações de funcionalidade, os processos de intervenção em nosso próprio corpo, em nossas vidas, o que fazemos, o quanto fazemos, são mediados pelos manuais da ciência. Quando alguém quer fundamentar um argumento como “a verdade” diz que “os estudos científicos comprovam”.

Agora, se mudarmos essa perspectiva do sentido e do significado sobre o que entendemos como saúde a relação de causalidade é colocada em “xeque”. A maioria de nós assume que praticar exercícios é bom para a saúde e determinante para o pleno desenvolvimento em outros âmbitos de nossas vidas.

Pergunto: quais são as razões de tanta dificuldade em aderir a uma prática e uma rotina de exercícios? Ausência de tempo, muito trabalho, filhos, falta de locais adequados, inadequação em relação aos ambientes oferecidos, pouca oferta de modalidades interessantes, incompetência profissional na prestação de serviço, cansaço, desinteresse, enfim... a lista é grande.

Observo diariamente pessoas que tentam iniciar uma prática corporal e desistem nas primeiras semanas. Tenho consciência que as barreiras citadas acima podem se tornar intransponíveis. No entanto, pouco iluminada pelos holofotes da nossa razão é a injunção exercício físico e saúde, essa, sim, a maior de todas as barreiras.

Sugiro ao leitor um pequeno exercício para melhor compreensão. Pegue um pedaço de papel e, em poucas linhas, escreva o que significa para você a palavra saúde. Em linhas gerais, perceberá que são as condições negativas que fazem a saúde existir. Ou seja, a saúde só pode ter sentido quando relacionada à doença. Logo, o principal elemento utilizado, de forma deliberada, para motivá-lo a praticar exercícios é uma emoção chamada medo.

Caso optem ao sedentarismo, o convencimento à prática de exercícios virá da alimentação do medo de doenças e a contrapartida dessa engrenagem gera um outro sentimento que conhecemos como culpa. Eis uma dupla quase imbatível para te convencer a praticar exercícios. E se você não praticar e adoecer: "a culpa é sua!"

Quando o sujeito se propõe a uma prática corporal, o caminho mais curto é a ressignificação, ou seja, essa adesão se situa na possibilidade de criação de um novo sentido que surge a partir da qualidade do encontro consigo mesmo e com o outro.

O medo e o sentimento de culpa puxam nossa percepção para o nível onde os imperativos ideológicos sobre atividade física e saúde são operados e reduzem toda a possibilidade de resignificação de sentido. Preso a essa rede de sentido, o sujeito sucumbi à demanda de esforço para sustentação de qualquer prática corporal, já que todo sentido que o mobiliza é externo a ele mesmo.

Concorda comigo o Professor de Educação Física Flávio Soares Alves ao afirmar que: “Quando se dobra a atenção sobre uma prática corporal e se força a incuti-la como exercício regular de cuidado, tal movimento pode ser estimulado pela força imperativa dos ideais vigentes na esfera pública, ou por um movimento original de cuidado que não abre mão de si mesmo frente à presença insondável do ideológico.” Para ele, “enquanto no primeiro caso a prática não passa pelos crivos da adesão, no segundo o sujeito realmente se apropria da prática que realiza e faz deste movimento um exercício de cuidado consigo e com o outro.”

A educação para uma ciência positivista predomina na cultura moderna e a Educação Física parece ser afetada por isso, situação na qual predomina uma visão extremamente tecnicista e biológica do corpo humano, esvaziando de suas práticas um sentido maior para o movimento que não seja a prevenção de doenças, a estética e o desempenho motor em níveis máximos, excluindo do trabalho com o corpo uma percepção maior do mesmo – o que sentimos ao movimentá-lo, as relações desse corpo com a cultura, com o outro e com a natureza.

No próximo texto vou mostrar ao leitor como uma modalidade como o Pilates, se bem conduzida, pode coincidir com essa nova proposta.

* * * * * * * *

*Professor de Educação Física, capoeirista, Alexandre Luzzi coordena o espaço Tai Ken e mantém a coluna mensal Corpo a Corpo. Marcelo Martins Ferreira, ilustrador, design e músico, especial para o texto

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Inversão de sentidos

por Cidinha da Silva*

Ela considerava aquele o dia dela. Eu movia rios e montanhas para estar com ela, porque era algo muito importante para sua localização no mundo.

Um dia ela se foi e, deliberadamente, esqueci que o dia das mães existia. Permiti a mim mesma a liberdade de não felicitar ninguém pelo marco ocidental do comércio de afetos, nem mesmo as mulheres caras a mim, para as quais a maternidade era algo fundamental. Livre, libertada, liberta da opressão sentimentalista do dia das mães, me tornei.

Veio um dia novo e voltei a me lembrar que havia um domingo em maio dedicado a elas. Conheci uma mulher que perdera o filho ao nascer, cuja mãe telefonava no dia das mães para lembrá-la de que tinha sido mãe um dia e aquele era o dia dela também.

Veio o mais novo dos dias, aquele em que conheci a mulher que me ensinaria a ser mãe, a que mais admirei, venerei pelo amor e pela tenacidade, pela certeza da escolha, pelos filhos íntegros e belos que educou. O princípio e o fim dentro de casa, na própria prole, Exu e Oxalá, como ela dizia.

Mas ela desistiu de tudo e só restou no ar, no lugar dos “parabéns pelo dia das mães”, do meu tempo, o “feliz dia das mães”, de hoje.

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escritora, Cidinha da Silva mantém a coluna semanal Dublê de Ogum.

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Luz de maio


por Júnia Puglia   ilustração Fernando Vianna*

Todo mundo que se dedica a escrever já falou sobre a angústia de encarar a folha em branco, quero dizer, a tela vazia. Seja para uma crônica semanal ou um romance de quinhentas páginas, de algum jeito tem que começar, e a primeira letrinha é um sofrimento danado. Acabei de ler um cronista da Folha descrevendo a luta para cumprir o prazo e encher a tela com algo que prenda a atenção e dialogue com o leitor. Além de vencer o branco, queremos ser lidos. É assim: quem escreve quer ser lido, quem compõe ou canta quer ser ouvido, quem atua quer plateia, e por aí vai. Somos carentes crônicos, sem trocadilho.

Croniqueiros como eu lidam com um ser amorfo, indefinido, o ilustríssimo senhor leitor. Partimos do princípio de que nossos causos, impressões e comentários podem interessar a outras pessoas. Além dos gatos pingados de familiares e amigos, que, aliás, dão a maior força, estão os muitos que não conhecemos, não temos ideia de quem sejam, mas que dormem, acordam, sentem, comem, se vestem, tomam banho, trabalham, reclamam, gostam, desgostam, amam mais ou menos, como a gente, como todo mundo. Pensamos nelas o tempo todo, se vão gostar de ler sobre o papo ouvido no caixa do supermercado ou alguma lembrança que nos vem à memória enquanto dirigimos.

Webcronistas – nome chique à beça, que me foi apresentado pela Fernanda Pompeu – que somos, conversamos com um ser ainda mais indefinido, que é o fuçador do espaço virtual. Se antes os periódicos impressos podiam fazer um mapeio mais ou menos confiável de quem eram e onde estavam as pessoas que os compravam, liam e compartilhavam com a família, vizinhos, amigos e colegas, hoje o que postamos na internet fica lá, disponível para quem fala brasileiro, em qualquer canto desse mundão, e tem acesso a um equipamento conectado à internet, a qualquer momento. O prazo de validade fica por conta do freguês. De minha parte, não tenho a menor ideia de até onde chegam as maltraçadas linhas que publico aqui. Será que alguém me lê em Belém, Frankfurt, Nazaré das Farinhas ou Passo Fundo? Em Cingapura, Maputo, Alexânia ou Guadalajara?

Não bastassem as minhas caraminholas, o Fernando Vianna, de cujo coração ilustrador tenho a sorte de me valer, me manda uma mensagem choramingando que eu devia escrever também sobre a angústia de quem tem que encontrar uma imagem para um texto, dentro do prazo, evidentemente. Um carente ilustre.

Mas eu queria mesmo era falar da luz de maio. Findos a chuvarada e o calor, minhas narinas captam o que já chegou também às pontas dos dedos, este frescor no ar. Os dias brilham uma luz de incomparável transparência, se exibindo aos nossos olhos ofuscados, nesse azul desembestado que ocupa todo o espaço visível das portas e janelas para fora. Dias impecáveis, noites frescas de céu limpíssimo, dá até pra dormir de cobertor. É maio no miolo do Brasil, minha gente!

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Irene não ri

1964 + 50
Histórias de pessoas de carne e osso - e também de personagens de papel - que viveram na roda viva da ditadura militar. Novos episódios toda quinta-feira.

(Episódio 6)


por Fernanda Pompeu   ilustração Fernando Carvall

O casal era clandestino. Ele, um dos sujeitos mais procurados pela repressão. Tipo inimigo número 1 da ditadura. Ela, companheira de luta e de vida. O Doi-Codi tinha o sonho sádico de sentar os dois na cadeira do dragão.

Daí, imaginem.

Ele punha e raspava o bigode. Ora era loiro, ora ruivo. Sempre de calças Lee e camisetas Hering. Assim passava por estudante, contador, eletricista, auxiliar de escritório. A ordem era ser o mais comum dos comuns dos mortais.

Ela usava vestidos compridos e sem decotes. Também portava discreto óculos escuros para esconder seus olhos azuis. Os brasileiros costumam guardar feições de pessoas com olhos claros, pois é raro.

O casal mudava constantemente de endereço. Moraram na Lapa, na Penha, na Capela do Socorro, no Centro da cidade, no Butantã, no Largo da Concórdia. Em cada casa atendiam por um nome. Antonio, Sérgio, Eliseu, Roberto, Sidinei, Valter. Cláudia, Cristina, Ana, Alice, Vilma, Irene.

Apesar de originalmente expansivos, evitavam como podiam a curiosidade dos vizinhos. Ele saía às seis da manhã e só retornava depois das vinte e duas. Ela cozinhava, lavava, passava sem abrir as janelas. Rádio, ouvia bem baixinho.

O som é sempre um problema, uma vez que diz muito sobre os indivíduos. Ela gostava de rir gostoso, baianamente. Um dia, ele contou uma piada inteligente, engraçada. Ela gargalhou.

Ele então a repreendeu:
- Não faça assim! Você deve rir o mínimo. As pessoas reparam muito em gente alegre.

Ela então recolheu o sorriso. Deixou para soltar a gargalhada quando o Brasil se tornasse comunista.

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Fernanda Pompeu é escritora e redatora. Fernando Carvall é o homem da arte.

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Discoteca de músico: Rashid


por Marcos Grinspum Ferraz    Ilustração de Victor Zalma*

Michel Dias Costa, o Rashid, não teve um caminho fácil para chegar aonde chegou. Com pouca grana e estrutura, mas muito vigor criativo, começou ainda na adolescência a participar das batalhas de MC e a escrever seus primeiros versos. Nascido na zona norte de São Paulo em 1988, conquistou espaço aos poucos e é considerado um dos principais nomes da nova geração do rap nacional na atualidade. Porque se a vida não deu facilidades, ela “deu caneta e papel”, como ele canta em verso de “Nada Pra Ninguém”.

Rashid na foto de Rafael Kent
Conheci o rap de Rashid no ano passado, por meio do disco “Confundindo Sábios”. Quanto mais ouvi, mais gostei do estilo e das letras, que para além da crítica social e das narrativas urbanas, explicitam também essa energia de Rashid para seguir fazendo música independente de qualidade, sem se deslumbrar com o sucesso. “Sabe por que eu vim?/ Porque eu quero entregar o melhor/ Nem que eu pague com meu suor/ Se esse é o preço pra sonhar”, diz outro verso do MC.

Em janeiro deste ano entrevistei Rashid para a revista Brasileiros (leia aqui) e o papo rendeu bastante. Agora, depois da estreia com Tim Bernardes da banda O Terno (leia aqui) é a vez do rapper ser o entrevistado da série “Discoteca de Músico”, que a cada mês trará um artista respondendo às mesmas cinco questões, sobre discos e videoclipes que marcaram seus caminhos na música e na vida. Discos e vídeos antigos ou atuais, já que parto aqui da constatação de que música boa não para nunca de ser produzida.

A ideia da série é ter, no fim do processo, uma espécie de discoteca/videoteca virtual feita pelos músicos – de variadas idades e adeptos de diferentes estilos –, voltada para o público que quer conhecer mais os artistas ou mesmo que busca sugestões do que ver e ouvir.

Um disco brasileiro que marcou sua formação musical

“Cartola”, os dois, de 1974 e de 1976. Esses discos são de uma riqueza incrível. Alguns clássicos da música brasileira estão aí. Cartola me inspira muito pela sensibilidade e simplicidade da sua escrita, que é crua e extremamente rica ao mesmo tempo. O sofrimento (de amor principalmente) virava uma coisa muito bonita nas palavras dele.

Um disco gringo que marcou sua formação musical

O “Reasonable Doubt”, do Jay-Z. Ele é um dos caras que mais curto lá de fora, e esse disco é um clássico. É o primeiro disco dele. Tem muita coisa boa aí, desde os times de produtores até o conteúdo das letras, que nessa época falavam muito da vida dele no tráfico.

Um disco lançado nos últimos anos (nesta década) que te marcou profundamente

Brasileiro, “Se Me Chamar, Ô Sorte”, do Wilson das Neves. Estrangeiro, “Good Kid, Mad City”, do Kendrick Lamar. O disco do Wilson das Neves foi umas das melhores coisas que escutei ano passado, tanto liricamente, quanto nos arranjos. Um samba muito elegante e de muito bom gosto. Já o do Kendrick foi praticamente uma unanimidade quando saiu (em 2012). Ele trouxe uma riqueza poética que há tempos o Rap “mainstream” norte-americano não apresentava. Esse cara é muito bom, virei fã!

Um videoclipe que marcou sua formação

O Rappa, “O Que Sobrou do Céu”. A música é forte, e quando você junta a essas imagens, vira uma bomba. O roteiro desse clipe é muito bom, e a locação, os atores, todo mundo foi muito bem na minha opinião! Todas as vezes que assisto, ele causa um impacto. Sou fã dos caras também, sempre curti muito, posso dizer que são parte das minhas referências musicais.



Um videoclipe lançado nos últimos anos (nesta década) que te marcou profundamente

Inquérito, “Meu Super Herói”. Inquérito é um grupo de Rap de Campinas, e os caras são bons demais. O Renan é um ótimo letrista e esse clipe é lindo, cara. Fala sobre a falta que o pai dele faz, sobre as lembranças e tal… As imagens são de um bom gosto incrível, e o moleque que é o personagem principal, mandou muito bem. Foi gravado na Favela do Flamengo, na zona norte de São Paulo, perto da minha casa. A direção é do Levi Vatavuk. Foi o primeiro trampo que vi dele, e pirei!




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Marcos Grinspum Ferraz, jornalista e saxofonista da banda Trupe Chá de Boldo mantém a coluna mensal Verbo Sonoro, sobre cultura, música e afins. llustração de Victor Zalma, especial para a série

terça-feira, 6 de maio de 2014

1º de maio também é dia de Festa da Lavadeira! Ou era...


por Aleksander Aguilar*

Desde 1888, num episódio de luta, e tragédia, nos Estados Unidos, o dia 1º de Maio passou a ganhar referência em todos os continentes - é uma data fundamental na história da resistência popular de abrangência realmente mundial. Deveria ser lembrado como um dia de reflexão sobre o papel do trabalhador na sociedade e pela construção da cidadania popular, mas no Brasil a data é muitas vezes apenas um dia de feriado, distribuição de prêmios e de grandes shows nos principais centros do país.

E embora isso se reflita também em Pernambuco, aqui o 1º de maio também é dia de algo mais: é o dia da Festa da Lavadeira. Patrimônio Cultural Imaterial do Estado, é um fundamental evento de cultura popular tradicional e de terreiro da região que, desta vez, se fez de forma atípica numa área central do Recife, na Avenida Nossa Senhora do Carmo. Desde que foi criado, em 1987, o encontro que reúne diversas manifestações da cultura popular pernambucana, tomava conta mesmo era da beira-mar, na praia do Paiva, num dia inteiro de festividades de cunho popular/religioso, com direito ao tradicional banho de lama durante esta poderosa reunião de expressões culturais, artísticas e religiosas de matriz afro-brasileira como Afoxés, Nações de Maracatu, Cirandas, Cocos, Caboclinho, Jurema e Caboclos de lança.

A praia do Paiva, no município do Cabo de Santo Agostinho – região metropolitana da Grande Recife e centro dos bilionários investimentos do Complexo Portuário-Industrial de Suape – foi sede durante 25 anos dessa importante expressão cultural, mas os “brincantes”, como se denominam aqueles que vivem e mantem vivas essas tradições, e as cerca de 30 mil pessoas que costumavam a prestigiar o evento, foram obrigados, por conta da força do capital, a deixar a natureza e ir para o asfalto.

Participei em 2011 da última edição da Festa da Lavadeira na praia do Paiva, que teve pelo menos um terço da sua tradicional força, mas foi o suficiente para se envolver, admirar e respeitar. A Lavadeira é um ancestral filho do Orixá Iemanjá. Em maio de 1987, a escultura de uma “lavadeira” foi colocada em frente a uma casa na praia do Paiva. A estátua despertou o interesse da comunidade nativa da praia que a nominaram de “mulher” e a visitavam, levando oferendas. É uma festa essencialmente de matizes negros e índios que agrega, congrega os povos. A Lavadeira é instrumento dos Orixás, Mestres, Mestras, Caboclos, Exús e Trunqueiros, uma forte demonstração das manifestações culturais brasileiras do Nordeste.

A Festa da Lavadeira, ao longo do tempo, ganhou contornos de resistência popular em defesa das matrizes destas expressões culturais contra a mercantilização da arte. Ela sempre acontece no do Dia do Trabalhador, e já chegou a reunir cerca de 100 mil pessoas. Já recebeu por duas vezes o Prêmio IPHAN de melhor projeto de divulgação da cultura popular no nordeste, em 1998 e em 2008. E em 2007 recebeu o “Prêmio Culturas Populares” do Ministério da Cultura.

Mas toda esta simbologia cultural foi relegada a segundo plano por conta dos interesses econômicos que se sobrepõem sem pudor à cultura popular. Grandes empreiteiras construíram imponentes condomínios fechados de luxo no Paiva e ajudaram a privatizar a praia, que já conta com pedágios para segregar o acesso público – instalado precisamente para promover divisões.

Em 2010, a festa só aconteceu por força de um termo de ajuste de conduta feito no Ministério Público. E na sequência a Prefeitura do Cabo de Santo Agostinho, através de uma lei municipal descaradamente aprovada para atender os interesses da construtora, estabeleceu limitações à presença da população na área denominada Loteamento Reserva do Paiva, na praia onde ocorre a Festa. A Construtora Odebrecht, quando quis aprovar seu projeto milionário no Paiva, em seu site afirmava que iria respeitar as manifestações culturais da região e o desenvolvimento sustentável das comunidades vizinhas. Exatamente por isto a área onde acontece a Festa da Lavadeira foi garantida no projeto Reserva do Paiva como área de uso comum, área pública, para permitir a manutenção e desenvolvimento da manifestação popular.

Através, porém, de legislação a prefeitura local aprovou ato de segregação em relação ao público da Festa da Lavadeira constituído, em sua grande maioria, por mulheres e homens da classe trabalhadora. Esta atitude gerou um dano moral coletivo à cultura popular. Não teve como objetivo a preservação do meio ambiente, mas a preservação do poder econômico privado.

O evento deste 1 de maio que seria a 28° edição da Festa, no centro da capital, foi na verdade um cortejo-protesto, e fazia uma alusão à Festa, pois a edição de fato deste ano foi cancelada por falta de investimentos públicos. Intitulada de Vamos Passear a manifestação comemorativa ocorreu sob protestos, As críticas não foram apenas sobre a mudança de local, pois os brincantes exigem mais ajuda dos órgãos governamentais. O ato religioso tradicional virou um ato de protesto disperso e frágil, e a Festa da Lavadeira está sob o risco de acabar se o seu caráter de resistência não se apresentar ainda com mais força e garantir suas expressões.

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*Aleksander Aguilar é jornalista, doutorando em Ciência Política e Relações Internacionais, candidato a escritor, e viajante à Ítaca, especial para o Nota de Rodapé

domingo, 4 de maio de 2014

A Vida Pirateando a Arte

por William dos Santos*

Há cerca de 128 anos, Robert Louis Stevenson publicou aquele que seria um dos maiores sucessos da literatura romântica de traços realistas: Strange Case of Dr. Jekyll and Mr Hyde, conhecido no Brasil como O Médico e o Monstro, cujo roteiro expressa o contraste intenso entre a face interna (real) e externa (aceita pela sociedade) de um ser humano, apresentadas de maneira fantasiosa por meio das figuras de Mr. Hyde (o monstro) e Dr. Jekyll (o médico), personalidades opostas de um mesmo ser. Ficção que, infelizmente, nesse caso, pouco se distancia da realidade.

No livro de Stevenson o foco é o embate psicológico. O "ser humano real" desafia a ficção e seus absurdos ao ponto de levar esse problema ao tratamento das diversidades de aparência, estabelecendo moldes de beleza e compondo uma sociedade de padrões, capaz de unir a fantasia do mundo das cirurgias plásticas, maquiagens e photoshop ao preconceito racial herdado da era escravocrata, sem considerar a hipótese de cometer anacronismo. Com a escolha de Lupita Nyong'o, 31, como a mulher mais bonita do mundo pela revista People, tal qual a eleição de uma angolana como miss universo em 2011, a repercussão foi inevitável. Imagina-se que no caso da revista a intenção tenha sido mesmo provocar o debate, mas comentários do tipo "É bonita, mas cabelo assim não dá" e "Vão dar cotas pra elas também?" são comentários assustadores.

Não existem padrões de beleza, uma vez que a beleza depende de interpretação e gostos pessoais, e não se pode julgar com exatidão se um prêmio do tipo fez a escolha certa ou errada.

Do caso em questão a única comprovação é a de que a mesma sociedade que criou padrões comportamentais, obrigando Dr. Jekyll a se dopar e controlar os extintos de sua personalidade real, regride de maneira considerável ao não aceitar sequer que alguém que possua uma aparência condizente com a diversidade étnica mundial invada o espaço de figuras criadas sob traços padronizados de um mesmo desenhista: o Preconceito.

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William dos Santos, técnico em administração, colaboração especial para o Nota de Rodapé

sexta-feira, 2 de maio de 2014

Flores de abril


por Júnia Puglia   ilustração Fernando Vianna*

Em 1974, íamos em meio a uma longa noite no Brasil. Bisbilhoteira e com uma fome de mundo que não tinha tamanho, eu fuçava tudo o que podia para obter informação do que acontecia fora dos limites da nossa vidinha pequenininha. A escola, coitada, patinava em métodos e conteúdos pré-históricos, enquanto eu cada dia odiava mais a tabela periódica e as identidades trigonométricas.

Comecei a frequentar o diretório acadêmico da faculdade de filosofia estadual que, felizmente, havia na cidade. Meus pais eram alunos do curso de letras, o que de certa forma facilitava a minha entrada ali. Sempre tinha alguém jogando ping-pong, truco e conversa fora. A atividade política estudantil estava amordaçada, sob a constante vigilância dos milicos e seus muitos apaniguados. E ninguém ali me dava muito papo. Mesmo assim, era um lugar onde tocava MPB o tempo todo e eu podia respirar um ar de pequenas transgressões. Lembro de um aluno de literatura, gay assumido, naqueles tempos tenebrosos, com um bustiê vestido sobre a camiseta mais curta do que deveria, sentado num sofá, fazendo tricô e cantarolando Drama 3o Ato, junto com Bethânia.

As revistas Manchete e O Cruzeiro, cheias de fotos, me traziam um pouco do mundo lá fora. Numa delas, soldados trocavam cravos vermelhos com as pessoas na rua, entre tanques de guerra e muita gente. A matéria era sobre um levante militar em Portugal, que havia encerrado uma ditadura de várias décadas. Então as ditaduras acabavam? E não existiam só aqui? Havia outros lugares no mundo onde as pessoas sentiam o mesmo que eu?

Chegou à cidade um show de Vinícius de Moraes, Toquinho e Marília Medalha, seguindo um “circuito universitário”. Como não havia teatros – o nosso belo Municipal havia sido recentemente demolido pra abrigar o novo arranha-céu da prefeitura, numa onda obscurantista que assolou o interior paulista –, o show aconteceu num cinema. O bilheteiro, penalizado com a minha cara grudada no vidro, do lado de fora, porque não tinha um tostão furado, me abriu um vão, quando o espetáculo estava começando, e eu voei pra dentro, incrédula da generosidade do cara, mas sem hesitar um segundo. “As cores de abril, os ares de anil, o mundo se abriu em flor” e tantas outras. O cinema lotado, todo mundo de pé, cantando junto e dançando, inesquecível.

Meses depois, conheci “Grândola, vila morena”, cantada por Nara Leão, numa coletânea da série “A arte de”. A batida das botas dos soldados, a voz ao mesmo tempo firme e delicada, o coro que a acompanha em algumas estrofes da canção que fala do povo dando as ordens na cidade, fiquei arrepiada, emocionada. Ouvi muitas vezes o disco de vinil, na vitrola portátil que comprei, já em Brasília. Mas ainda demorou um bom tempo, até que eu juntasse a Revolução dos Cravos com a canção do Vinícius e a gravação da Nara.

Acabei de ouvir a mesma gravação, via YouTube. De olhos fechados, o mesmo arrepio me sobe do dedão do pé até a raiz dos cabelos, celebrando a liberdade numa canção ao mesmo tempo tímida e poderosa. Faltam-nos cravos vermelhos, música e a vontade do povo, senhoras e senhores ocupados em “pacificar” o Rio de Janeiro e salvar o Brasil do vexame global que nos aguarda ali na virada da esquina.


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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Primeiro de Maio sob a ditadura

1964 + 50
Histórias de pessoas de carne e osso - e também de personagens de papel - que viveram na roda viva da ditadura militar. Novos episódios toda quinta-feira.

(Episódio 5)


por Fernanda Pompeu    ilustração Fernando Carvall

Hoje quase ninguém dá ibope para as comemorações do Primeiro de Maio. É fato que as centrais sindicais até tentam mobilizar, mas para garantir que o trabalhador e a trabalhadora deixem suas casas em direção à praça, contratam músicos, promovem gincanas, sorteiam prendas etc. Muito mais circo do que manifestação de classe.

Sei que a própria definição do que é trabalhador anda embaralhada em tempos de terceirizados, frilas e até dos carteiras-assinadas contemporâneos. Marx, Lenin & cia não iam entender nada. Mas, consolo para a esquerda, se mudou a identidade do trabalhador, pouco mudou a do patrão. Este continua sendo o cara que detém o capital e os instrumentos.

Mas toda vez que o Dia Internacional do Trabalhador se aproxima - que a maioria entende como apenas mais um feriado - uma onda, melhor dizendo, um sopro de nostalgia me assalta. Porque, atenção menores de trinta anos, essa data já foi rebelde. Que digam os militares brasileiros quando estavam por cima. Quando davam as cartas e vigiavam o jogo.

O Primeiro de Maio, sob a ditadura, era motivo de apreensão política e prontidão nos quartéis. A data vinha carregada de história e resistência heroica dos trabalhadores contra o julgo do capital e dos patrões. Ela era tão ameaçadora que governo e meios de comunicação trocaram trabalhador por trabalho. O concreto pelo abstrato.

Muita gente até hoje diz Dia do Trabalho. Simples assim. Na verdade a coisa fica destituída de qualquer significado político, pois trabalho diz respeito a todos. Mark Zuckerberg, os irmãos Marinhos, Antonio Ermírio, Eike Batista também trabalham. Ops! Então a data é dos patrões também!

Mas voltando a minha nostalgia - e acredito de muita gente mais - o Primeiro de Maio era sinônimo de mobilização e luta. Nos longos anos da ditadura, levá-lo a sério era risco de prisão. Não à toa, Lula consolidou sua liderança discursando em primeiros de maio.

Vila Euclides, São Bernardo do Campo, bandeiras vermelhas, uma ditadura para derrubar, estudantes organizados, poemas, músicas, panfletos e uma alegria doida fazem parte do passado. Pensando bem, várias formas de luta fazem parte do passado. Mas a tensão trabalhador-patrão, vida-capital está mais viva do que nunca.

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Fernanda Pompeu é escritora e redatora. Fernando Carvall é o homem da arte.
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