por Carlos Conte*
Conheci o estilista quando era criança. Estilista. Assim gostava de ser chamado por achar, talvez, uma designação mais nobre para sua profissão de confeccionar chapéus. Seria, então, chapeleiro. “Não! Estilista!”, ele repetia. E me passava a tarefa de desfazer um nó entre duas pecinhas retorcidas de metal. Já viram isso? É um jogo de paciência cujo objetivo é desenganchar duas barrinhas de ferro torcidas, emaranhadas, entrelaçadas, como se fossem peça única. Mas não são. Joguinho malandro, ladrão. Como ficava aflito! Sempre travava. Minhas mãos fedendo a ferro. Nada do nó se desfazer. “Calma, meu! Não é na força. É no jeito”. Vendo minha angústia, o velho largava sua máquina de costura. “É assim: passa essa pra cá, gira a outra pra esquerda, hein?, pra esquerda! e depois é fácil... tá vendo?...”. Pronto, o passe de mágica: as pecinhas se desligavam naturalmente. A cara dele, nessa hora, parecia a de um mágico no momento em que conclui com êxito sua apresentação. Um rosto meio safado, do tipo: “Mas é tão fácil!...”. Que porcaria! Saía dali emburrado, detestando o italiano. E as mãos fedendo a ferro.
Sem tirar os olhos miúdos da máquina, ia costurando os tecidos, dobrando, cortando, com suas mãozinhas brancas. Às vezes me pedia um carretel de linha ou um pedaço de pano na estante de madeira que ia do chão até o teto. Difícil ver o velho parar a máquina. Era rápido. Num só dia, fazia dezenas de chapéus, que ele expunha num pequeno móvel de vidro. Uma obsessão pelo ofício, que só vendo. Enquanto conversávamos, ia cosendo, unindo com pontos firmes o tecido na aba, à medida que o pé, embaixo da máquina, fazendo força, a perna magra, pedalava, pedalava, movimentando rapidamente a correia, que, por sua vez, ditava o ritmo da agulha, que traçava seu caminho, sempre no mesmo sentido, subindo e descendo.
Falávamos, quase sempre, de futebol. Ele, palmeirense roxo; ou melhor, palestrino, da velha guarda. Eu, corintiano, não menos fanático. Era época do casamento entre o Palmeiras e a Parmalat. Época sombria para a torcida mosqueteira. Só dava Palmeiras. Também, com aquele dinheiro! Aprendi com o meu pai que a Parmalat comprava todos os juízes, e sempre que a discussão engrossava eu recorria a esse argumento. Até hoje a final do Campeonato Paulista de 1993 está engasgada. Como não expulsar o Edmundo? E depois mandar pra rua três dos nossos, inclusive o goleiro Ronaldo! Juizinho desgraçado, esse José Aparecido! Jogamos com raça. O Viola estava na melhor fase. Mas o Neto, pra variar, fora de forma... Fiquei duas semanas desviando de bike pela rua Luís Martins, para não ter que encarar o Pezzutti.
Quando me mudei para o sobrado da City, perto do cemitério, as visitas ao “estilista” se tornaram menos frequentes. Comecei a trabalhar. A faculdade me tomava bastante tempo. E talvez influenciado pelos ares fefelechianos, comprei, aos 18, minha primeira boina. Que pose! Preta, marrom, azul, fui comprando. Umas de pano leve, outras mais grossas, pra segurar o sereno. Cheguei a levar amigos pra olhar as boinas no Pezzutti, que se orgulhava das reportagens de jornal sobre sua oficina expostas na parede, e dizia que em São Paulo só ele e uma outro conhecido na rua Augusta continuavam fazendo chapéus e boinas de modo totalmente artesanal. A maioria já vem pronta da fábrica, ou praticamente pronta, faltando só juntar as partes.
No forro, a etiqueta: “Estilista Pezzutti – alfaiate – S. Paulo”.
Não fez nenhum discípulo. Uma vez, ele me disse, tentou ensinar o irmão, mas foi uma desgraça. Não tinha mão pro negócio. Errava em coisas bobas, fáceis. Além do mais, tem que ter paciência, o que o irmão nunca teve. Nem eu, para desembaraçar as pecinhas de ferro.
Por excesso de generosidade, dei uma boina para o Vini, de aniversário. Outra emprestei para o Dan, e caiu tão bem nele que deixei de lembrança. Um primo meu, do interior, ficou gamado na marrom, mas a marrom eu não dava! Presenteei com a azul. E a marrom, depois de uma viagem à Ilha do Cardoso, sumiu. Só ficaram as fotos da pescaria em que eu usei a boina marrom, minha preferida. E minha última. Precisava comprar uma boina.
Fazia meses que não passava na oficina do velho. Quando desci no ponto, vi o Pezzutti de costas, mexendo no armário; o de sempre: baixo, ombros caídos, magro, camisa branca, calça social. Mas a máquina estava parada. Atravessei e chamei: “Ei, seu Lourenço!”. Ele se virou. À meia-luz, porque a lâmpada estava desligada, demorei para perceber que não era o Pezzutti. “Não, sou o irmão dele, Alberto. Vai fazer dois meses que o Lourenço morreu, você não sabia?”. Não tinha reparado na placa fixada na parte de cima do sobrado. Expliquei que era cliente, às vezes ajudava; na verdade, amigo, e que meu avô também o conhecia. A máquina estava no lugar de sempre, repleta de tiras de pano, como se alguém ainda fosse trabalhar. Nada do joguinho das peças de ferro, que eu nunca consegui separar. Nada de boina. Ao redor, caixas de papelão empilhadas.
* Carlos Conte, sociólogo e cronista, mantém a coluna mensal Casa de Loucos, uma homenagem aos mestres João Antônio e Lima Barreto.
quarta-feira, 31 de julho de 2013
terça-feira, 30 de julho de 2013
O espelho de Tereza
por Alexandre Luzzi ilustração Marcelo Martins Ferreira*
A grande insatisfação que muitas pessoas possuem em relação ao próprio corpo ao se olharem no espelho é fruto de uma imagem que perambula no território do nosso inconsciente?
Milan Kundera e seu clássico “A insustentável leveza do Ser” nos ajuda a pensar sobre isso. Na obra a personagem Tereza tem o hábito de ficar se olhando horas no espelho, numa atitude com nuances de proibição. Dentro da convivência familiar de Tereza toda forma de privacidade é reprimida e satirizada. “Como um campo de concentração”, sugere ela sobre a convivência com a mãe e o padrasto. Mas a atitude tem uma peculiaridade: não era a vaidade que a atraía para o espelho, mas o espanto de se descobrir nele.
A contrariava encontrar em seu rosto traços da mãe, nem tanto pela similaridade física e mais pelo fato de sua vida ser um prolongamento da vida da progenitora. Tereza se incomodava com regiões do corpo, como os seios, os quais desaprovava o tamanho e as aréolas grandes e escuras demais.
Pensava sobre como ficaria se o nariz crescesse um milímetro por dia. Nessas contemplações angustiantes imaginava: “E se cada parte de meu corpo começasse a crescer ou a diminuir a ponto de me fazer perder toda semelhança comigo mesma? Eu existiria ainda, mesmo assim? Qual a relação entre 'eu', Tereza, e meu corpo?”
Existem motivos para tamanha insatisfação e recusa? Será que temos uma percepção direta e real de nosso próprio corpo? Ou será que entre a imagem projetada e o que sentimos existiria um filtro de fantasias e sentimentos infantis?
Talvez a imagem refletida no espelho toda vez que nos colocamos diante dele não seja a mesma inscrita na superfície virtual do nosso inconsciente. O psicanalista Juan David Nasio sugere essa hipótese.
Um certo ódio da mãe pela filha era mais forte que o ciúme que o marido lhe inspirava. Em contrapartida, a culpa de Tereza era infinita se martirizando até pelas infidelidades do padrasto.
Kundera e seu romance nos coloca diante da experiência enigmática do efeitos da imagem que se reflete do espelho. Seja em maior ou menor grau, jamais encontrei na minha vida profissional alguém totalmente satisfeito com o próprio corpo. A transformação estética do corpo, dentro dos padrões valorizados pela cultura e o olhar do outro parece não resolver um sentimento de maior valorização de si mesmo. Para o estímulo à reflexão, deixo o leitor com uma pergunta final, de autoria do grupo musical Capela – "Será que o espelho irá me mostrar alguém que não eu?"
*Professor de Educação Física, capoeirista, Alexandre Luzzicoordena o espaço Tai Ken e mantém a coluna mensal Corpo a Corpo. Marcelo Martins Ferreira, ilustrador, design e músico, especial para o texto
A grande insatisfação que muitas pessoas possuem em relação ao próprio corpo ao se olharem no espelho é fruto de uma imagem que perambula no território do nosso inconsciente?
Milan Kundera e seu clássico “A insustentável leveza do Ser” nos ajuda a pensar sobre isso. Na obra a personagem Tereza tem o hábito de ficar se olhando horas no espelho, numa atitude com nuances de proibição. Dentro da convivência familiar de Tereza toda forma de privacidade é reprimida e satirizada. “Como um campo de concentração”, sugere ela sobre a convivência com a mãe e o padrasto. Mas a atitude tem uma peculiaridade: não era a vaidade que a atraía para o espelho, mas o espanto de se descobrir nele.
A contrariava encontrar em seu rosto traços da mãe, nem tanto pela similaridade física e mais pelo fato de sua vida ser um prolongamento da vida da progenitora. Tereza se incomodava com regiões do corpo, como os seios, os quais desaprovava o tamanho e as aréolas grandes e escuras demais.
Pensava sobre como ficaria se o nariz crescesse um milímetro por dia. Nessas contemplações angustiantes imaginava: “E se cada parte de meu corpo começasse a crescer ou a diminuir a ponto de me fazer perder toda semelhança comigo mesma? Eu existiria ainda, mesmo assim? Qual a relação entre 'eu', Tereza, e meu corpo?”
Existem motivos para tamanha insatisfação e recusa? Será que temos uma percepção direta e real de nosso próprio corpo? Ou será que entre a imagem projetada e o que sentimos existiria um filtro de fantasias e sentimentos infantis?
Talvez a imagem refletida no espelho toda vez que nos colocamos diante dele não seja a mesma inscrita na superfície virtual do nosso inconsciente. O psicanalista Juan David Nasio sugere essa hipótese.
“sempre que sentimos o nosso corpo, o vemos ou julgamos, estejamos certos, forjamos dele uma imagem deformada, inteiramente afetiva e resolutamente falsa. Para resumir, nunca percebemos nosso corpo tal como é, mas tal como o imaginamos; o percebemos como fantasia, isto é, mergulhado nas brumas de nossos sentimentos, reavivado na memória, submetido ao julgamento do Outro interiorizado..."O conflito de Tereza parece confirmar o dizer de Nasio. Do fundo de sua alma surgia a representação inconsciente de um corpo marcado por uma relação familiar em que tonalidade afetiva era o ódio e a culpa. Tal situação se traduz pela cena protagonizada por sua mãe ao ver a filha trancar a porta do banheiro ao reparar que seu marido sempre entrava quando ela estava nua no banho. “Por que você se trancou? Quem você pensa que é? Ele não vai arrancar pedaços de sua beleza!”, esbraveja a mãe.
Um certo ódio da mãe pela filha era mais forte que o ciúme que o marido lhe inspirava. Em contrapartida, a culpa de Tereza era infinita se martirizando até pelas infidelidades do padrasto.
Kundera e seu romance nos coloca diante da experiência enigmática do efeitos da imagem que se reflete do espelho. Seja em maior ou menor grau, jamais encontrei na minha vida profissional alguém totalmente satisfeito com o próprio corpo. A transformação estética do corpo, dentro dos padrões valorizados pela cultura e o olhar do outro parece não resolver um sentimento de maior valorização de si mesmo. Para o estímulo à reflexão, deixo o leitor com uma pergunta final, de autoria do grupo musical Capela – "Será que o espelho irá me mostrar alguém que não eu?"
*Professor de Educação Física, capoeirista, Alexandre Luzzicoordena o espaço Tai Ken e mantém a coluna mensal Corpo a Corpo. Marcelo Martins Ferreira, ilustrador, design e músico, especial para o texto
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segunda-feira, 29 de julho de 2013
Luta de classe
por Ricardo Sangiovanni*
Escrevo hoje em solidariedade ao colega Antonio Prata, solitário cronista mundano de um jornal a serviço do Brasil.
Prata foi pai recentemente e, a tirar por suas últimas crônicas, luta, entre banhos e talcos, mamadas e choradeiras e mais a diaba da babá eletrônica, para manter preenchido o espaço dominical que o periódico lhe reserva.
Nunca fui pai, mas imagino o quanto deve ser difícil ser cronista de jornal nessa circunstância. Vejam o caso de Prata: há duas semanas, gastou sua crônica-estepe, uma que tinha de gaveta para o caso de qualquer eventualidade. Semana passada, não tinha cérebro para escrever coisa com coisa, mas mesmo assim, brioso e profissional, entregou ao leitorado um punhado de anotações sobre a rotina de pai recém-parido, as quais a mim ao menos inspiraram mais pena do que graça: deixe essas besteiras de lado e vá descansar, homem, ou cuidar de sua menina em paz, que o leitorado sobrevive sem você. Nesta semana voltou em boa forma, é verdade – mas, enquanto a bebê for pequena, sabe-se lá o que será das semanas que virão.
Então o Prata – goste-se mais, goste-se menos das coisas que ele escreve – o Prata é merecedor, neste momento, de todo o apoio de nossa classe, classe em vias de extinção que é essa nossa dos cronistas.
Porque o cronista de jornal, mundano, aquele contratado para encher umas tripas semanais ou diárias de miudezas e reflexões sem especialidade, historicamente, ou é um aristocrata ou burguês-rico que não escreve para ganhar o de comer, ou é um plebeu enganado, um tolo que achou de aceitar, em troca da suposta liberdade de dizer o que quer sobre qualquer coisa, o atroz compromisso de viver para contar.
Aceitou, por heroísmo ou vaidade, pertencer a essa estirpe rara de jornalista que pode escrever “eu”, como dizia Drummond. Mas isso aí logo passa, e sobra a vil obrigação de sentar-se à frente do computador ou pegar do lápis para escrever qualquer coisa, a ser publicada sempre naquele mesmo santo dia, em troca daquele vintém que, quando dá por si, o camarada já não pode mais dispensar. Quando passa a ter que sustentar família, aí é que lascou-se tudo mesmo.
Não me deixa mentir o velho Rubem Braga, que tantas vezes escreveu a crônica só pela obrigação de ter que redigir qualquer bobagem, quando o certo era estar na roça, chupando caju ou caçando paca. E mais, estão aí de prova os grandes que já se enfiaram nessa maluquice que é a crônica para jornal: Machado, Bilac, García Márquez, todos enfim uma vezinha pelo menos já abominaram a obrigação de ter que escrever aquela maçada quando, na verdade, o certo era terem ficado calados, porque afinal lhes faltasse coisa que prestasse a dizer. Vá lá: não fosse pela obrigação, talvez não houvesse Braga, nem Drummond, Bilac, Machado, Márquez e muitas de suas crônicas maravilhosas. Mas talvez eles tivessem tido mais momentos livres, de descanso, ou apenas simplesmente mais momentos vagabundos na vida – e quem, leitor ou patrão, tem real direito a negar-lhes isso?
De sorte que nós do presente, nós jovens cronistas destes anos dous mil e poucos, nos solidarizamos ao colega Antonio Prata, e em seu nome requeremos a si uns bons meses de folga sem prejuízo de seus vencimentos, a fim de que possa dedicar-se à sua bebê em paz, sem ter que pensar em diabo de crônica nenhuma. Nós intercedemos por você, ó Prata, nós jovens cronistas mundanos de hoje, que em nossa imensa maioria não recebemos um centavo pelo que escrevemos de bom nem de ruim, mas que, talvez por isso mesmo, sejamos um dedinho mais livres, não só para cronicar sobre o que nos der na veneta, mas sobretudo para deixar nosso espaço em branco quando a vida se nos afigura dura, incompreensível ou apenas mais necessária do que a escrita. Nós cronistas, colega Prata, que, como você, iremos todos no final das contas parar na mesma vala comum, que é a lata do lixo ou o esquecimento, ou (dá na mesma) n’algum livrinho para o limbo dos anais que um dia – não é certo – alguém no futuro distante terá interesse em etnografar, para mostrar como se usava pensar nesta nossa epoquinha absurda e remota.
*Ricardo Sangiovanni, jornalista, coordena o blog O Purgatório e mantém no NR a coluna Mistério do Planeta. Escreve de Salvador.
sábado, 27 de julho de 2013
Um papo com Dominguinhos
por Marcos Grinspum Ferraz*
Quando Dominguinhos completou 69 anos, no início de 2010, comemorou a data com um show no Canto da Ema, tradicional reduto do forró em São Paulo. Eu estava no meu primeiro mês de trabalho na Ilustrada (Folha de S.Paulo) – ainda um pouco tenso de entrevistar pessoas como o mestre da Sanfona e escrever para um público tão grande – e alguns dias antes propus para a editora uma matéria sobre o show. Ela não deu muita bola, mas falou para eu tocar a pauta, porque tentaríamos publicar algo.
Arranjei o contato do sanfoneiro e liguei para fazer a entrevista. Ele atendeu, e o nervosismo logo passou, dada sua voz calma e sua simpatia. O papo foi rápido, mas acabamos conversando não só sobre o show, mas também sobre Carnaval, política e os “50” anos de carreira. A matéria entrou na edição no dia da apresentação, mas com muito menos espaço do que eu desejava e achava que merecia. Por isso mesmo, nessa semana em que Dominguinhos partiu, aos 72 anos, lembrei que havia um material dessa entrevista guardado, que não havia sido publicado. E fui atrás para ver se rendia algo aqui para o Nota de Rodapé. Segue abaixo um apanhado de alguns trechos da conversa:
SHOW DE 69 ANOS
“Todo ano o Paulo Rosa, proprietário do Canto da Ema, tem a preocupação de fazer um show no meu aniversário, com alguns colegas. A turma do nordeste. Os “cabeça chatas” vão todos. E tocar nessas casas de shows pequenas, redutos do forró, tem um gosto especial. Eles dão o maior valor, têm respeito, gostam da música nordestina. O povo dançando a noite toda, brincando o tempo todo... é bonito.”
CARNAVAL E POLÍTICA
“Eu ia fazer uma participação no Carnaval de Pernambuco esse ano. Ao total, são 340 artistas contratados para fazer o Carnaval de lá, entre Olinda e Recife. E aí decidiram não me levar, argumentando que não tinham verba... (risos). Aí você vê: sou de lá, já fiz tantos Carnavais lá... e agem dessa forma, infelizmente. A prefeitura é do PT, e como já fiz coisas pro Fernando Henrique em águas passadas, eles me colocam como adversário. Eu já fiz trabalhos pro PT também, não tem nada a ver... No fim, o show é para o povo, não para governos.”
50 OU 60 ANOS DE CARREIRA?
“Toco desde os 8 anos. Então seria até 60 anos de carreira mesmo. Mas quando falo 50 e poucos, eu considero quando cheguei aqui no Rio (anos 1950), e me associei a Luiz Gonzaga. Ele me ajudou demais, e eu fiquei praticamente morando com ele. E dali parti para a Rádio Nacional, pras boates todas de Ipanema, Copacabana, Leblon. Antes disso, no NE eu tocava com meus irmãos, em portas de hotéis. Foi em um hotel lá em Garanhuns que eu conheci o Gonzaga. (...) Mas pode colocar aí 60 anos de carreira (muitos risos).”
A SANFONA
“A sanfona nordestina é a mesma sanfona que toca em qualquer gênero. E é um instrumento que está em um momento muito bom. Todo mundo está usando o acordeom. Até em banda de rock. Bom, os ingleses sempre usaram né... no Leste Europeu também. Então somos nós que chegamos atrasados. Mas também, eles são muito velhos, né?! (risos)”.
MESTRE ZINHO
“Escreve aí também, por favor, que eu lamento muito a perda nessa semana do Mestre Zinho (1943-2010). Era um dos maiores cantores nordestinos”.
*Marcos Grinspum Ferraz, jornalista e saxofonista da banda Trupe Chá de Boldo mantém a coluna mensal Verbo Sonoro, sobre cultura, música e afins.
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sexta-feira, 26 de julho de 2013
Róseo mundo
por Júnia Puglia ilustração Fernando Vianna*
Tantos são os motivos de perplexidade e indignação à nossa volta, que tem sido difícil encontrar um hiato para recuperar a leveza. Mas nada como uma boa provocação. Resolvi encarar.
Fui buscar na fonte rósea, transformada por Edith Piaf numa daquelas canções que ocupam o topo da parada de sucessos planetária. Em versos simples mas inspirados, canta a vida rósea proporcionada pelo amor. Desde que a ouvi pela primeira vez, nas aulas de francês da adolescência, me fez imaginar como seria usar óculos com lentes cor-de-rosa.
Concretamente, elas fazem muito sucesso com aquelas peruas que curtem uma meia-calça de oncinha. No espírito da coisa, é algo que pessoas da minha profunda estima usam com total naturalidade e competência. Admiro-lhes, sinceramente, a generosidade e a ingenuidade – e também a sabedoria da estratégia de sobrevivência. Deve ser muito bom ver o mundo sempre num tom mais ameno. No mínimo, permite uma boa economia na conta do cardiologista.
(Cá entre nós, a canção fala mesmo é do amor sussurrado ao pé do ouvido, essa delícia dos casais apaixonados. Derrete geleiras e põe abaixo barreiras impensáveis.)
Continuando na linha do filtro rosado, por ele podemos supor que a vida não é tão complexa como parece, ou que todos temos a capacidade de simplificá-la. E que as misérias de toda ordem que nos rodeiam não nos afetam tanto, nem nos impedem de aproveitar as coisas boas que temos à mão, sem nenhum esforço. Como os ipês, por exemplo, que, à margem de plebiscitos e referendos, decretaram a abertura da temporada das flores em Brasília. Ou essa lua descarada, se exibindo toda grandona lá nas alturas, enquanto o lago reflete laranjas e lilases celestiais.
Através dele, os chatos que vieram ao mundo para nos atormentar talvez possam ser vistos com alguma simpatia, talvez uma pontinha de compreensão, porque, vamos combinar, quem se ocupa de azucrinar os outros deve ter lá dentro uma triste pessoinha, né?
O filtro nos faz crer, também, que as coisas que realmente importam prevalecerão, a despeito do oceano de banalidades, mentiras, falsidade, manipulações, violência gratuita e lixo em que navegamos. Talvez nos leve a concluir que nosso esforço e desgaste cotidianos valem a pena e nos faça dar mais lugar para o riso e menos para o azedume. O problema é que, se a moda pega e o filtro róseo emplaca de vez, floristas, romancistas e oportunistas nadarão de braçadas, enquanto jornalistas, cronistas, cartunistas e analistas vão à míngua. Ih essa prosa está tomando um rumo esquisito. Fui.
*Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto.
quarta-feira, 24 de julho de 2013
É tempo de celebrar Wilson Baptista
por André Carvalho ilustração Kelvin Koubik "Kino"*
Wilson Baptista (1913-1968) deu vida, com versos rabiscados em guardanapos e melodias forjadas no batuque de caixas de fósforo, aos tipos mais caricatos das ruas do Rio de Janeiro. Do malandro mais valente ao trabalhador mais “pelego”, do marido machista à mulher da orgia, do carioca flamenguista ao português vascaíno. Cantou a Lapa, a Mangueira, o Salgueiro.
Fez do Bonde 56 o Bonde Alegria, condutor de amores e inspirador de versos musicados. Criou personagens marcantes como Etelvina, Seu Oscar, Chico Brito, Hildebrando, Dona Inês, Emília, Alberto e Nega Luzia. Para celebrar o centenário de um dos grandes nomes da música brasileira, o Nota de Rodapé entrevistou o biógrafo do sambista, Rodrigo Alzuguir, que lançou, no início de julho o livro de partituras “Wilson Baptista – Cancioneiro Comentado”. Em setembro, Alzuguir vai lançar outra publicação sobre o sambista, a biografia “Wilson Baptista – O samba foi sua glória!”. Antes, o produtor cultural, ator, músico e pesquisador já havia produzido o espetáculo musical e o CD duplo que levaram o mesmo nome “O samba carioca de Wilson Baptista”. Alzuguir é imperativo ao afirmar que Baptista, um criador de personagens, foi além da composição, tornando-se um cronista social à frente de seu tempo, autor de aproximadamente 700 letras que viraram canções.
Nota de Rodapé - Quando Wilson Baptista morreu, amargava o ostracismo, a despeito de sua genialidade. Por quê?
Rodrigo Alzuguir - Ele morreu em 1968, um ano muito conturbado, de muitos protestos e de uma efervescência política muito grande. Os jornais naquela época só falavam em passeata, revolta, AI-5. Além disso, ele já estava meio esquecido, não chegou a pegar a revitalização do samba que estava começando a acontecer naquela época. Cartola, Nelson Cavaquinho gravaram seus primeiros discos nos anos 70. Se tivessem morrido antes, também teriam chegado com menos força até nós.
NR - Olhando por essa ótica, Noel Rosa é uma exceção, já que morreu muito cedo, ainda nos anos 30, desde então muito celebrado.
RA - Sem dúvida. Ele morreu muito cedo, no auge, e ficou como um mito. E tiveram duas pessoas fundamentais para a memória dele: Aracy de Almeida, que praticamente parou a sua carreira na década de 50 pra ficar gravando Noel, e Almirante, que fez a biografia do Noel, produziu vários programas de rádio e séries sobre ele. Badalou Noel até dizer chega. Noel teve esses dois arautos dedicadíssimos.
NR - E o Wilson não teve alguém que cuidasse de sua obra, seu legado?
RA - Wilson tinha muito orgulho de sua obra, falava com os filhos pra que eles cuidassem daquilo depois que ele morresse. Ele falava que tinha uma “bagagem” muito grande e queria que essas músicas dessem algum retorno, que eles pudessem viver disso. Mas isso nunca ocorreu. A obra dele ficou muito dispersa, inclusive as listagens oficiais, as músicas registradas em editoras, sociedades autorais. As listagens são totalmente incompletas, é uma coisa muito bagunçada. Eles, realmente, não puderam desfrutar disso.
NR - Por que você escolheu o Wilson Baptista para pesquisar? Por que ele dentre tantos outros?
RA - Porque eu acho que ele é o grande injustiçado de sua geração. Foi um dos que mais compôs entre os seus contemporâneos - até agora, levantei em torno de 500 músicas gravadas. Mas, além disso, ele tem uma série de inéditas e vendia muito samba para poder sobreviver (ele vivia de música). Então deve ter chegado a umas 700 músicas compostas. E apesar disso tudo ele era considerado um malandro.
Os próprios amigos dele falam em depoimentos: “Ah, o Wilson nunca trabalhou”. Aí eu fico pensando que é um baita preconceito, né? Porque uma cara que fez 700 músicas, e dizer que nunca trabalhou? É, no mínimo, um preconceito.
NR - E uma obra de extrema qualidade.
RA - Exatamente. Porque ele poderia ter feito 700 músicas medianas. Mas sua obra tem muita qualidade e acho que é até mesmo à frente de seu tempo, tanto em termos musicais, como nas temáticas que ele abordava. O olhar que ele tinha sobre a vida. Ele era um cara muito original pra sua época.
NR - Como você conheceu a obra de Wilson Baptista?
RA - Eu sempre fui apaixonado por essa geração dos anos 30, 40. Acho maravilhoso. Assis Valente, Ari Barroso, Noel Rosa, Ataulfo Alves. E o Wilson era um nome que eu já tinha ouvido falar, mas não conhecia grandes coisas.
Fui conhecer mais seus sambas quando eu fiz o encarte do disco “Ganha-se pouco, mas é divertido”, da Cristina Buarque, em tributo ao Wilson Baptista. Nessa época, em 2000, eu estava trabalhando à beça como designer e fiz a programação visual do Cd. E aí foi um banho de Wilson Baptista. E ela me emprestou bastante coisa, umas fitas do acervo da Collectors. E aí, eu fiquei ouvindo aquilo e vi que ele era realmente especial.
Rodrigo Alzuguir em foto de Jaqueline Machado |
RA - É. Aí eu vi que não tinha muita coisa publicada sobre ele. Tinha uma monografia da Funarte (“Wilson Baptista e Sua Época”, de Bruno Ferreira Gomes), e um outro livro, da série “Perfis do Rio” (“Wilson Baptista na corda bamba do samba”, de Luis Fernando Vieira), pouca coisa. Uma introdução ao assunto. Eu achava que merecia um mergulho maior, mas eu não sabia exatamente o que fazer sobre ele.
Então, comecei a pesquisar e reunir todas as gravações que eu pudesse, ouvindo tudo, estudando as letras. Aí eu confirmei minha impressão inicial de que o cara era super moderno e original para época.
NR - Mas você não sabia direito que rumo tomar na pesquisa, né?
RA - O que me despertou mais foi a coisa dos personagens. Ele era um cara que levava isso às últimas consequências. Em “Oh, seu Oscar”, no primeiro verso, já aparecem três personagens: O Seu Oscar chegando em casa, a vizinha que traz o bilhete da esposa, e a esposa. Achei muito teatral isso e queria bolar algo pra teatro.
Depois, fui vendo que a vida dele era muito interessante. E fui entrando em contato com contemporâneos seus que se foram ao longo da pesquisa: Roberto Silva, Jorge Goulart, Dorival Caymmi, Dercy Gonçalves, Emilinha Borba, Roberto Roberti.
Também encontrei a Ceci, do Noel, dançarina de cabaré, que motivou uma espécie de “triângulo amoroso” com o Wilson.
NR - Seria este o tema verdadeiro da “Polêmica”?
RA - O tema verdadeiro foi uma outra dançarina do Cabaré Apolo, antes da Ceci. Essa mulher - o nome dela não ficou registrado - era uma outra dançarina. Noel ficou afim da menina, mas o Wilson chegou antes e ganhou a parada. E o Noel iniciou a “Polêmica”, escrevendo “Rapaz Folgado”, um samba que debochava de um sucesso recente de Wilson, “Lenço no pescoço”.
Depois, o negócio esfriou um pouco e a Ceci apareceu no circuito nesse mesmo cabaré. E ela era de Campos, conterrânea do Wilson. Noel viu ele se aproximar dela e pensou: “Ah, não, de novo, não”. E aí, os ânimos se acirraram um pouco.
NR - Wilson ficou estigmatizado como o “vilão da polêmica com Noel”, para as gerações seguintes?
RA - A “Polêmica” em si trouxe muito mais desvantagem para ele. Porque as pessoas comentam que ele ganhou projeção por conta da “Polêmica”, como se tivesse sido uma coisa boa para a carreira dele. Mas eu acho que foi uma faca de dois gumes, porque trouxe uma certa projeção pra ele, ao passo que ele ficou com um papel de vilão na trajetória de Noel Rosa.
Ele já tinha emplacado um ou dois sucessos antes da “Polêmica” acontecer, e o Noel já era um cartaz, porque ele já tinha bombado com o samba “Com que roupa”, em 1930.
Noel era um jovem talento. De classe média, bem aceito nos jornais, era um artista do rádio. E o Wilson era um cara mais humilde, veio de Campos, era negro, não era um cara que estava acontecendo, que estava na crista da onda.
Quem iniciou a “Polêmica”, na verdade, foi o Noel. O “Lenço no pescoço” não era um samba de provocação a ninguém. Era um samba em que ele retratou um malandro muito bem. E todos os outros sambistas da geração dele já tinham feito samba exaltando malandro, retratando malandro. Inclusive Ari Barroso, Bide e Marçal, todos os caras do Estácio, Sinhô, todos eles, né?
E as pessoas ainda falam que Wilson iniciou a “Polêmica” com Noel. Um absurdo. Noel ficou enciumado com o lance da morena, a dançarina do cabaré, e foi provocar o Wilson. Mas nada além de uma brincadeira entre compositores.
NR - Que talvez tenha ganhado uma proporção maior algum tempo depois. Na época não foi tão falado, não?
RA - Na época ficou como uma piada interna entre os músicos, os frequentadores da Praça Tiradentes, da Lapa, do Café Nice. Não teve a menor repercussão fora dali. As músicas que Wilson fez para Noel nem foram gravadas na época, nem eram pra ser gravadas. Eram piadas, brincadeiras. “Ah, vou responder o fulano”.
O negócio só ganhou forma mesmo, quando o Almirante, nos anos 50, fez a série de rádio sobre o Noel. Era o programa “No tempo de Noel Rosa”, onde ele conta a vida do Noel em capítulos. E um capítulo dessa série fala sobre a “Polêmica”. Então, o Almirante dá uma rearranjada na história, apaga a morena do Cabaré Apolo da história e diz que a motivação do Noel teria sido uma preocupação com os temas poéticos da música brasileira. Mas, na verdade, o Noel era amigo de malandro. Amigo do Baiaco, do Zé Pretinho. Na verdade, aquilo era uma galhofa com o Wilson, não uma crítica à malandragem. Mas para a nossa geração, o Wilson ficou muito associado à “Polêmica”.
Pô, um cara que tem mais de 500 músicas gravadas, um compositor cheio de sucessos, cantado pelos melhores cantores de sua geração, ficar pra gente como “o vilão da polêmica com Noel Rosa” é triste. É uma pena que muita gente só se lembre da “Polêmica”, pois ele é um dos gênios da nossa música. O próprio Paulinho da Viola, uma vez, disse em um programa de televisão: “O Wlison Baptista, pra mim, é o maior sambista brasileiro”.
NR - Voltando a falar sobre a pesquisa que fez para escrever a biografia. Você teve um contato forte com pessoas bem próximas a ele?
RA - Como eu disse, tive a sorte de poder entrevistar pessoas que conviveram bem com ele. Sua irmã, dois de seus filhos, uma ex-companheira, amigos que ele fez nas décadas de 50 e 60. Fora os matusaléns todos que ainda estavam vivos, que citei antes. E fui procurando, também, pesquisadores que já tinham um trabalho sobre o Wilson. O Luis Fernando Viera é um pesquisador que têm entrevistas feitas nos anos 70 com toda essa gente que conviveu com o Wilson e que já havia partido quando eu entrei em campo – como Erasmo Silva, Roberto Martins, Ciro de Souza, Zilda do Zé... Então, eu digitalizei e pude escutar todo esse material, que é fantástico. Luis foi super generoso.
O acervo da Biblioteca Nacional, do Museu da Imagem e do Som, do Instituto Moreira Salles, tudo isso eu vasculhei. E fui procurando as viúvas e os herdeiros dos parceiros dele, que às vezes tinham acervos. Do Ataulfo Alves, do Déo, do Erasmo Silva, do Roberto Martins, que eram grandes amigos e parceiros dele. Um quebra-cabeça, cara, que eu fui montando, e aí já imbuído desse objetivo de escrever a biografia.
Baptista na década de 50 [Arquivo O Cruzeiro] |
RA - Inicialmente, eu comecei a pesquisar sem nenhum objetivo, encantado com essa história dos personagens. Aí logo veio essa vontade de fazer a biografia. Achei que era o que eu podia deixar de mais legal, de fruto mais proveitoso, de toda essa pesquisa.
NR - E já faz pelo menos uma década que você já está pesquisando para preparar essa biografia...
RA - Exatamente. E aí, em paralelo a isso, fui encontrando parceiros que trabalham nessa área de projetos culturais e a gente foi colocando em editais algumas derivações dessa pesquisa. O espetáculo, o CD, o songbook. E acabou que essas coisas foram acontecendo antes da biografia ficar pronta. E até, nesses momentos, tive que abandonar um pouco o texto e caí dentro dos projetos, pra eles rolarem. Mas foi bacana porque me trouxe um aprofundamento ainda maior, porque escrevi o texto da peça, cantei o repertório com a Claudinha (Ventura), minha parceira no espetáculo. Então, você vai ficando cada vez mais à vontade dentro daquele universo né?
NR - E o que veio primeiro? A peça ou o CD?
RA - Primeiro veio a peça. E foi bacana porque rolou uma sincronia perfeita. A peça veio através do FATE, o Fundo de Apoio ao Teatro da prefeitura do Rio, que nos deu o patrocínio. Logo depois veio um suporte da Petrobrás para a produção do CD duplo (“O samba carioca de Wilson Baptista”, mesmo nome do espetáculo).
E aí, como a gente estava com tudo organizado, com os arranjos do Roberto Gnattali e do Nando Duarte ensaiadíssimos para a peça, pensamos: “vamos fazer um dos CDs com a trilha da peça, cantados por mim e pela Claudinha, e o outro com repertório raro, inédito, cantado por convidados como Elza Soares, Marcos Sacramento, Céu, Mart ´nália, Cristina Buarque, Rosa Passos...” Os sambas mais desconhecidos com intérpretes conhecidos e o registro da peça. Eu acho que funcionou bem, ficou bem abrangente.
NR - E esses trabalhos todos têm um projeto gráfico comum?
RA - É. Porque como essas coisas a gente faz com pouca grana, eu acabei fazendo a programação visual do CD e do espetáculo. E aí a gente vai aproveitando as ideias e criando uma certa unidade.
NR - E agora, está saindo o livro das partituras.
RA - Aí, a gente conseguiu, através de outro edital, o FAM, que é ligado a música, fazer o songbook, que acabou de ficar pronto. São 105 músicas, tem um perfil biográfico que eu escrevi, uma apresentação do Sérgio Cabral, fotos raras. É um apanhado bem abrangente da obra dele e a gente fez num formato voltado pra músico mesmo – tentamos colocar uma música por página, em um formato de fácil manuseio.
Acho que o Wilson teria o maior orgulho desse trabalho, porque ele falava muito da “bagagem” dele, do seu legado. Então, acho que de todos os projetos, este é o que ele ficaria mais feliz de ver na rua.
Eu dei uma organizada no material dele. Muitas dessas músicas nunca tinham sido editadas. Ou foram editadas só nos anos 40 e nunca mais. Então, foi muito legal.
NR - E como foi a questão da organização das partituras? Como foi o contato com as editoras, para liberação dos direitos autorais, etc?
RA - O Wilson editou em umas seis ou sete editoras diferentes. E encontrei um super parceiro nesse trabalho, que foi Fernando Vitale, da editora Irmãos Vitale. E o Wilson tinha muito samba editado na Vitale. Então, Fernando fez esse meio de campo com as editoras. A nossa parceria com a Vitale foi fundamental.
NR - E esses trabalhos te deram muita base pra aprofundar a pesquisa na biografia, não é?
RA - Eu sou músico. Toco, canto e conheço muito bem o repertório dele. Então, não sou só um cara que tá escrevendo e ouvindo, mas musicalmente não sabe justificar o que está acontecendo ali. Eu tenho formação de músico, e isso facilita. Dá um olhar um pouco diferente sobre o assunto, uma propriedade pra falar. Daí quando vou escrever um trecho que está na peça ou que saiu no encarte do CD, aquilo já está digerido, fica mais fácil.
Acho que foi um processo abençoado. Qualquer um desses produtos que tivesse saído, eu já estaria feliz de ter conseguido fazer. E a gente conseguiu fazer um “combo” de biografia, songbook, espetáculo e CD.
O Wilson era um segredo que estava ali, gritando pra aparecer. O nome dele tem uma fagulha e a parada aconteceu.
NR - Conte mais sobre o processo de pesquisa da biografia.
RA - Eu dei sorte porque tinham algumas pessoas bem interessantes vivas quando eu comecei a pesquisar. O Jorge Goulart era uma fonte maravilhosa, o Roberto Silva, o Caymmi, a Ceci. E também tive a sorte de ter acesso àquele material de entrevistas do Luis Fernando Vieira. Aí pude ter acesso a entrevistas com a maioria dos parceiros do Wilson. O próprio Luis Fernando gostava muito do Geraldo Pereira, do Wilson, e perguntava muito sobre eles para os entrevistados. Então era um material bem precioso.
Além disso, encontrei uma irmã do Wilson, a Dona Yolanda, e uma companheira dele, Alverinda. E cheguei a fazer uma entrevista bem legal com uma filha do Wilson, a Marilza, que tinha 50 anos, mais ou menos, e nunca tinha sido entrevistada. Passou um lado mais pessoal do Wilson. E também falei com um filho caçula dele, Vílson, com “V”, que era um figuraça. Foi uma entrevista muito legal, um contato bacana porque ele me ajudou muito nessas investigações nas editoras, quando eu precisava de uma entrada mais oficial da família pra saber de alguma informação. Eles dois faleceram, não chegaram a ver os projetos acontecendo. A peça eu dediquei ao Vílson, o caçula, que era o maior fã do pai. Então, eu tive essa sorte de encontrar essas figuras-chave.
Eu acho que eu consegui mapear bem a vida do Wilson. Claro que tem trechos da vida dele que são difíceis de investigar, ainda mais ele que não deixava muita pegada, não deixou grandes entrevistas, entrevistas longas. Então, realmente tem coisas que eu até intuo, mas não sei realmente o que aconteceu.
NR - E ele teve uma fase mais reclusa, né? O final da vida dele, que ele já estava afastado da vida artística. Como foi essa época?
RA - Dessa época, eu consegui encontrar bastante gente para entrevistar, porque ele era um cara muito generoso com o pessoal mais novo que ele. Então, tinha muita gente que estava começando naquela época.
Ele estava mais recluso porque estava esquecido. E também estava muito amargo, revoltado. Porque, da geração dele, todos acabaram migrando para cargos burocráticos nas sociedades de autores, compondo num ritmo menor. Wilson não. E foi ficando pra trás.
Ele foi ficando na pior, porque não era mais gravado, não era mais badalado. E passou a ter problemas de saúde, porque ele tinha o coração aumentado. Cardiomiopatia dilatada, eles chamam de “coração de boi”. Tinha falta de ar, taquicardia, náuseas. Estava sem grana, preocupado com o aluguel. Aquelas coisas do Brasil, problemas da vida prática. E aí foi ficando mais recluso.
NR - E como foram as pesquisas em arquivos, jornais, revistas e institutos?
RA - Tem uma ferramenta da Biblioteca Nacional do Rio, que eu acho que vai revolucionar a pesquisa no Brasil. Era uma coisa que eu sonhava que um dia fosse existir: a Hemeroteca Digital Brasileira. É um site da Biblioteca Nacional que tem 700 coleções de jornais e revistas. E dá pra pesquisar por palavra-chave. Antes disso, passei séculos mergulhado nos microfilmes da seção de periódicos da Biblioteca, no centro da cidade.
NR - Ele ficou estigmatizado com a pecha de malandro? Por quê?
RA - Se você for fazer uma estatística da obra dele, tem pouco samba que fala de malandragem. Na verdade, eles sobressaíram porque eram muito bons e faziam muito sucesso.
NR - E quanto ao samba “O Bonde de São Januário”, feito com Ataulfo Alves, em que ele exalta o trabalho e que ficou como um marco dessa virada na temática, antes focada na malandragem e agora na exaltação ao trabalho, por conta da pressão do DIP, do Estado Novo, de Getúlio Vargas. Como você vê isso?
RA - Isso foi uma onda que aconteceu pra todos os compositores. No carnaval de 40, aconteceu um baita festival, chamado “Noite da música popular”, com uma premiação de 50 contos para os vencedores. Foi um escândalo, porque era muita grana. Foi patrocinado pelo Estado Novo, o festival. E quem ganhou em primeiro lugar, entre os sambas, foi “Oh Seu Oscar”, de Wilson e Ataulfo. Então acho que isso gerou uma expectativa para o ano seguinte. No ano seguinte, os compositores ficaram meio que alvoroçados com esta possibilidade de ganhar uma grana com o concurso do Estado Novo.
NR - Era o concurso do carnaval?
RA - Exatamente. Eram eleitos o melhor samba e a melhor marcha. Foi o primeiro e maior festival patrocinado pelo DIP, criado alguns meses antes. Aí, acho que todo mundo ali ficou vendo a oportunidade de fazer o filme com Getúlio, de repente ganhar o concurso de carnaval. Então, todo mundo se alinhou a essa política, da exaltação do trabalho. Mas foi uma coisa curta. Isso não era uma marca do Wilson.
NR - E qual era a marca do Wilson?
RA - A originalidade do Wilson é marcante. Ele tem uma coisa muito forte com personagens. Você encontra personagens na obra de muita gente, né? Mas, na obra do Wilson, isso é levado às últimas consequências. Você tem sambas que são quase minioperetas.
Aracy de Almeida foi a que mais gravou Baptista |
RA - O Cabo Laurindo foi inventado pelo Noel, no samba “Triste cuíca”. Depois desse samba do Noel, vários compositores pegaram esse personagem. E o Wilson foi quem mais levou adiante essa história, com uns quatro ou cinco sambas. Tem a Etelvina, personagem que aparece em vários sambas. São muitos sambas teatrais. Ele usava os personagens várias vezes. Às vezes não com o mesmo nome, mas o mesmo “tipo”.
NR - São crônicas sociais, né?
RA - Exatamente. Outra coisa que eu acho muito forte nele: ele foi um dos primeiros a fazer samba pra mulher cantar, na primeira pessoa. Nos anos 40, fazia muito pra Aracy de Almeida, pra Odete Amaral. E são mulheres das mais libertárias. Não é feito de maneira machista. Um cacoete da época é a mulher reclamar do marido, reclamar do malandro. Então era muito comum. Mas as mulheres do Wilson eram mulheres muito à frente do tempo.
NR - Elas iam para orgia...
RA - É! Largam o marido pra pular carnaval. E aí, depois, a sandália estragava de tanto que ela sambava. Tem o samba “Boca de Siri”, em que ela narra a farra dela toda no carnaval, e depois pede pra ninguém contar para o marido. São mulheres meio “Leila Diniz”. Acho essa coisa da mulher muito forte nele também.
NR - Apesar de ter composto “Emília”, que é lembrado até hoje como um samba machista, não é mesmo?
RA - Pois é. Mas se você for ver em quantidade, ele tem muito mais samba em que a mulher é retratada com muita liberdade. Tem o samba “Chinelo velho”, em que a mulher não tá nem aí se o cara vai embora. Então isso é muito raro pra época.
NR - Ele foi um precursor nessa temática?
RA - Eu acho. Essa mulher é da geração da minha avó, a mulher não se separava. Ela ficava em casa presa ao marido e às tarefas do lar. Imagina a mulher roubar dinheiro pra pular carnaval? Depois pedir pra ninguém contar? Era muito engraçado, eu acho demais.
Outra coisa que eu acho muito interessante nele, apesar dele ser considerado o maior sambista por Paulinho da Viola e outras pessoas, ele remava contra a maré de vários clichês do samba. Por exemplo, religiosidade. Que é um tema muito caro ao samba, né? Sambas do Dorival, que falam do Senhor do Bonfim, do Ary Barroso, falando da Igreja da Penha, os padroeiros, os orixás... E o Wilson era avesso a qualquer ritual religioso, ele não tinha a menor ligação ao tema.
NR - Para a nova geração, que está descobrindo o samba e quer conhecer mais os compositores, os grandes intérpretes, por que conhecer o Wilson Baptista?
RA - Por conta dessa originalidade dele como compositor. No campo musical, ele era um compositor que tinha umas soluções de harmonia arrojadas e, ao mesmo tempo, simples, intuitivas. A geração dele, do Geraldo Pereira, trouxe uma coisa de síncope para o samba, um samba mais de bossa, despreocupado com métrica, com rima, um samba um pouquinho mais livre. Que é um samba que as pessoas dançam na gafieira e adoram, porque é cheio de síncope, é bem propício para aqueles passos. Então, musicalmente, eu acho que é um cara muito interessante.
E tudo que eu falei dessa originalidade, desse olhar. Um olhar muito livre de preconceito e livre de sentimentalismo barato. Ele era um cara que não fazia melodrama. As músicas dele têm humor, são criativas, têm originalidade.
NR - E tem questão social, também, não é?
RA - Algumas pessoas se referiam a ele como sambista “filósofo”. Ele dizia que as músicas tinham que ser fortes. Que cada música era um veículo do pensamento. Você consegue extrair das músicas dele um pensamento bacana. Por exemplo, no samba “Chico Brito”, ele afirma: “Se o homem nasceu bom e bom não se conservou, a culpa é da sociedade que o transformou”. Ele era um cara que tirava onda, botava um pensamento de Rousseau no samba.
Era um cara muito à frente do tempo. Acho que se não tivesse a censura do DIP, ele teria ido além. O samba “Lealdade”, também retrata uma relação super moderna. Vamos ficar juntos enquanto cada um gosta do outro. Se você não gostar mais de mim, sinta-se livre para ir embora. Naquela época, as relações eram super hipócritas, os casamentos infelizes se arrastavam até o fim. Ele era avançado mesmo!
Seleção de músicas para celebrar Baptista:
*André Carvalho, jornalista, mantém a coluna mensal Batucando, sobre samba. Ilustração de Kelvin Koubik, "Kino", colunista do NR, artista visual, grafiteiro e músico de Porto Alegre
terça-feira, 23 de julho de 2013
Pão com propaganda
por Ricardo Sangiovanni*
Levantou-se preguiçosamente o cidadão na manhã de domingo, e a primeira coisa que ficou sabendo é que a Vent & Lar vende ventilador de teto de acrílico por R$ 115.
E mais que a Castro Embalagens fabrica sacos para lixo em rolo; que o botox, carbocisteína ou selante capilar no centro de beleza e cosméticos Beleza Fashion sai por cem pratas; que a Reclident oferece aparelho dentário, implantes e próteses; e que Mário Soares, do consultório de nutrição, dá 30% de desconto no atendimento com bioimpedância para quem levar o anúncio recortado.
E assim o cidadão que acordou querendo só comer um pão foi obrigado a consumir, goela abaixo, a moqueca de anúncios de varejo que virou o saco de papel em que a padaria agora embala o pão nosso de cada dia.
Pois é, amigos: aqui na Bahia – e, pelo jeito, não só – saco de pão, aquele secular saco amarelo-pardo de pão, está com os dias contados: a padaria aqui perto de casa – aquela mesma de que já lhes falei certa feita - acaba de adotar as fantásticas embalagens da Pãopaganda (“sua publicidade no pão de cada dia!”), que já vai pela segunda edição, desta vez com dez mil exemplares. Dizem eles (eu duvido) que já distribuíram mais de 7 milhões de embalagens de papel nas panificadoras – com as quais (olha a sustentabilidade aí) retiraram 7 milhões de sacolas plásticas de circulação.
Sabem bem meus mais chegados que não sou homem de reagir com muito entusiasmo às maravilhas criativas da publicidade, do marketing, dessas coisas. Portanto, quem quiser discordar, pensar o contrário, abominar-me a condição de chato de uma figa e condenar-me a morrer pobre e cheio de ideologia, mais duro que pão dormido, que fique à vontade. Mas sou da seguinte opinião: acho de uma picaretagem sem tamanho essa história de vender publicidade em saco de pão.
Porque quem vende publicidade em saco de pão vende, a rigor, a alma de sua própria clientela. “Ô Freitas, aqui vêm por dia 5.000 pessoas comprar pão. Quanto você paga por isso?”, pergunta o dono da panificadora ao genial inventor das embalagens publicitosas. “Dou-lhe X por cabeça, Santos, mais as embalagens de graça, negócio fechado?”, retruca-lhe o publicitário. E arremata a padaria, de porteira fechada.
Quem vende publicidade em saco de pão nos vende sem nem nos perguntar se queremos ou não comer propaganda junto com o pão. Esses espertalhões vendem nossa paciência, nossa saúde mental, nossa paz de espírito dominical. Vendem a entrada sorrateira no sagrado espaço de nossos lares, faturam um trocado gordo e sem nos dar nem o direito de escolher, quanto menos o de pagar mais barato pelo pão – pois não seria o justo, já que a publicidade está custeando uma parte da farinha?
É tempo de unirmo-nos, amigos. Unamo-nos nós que damos duro diariamente, porque nós sabemos que ganhar o pão nos custa é muito caro para ainda termos de dar dinheiro a panificadores de segunda, a publicitários de quinta, a anunciantes de última, ao diabo que lhes carregue. Se querem que consumamos publicidade, que nos consultem, que nos paguem, ou que nos dêem um desconto no preço do pão. E mais: que paguem royalties a toda a cadeia milenar em torno do negócio do pão: aos mesopotâmios, por terem-no inventado; a Jesus Cristo, por tê-lo repartido na ceia, e ainda inventado a reza de que hoje a publicidade infame saca seus slognas chinfrins; e principalmente aos braços de quem amassa o pão, de quem o produz diariamente, às fornadas, suando naquele calor infernal há gerações.
Que seja isso ou nada, amigos. Isso ou nada.
E se for nada, não esqueçam que a LigueSite faz sites de 4 páginas por R$ 400 e entrega em três dias. Que a Porto de Biquini dá 10% de desconto e a Dryclean – que é muito mais que uma lavanderia – dá 15%, mais delivery grátis…
*Ricardo Sangiovanni, jornalista, coordena o blog O Purgatório e mantém no NR a coluna Mistério do Planeta. Escreve de Salvador.
segunda-feira, 22 de julho de 2013
Afinal, quem são os Black Blocs?
por Vinícius Souza*
Para a Folha de São Paulo, os mais de dois mil manifestantes – na maior parte, jornalistas e ativistas pela democratização dos meios de comunicação – que estiveram no protesto na sede da Rede Globo em SP, no último dia 11 de julho, não somavam quinhentas pessoas. Ainda segundo o jornal, tal número seria adepto da ideia sem sentido de trazer o caos pela destruição do patrimônio público e privado, não propondo nada em troca. Para esclarecer a mídia e evitar erros como esse, convém dar algumas informações sobre os ditos “vândalos”.
Diferentemente de querer mudar o sistema pelo dano à propriedade (sempre privada e de preferência simbólica do grande capital), a tática Black Bloc pretende, entre outras coisas, dar visibilidade a lutas anti-capitalistas e anti-proibicionistas. Eles entendem que, independentemente da quantidade de gente, não adianta se manifestar pacificamente com cartazes seja qual for a causa.
No dia 8 de junho, mais de 12 mil pessoas fecharam a Avenida Paulista às 14h, percorreram a Augusta e a Consolação ocupando a Praça da República por cerca de quatro horas, com música, dança e discursos em prol da legalização da maconha. Como de praxe, nenhuma menção na TV e somente uma pequena nota interna nos jornais.
Na véspera, mais de cinco mil manifestantes pelo Passe Livre haviam sido reprimidos com gás lacrimogêneo na Marginal Pinheiros e perto de 500 conseguiram chegar ao vão do Masp, após negociarem com a PM. Essa dispersão pacífica na Paulista, sem incidentes, teve pouca repercussão.
Porém, nos três dias consecutivos de passeatas, apenas a destruição de vidros de estações do Metrô e fachadas de lojas, no dia 6, conquistaram manchetes. E quanto mais a polícia batia, mais gente se juntava no protesto seguinte, até o massacre de ativistas e jornalistas na noite de 13 de junho, que levou a mídia a mudar de posição, promover as manifestações “cívicas” e levantar bandeiras contra a corrupção, a PEC 37, a vinda de médicos estrangeiros, o Governo Federal etc.
De repente, os mascarados atacando a sede da Prefeitura, os vitrais do Theatro Municipal, saqueando lojas e ateando fogo em prédios ocupados por Movimentos de Sem Teto, não se vestem mais exclusivamente de preto e vermelho e nem trazem estandartes negros. Os skates e cabelos moicanos, tão comuns entre os Black Blocs, também desaparecem, dando lugar a cabeças raspadas, músculos definidos e, por vezes, roupas e relógios caros. Ainda há o grafiti (ou picho), mas não mais só de mensagens anarquistas e reivindicações pela tarifa zero. No lugar, palavrões e xingamentos contra o governo.
Só por má vontade ou desconhecimento da história recente das lutas mundiais é possível dizer que todos (e mais os ativistas contra os monopólios midiáticos) fazem parte do mesmo grupo.
Para quem não sabe, os Black Blocs apareceram pela primeira vez nos protestos anti-capitalistas do final do século passado nos encontros dos países ricos em Seattle, nos Estados Unidos, e Gênova, na Itália, com os principais embates contra a polícia, onde houve inclusive mortes entre os manifestantes. Eles reapareceram com força nos EUA, no Occupy Wall Street e, no Brasil, nas marchas anti-proibicionistas de 2010 e 2011.
A ação de pichação e, às vezes, destruição de filiais de grandes redes transnacionais, como McDonalds e Starbucks, além de agências bancárias, visa o ataque a símbolos de um sistema financeiro internacional que oprime populações em todo o mundo. De inspiração anarcopunk, amam as liberdades individuais, o faça-você-mesmo e as músicas pesadas. Compreendem a necessidade atual de um Estado que garanta os direitos e distribua as riquezas entre os mais pobres. O socialismo antes do anarquismo. Mas não são “patrióticos”, abominando associações a símbolos nacionais, como bandeira e o hino. Conectam-se por redes, coletivos e pequenos grupos, sem lideranças. Curiosamente, nenhum dos detidos por depredação de patrimônio se declarou Black Bloc.
*Texto e foto Vinícius Souza, jornalista do MediaQuatro, especial para o NR.
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sexta-feira, 19 de julho de 2013
Incomode-se
por Júnia Puglia ilustração Fernando Vianna*
Há um incômodo novo me atazanando o juízo. Se estou lendo, dirigindo, cozinhando ou acordada no meio da noite, ela me aparece e demora para ir embora. Desde que tomei conhecimento do assunto, tem sido assim. Por qualquer coisa, Belén me vem à cabeça. A menina chilena de onze anos, que está grávida do padrasto, por quem foi seguidamente abusada, com a conivência de sua mãe. O aborto é radicalmente proibido lá, em qualquer circunstância. Portanto, apesar de algumas tentativas de argumentar que a gestação põe em risco a vida de Belén (ela tem onze anos!), e que caíram no vazio legal e na indiferença do Estado, ela terá o bebê. Ponto final. Belén que se dane.
São tantos elementos de hipocrisia, crueldade e cinismo, que fico imaginando a sensação de impotência e a frustração das várias pessoas sensatas e solidárias que, em diferentes níveis, tentaram interferir em favor da menina. A tragédia de Belén é completa, profunda e irreparável.
Não quero alimentar este incômodo, nem me ocupar de domá-lo até que se dissolva. Ele só me terá alguma serventia se puder contaminar você. E a hora é agora. Aqui no Brasil, os novos e velhos arautos da hipocrisia estão tentando se aproveitar de uma conjuntura aparentemente favorável para fazer aprovar uma nova legislação, que jogará o aborto na ilegalidade total, além de promover vários outros absurdos sobre o estupro e os direitos das mulheres. Incríveis absurdos, pelo que representam de obscurantismo e ignorância – sem falar do cinismo, onipresente quando se trata dos temas relacionados à sexualidade.
Conheço bem os argumentos de quem defende a manutenção de qualquer gestação em qualquer circunstância, quase todos de natureza religiosa. Não me cabe questionar crenças ou convicções, mas não posso deixar de observar que tais argumentos deliberadamente prescindem de dois elementos a meu ver essenciais para a defesa daquilo que entendemos como civilização humana: o respeito ao direito de decisão sobre temas de foro íntimo e a compaixão.
Incomode-se junto comigo e contamine. Precisamos mas é de andar para a frente, não para trás. O retrocesso não vai salvar nada nem ninguém. Quem diz que vai sabe que está mentindo.
Enquanto eu pensava e escrevia esse texto, nasceram, na mesma semana, os dois bebês que eu já havia mencionado aqui. Desejados, esperados e recebidos como celebrações da vida. A chegada deles só reforça ainda mais tudo o que eu disse acima.
*Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto.
quinta-feira, 18 de julho de 2013
Não existe amor em 3D
por Tomás Chiaverini*
Domingo passado fui assistir ao Homem de Aço. Cento e quarenta minutos de explosões, prédios desabando, destroços e rajadas de energia saltando sobre a plateia mastigadora de pipoca ensebada. Saí do cinema zonzo, cabeça doendo, com a nítida impressão de que, se continuar por esse rumo, o tão amado 3D vai acabar de vez com o cinema.
Meu primeiro contato com o Super-Homem foi numa telinha de 14 polegadas. Sessão da Tarde: Superman II – A Aventura Continua. Deve ter sido no final da década de 1980, eu estava então com meus sete ou oito anos.
Lembro que a coisa ia bem até que o Super-Homem, completamente apaixonado por Louis Lane resolve abrir mão dos poderes. Para amar uma mortal é obrigado a tornar-se mortal também. Entra num esquife de gelo que mantém na Fortaleza da Solidão (seu esconderijo no Polo Norte) e sai de lá um homem comum. Que ideia...
Na volta para Metrópolis, provavelmente em algum lugar próximo ao Alasca, o casal, agora obrigado a viajar de carro, para numa lanchonete de beira de estrada. Um valentão se mete a besta com Louis, Clark vai protegê-la e acaba vergonhosamente espancado. Apanha feio, sangra, é humilhado em público e diante da mulher que ama.
Aquilo foi demais pra mim. Saí correndo da sala aos prantos e me tranquei no banheiro, inconformado com a sova que os roteiristas tiveram coragem de aplicar no pobre do Super-Homem. Só concordei em ver o resto do filme depois que meu pai, gritando do outro lado da porta, garantiu que Kal-El voltaria a voar, ver através das coisas e derreter revólveres com sua visão de calor.
Outro dia vi esse filme de novo. Não é dos melhores. Mas a surra na parada de caminhoneiros é realmente muito forte. Christopher Reeve era um homenzarrão enorme e delicado, com uns olhos azuis que exalavam bondade e autoconfiança. Quando seu Super Homem levanta do chão, amparado por Louis, vendo o próprio sangue pela primeira vez, é como uma criança descobrindo toda a dor e perversidade do mundo.
No fim do filme, claro que Clark volta à mesma biboca, dá uns sopapos no valentão e aquilo nos enche de felicidade, e lá está a catarse que tantos espectadores fascinou ao longo dos séculos. E é isso que os roteiristas do 3D (e do cinema de ação em geral) estão perdendo. É impossível ter duas horas e meia de catarse.
General Zod derrubando um prédio com a cabeça do Super Homem é impactante. Dois prédios, ok. No terceiro prédio a gente já não aguenta mais, já ficou claro que aquilo vai longe e que não está surtindo efeito, e daí pra frente o barulho das explosões em Surround 5.1 só serve pra machucar os ouvidos.
Um exagero que talvez seja reflexo do nosso tempo. Precisamos de mais, cada vez mais. Mais dinheiro, mais carros, mais comida, mais bebida, mais mulheres, consumir e consumir, e mais efeitos especiais, mais explosões, mais vida, viver e viver para esquecer a morte.
A publicidade está o tempo todo lá, nos dizendo que tem de ser tudo agora, e muito, e rápido, porque a vida passa. E no Facebook, aquelas pessoas todas, todas lindas se fotografando com os beicinhos mais incríveis, e vivendo tanto, viajando, comendo e namorando, enquanto a você só resta um cineminha besta. Então se for cinema, tem de ser uma experiência, e se vai ter explosão tem de ser a explosão mais incrível da história.
E no meio de tudo isso as coisas delicadas – o olhar tão humano de Clark Kent depois da primeira surra – acabam se perdendo. Pode ser. Ou pode ser apenas que eu esteja velho demais para assistir a filmes de super-herói.
*Tomás Chiaverini é autor do romance Avesso (Global), e dos livros reportagem Cama de Cimento e Festa Infinita (ambos pela Ediouro). Mantém a coluna mensal Abelha na Orelha.
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quarta-feira, 17 de julho de 2013
Para que lado vai?
por Thiago Domenici*
O ápice das mobilizações pelo país ocorreram entre os dias 17 e 21 de junho. Uma multidão de gente e reivindicações, frustrações e aspirações, por vezes difusas, ganharam forma em gritos de guerra e cartazes. Tivemos, sem dúvida, muito mais a névoa dos gases policiais e da violência do que céus de tranquilidade.
Passada a grande turbulência, os holofotes se voltam para o Planalto. A minha expectativa é de que o executivo tenha alguma carta na manga não marqueteira que dê vazão ao sentido de “urgência” das reivindicações. A ideia do plebiscito encalhou. Agora surge uma comissão da reforma política que terá 90 dias para propor algo. Depois, ao que consta, um referendo será realizado. A chamada “agenda positiva” foi criada justamente para dar respostas rápidas, ou seja, desencalhar projetos que estavam encalhados por morosidade, acordos políticos, lobbies e prioridades de guetos.
É curiosa essa esquizofrenia de hiperatividade do executivo e legislativo depois das agitações populares. Escancaram, sobretudo, a contradição de um sistema político desgastado. Não tenho dúvidas de que um bom começo seria fazer a reforma política. A ver o que virá nos próximos três meses. Gostaria de ver menos imagem e mais verdade nas ações gerais daqui pra frente.
***
Em terras paulistanas, Haddad disse em entrevista ao jornal Brasil Econômico que os manifestantes do Movimento Passe Livre “são ingênuos, mas espertos". Quis dizer que são ingênuos porque não se preocupam com a fonte de financiamento da tarifa zero, e espertos porque se negam a discutir os aspectos técnicos da isenção – que, no caso de São Paulo, pode somar R$ 6 bilhões.
Dizer que “se negam a discutir” e que “não se preocupam” soa injusto e errado. Sem muito esforço, caro prefeito, você encontra o site tarifazero.org, o qual deveria olhar, já que desde 2009 o espaço, que não é do movimento, mas é tocado por alguns militantes do MPL, trata questões pertinentes ao transporte público, entre elas, a viabilidade econômica do Tarifa Zero.
E mais: se negar a discutir pressupõe que a prefeitura tenha feito um convite ao diálogo nessa pauta específica. Alguém me diga, por favor, se isso ocorreu oficialmente e se o MPL negou tal convite. A questão fundamental na cidade é inverter as prioridades do transporte público.
Mas, sem grandes expectativas, como citou o economista Luiz Gongaza Beluzzo em coluna na Carta Capital, “hoje, mais do que nunca, a critica da sociedade existente não pode ser feita sem a critica da economia política”. É aí que se precisa romper o nó górdio. E nesse campo econômico/político, infelizmente, pouco tenho visto de "agenda positiva".
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O vídeo abaixo é produção coletiva realizada pelo Projeto Cala-boca já morreu e pelo Coletivo EntreLinhas, como colaboração para a Campanha Tarifa Zero.
Thiago Domenici, jornalista, editor e coordenador do Nota de Rodapé
terça-feira, 16 de julho de 2013
Obscenas #1
Imagens que remetam a "obscenas" políticas, econômicas e sociais é, a partir de hoje, mais um pitaco do NR nas redes sociais e por aqui. Acompanhe conforme a demanda permitir. Se tiver sugestão escreva pra contatonotaderodape@gmail.com
O pijama de Antônio
por Ricardo Sangiovanni*
Queria fazer aqui uma denúncia ao pessoal das centrais sindicais: quinta-feira passada, dia da manifestação, Antônio, um dos dois Antônios que é porteiro aqui no prédio onde alugo este apartamento, veio trabalhar normal, não se abalou nem nada de ir para a rua protestar.
Mas trabalhando – disso fiquem sabendo vocês, pessoal das centrais – Antônio protesta mais, bem mais do que se parasse um dia só para se manifestar.
Antônio pega no serviço todo dia às dezoito da tarde, para largar só às seis do dia seguinte. (Por sinal, doze horas, pessoal das centrais sindicais: cadê vocês? Enfim, deixa quieto, que não é sobre isso a crônica.)
Se o morador daqui chega em casa cedo, até umas vinte, vinte-e-uma da noite, capaz que ainda pegue Antônio todo empertigado, de sapato lustrado, calça social, camisa de botão com o nome do condomínio bordado, de cinto e tudo, luxando numa fineza danada.
Mas passou desse horário, é batata: lá vai Antônio abrir o portão arrastando pendurado no pé seu borrachudíssimo chinelo (também, não tem pé que aguente aquele tijolo de sapato), já vestido com sua calça preta moleton (a mais velhinha que a pessoa tem, a do elástico folgado, sabe?), mais o usual blusão vermelho, puído mas de estimação – de manga comprida, é claro (porque de noite bate um ventinho, aquilo esfria os ossos que só vendo).
E assim, todo dia, Antônio se manifesta: imprime um pijâmico ritmo a uma parte de seu trabalho inglório, que é levantar-se da cadeira toda santa vez que chega alguém na porta, a pé ou de carro – aliás, a esse propósito, amigos, creiam: moro num prédio 1) de cujos portões nenhum morador possui a chave, dependemos todos do porteiro; e 2) no qual se arranja muito dinheiro para reformar as pastilhas da fachada, e nenhum para instalar um bendito de um portão automático para facilitar a vida ao trabalhador da portaria. (A síndica a esta altura estará pegando da caneta para escrever-me uma carta, lembrando-me de que o condomínio recentemente fez uma benesse aos porteiros, comprou-lhes uma televisão nova, grandona, inquirindo que isso eu não boto na crônica. Pois boto, dona síndica, e digo mais: arranja-se muito dinheiro para comprar televisão, e nenhum para instalar um bendito de um portão automá…)
E tem mais, pessoal das centrais sindicais: não é só Antônio não, viu? É todo mundo, no Brasil todo mundo é cedo ou tarde obrigado a dar um galho no trabalho, porque aqui pelo trabalho paga-se uma miséria, dá-se uns benefícios indignos do nome, e cobra-se em troca o couro do cidadão. Essa Bahia onde vivo é talvez a prova maior de que o ato, a noção mesma de trabalho, no Brasil, já leva em si, incorporada, um quê imenso e diário de protesto.
O brasileiro trabalhador já está se manifestando, pessoal das centrais sindicais, desde que se inventou o trabalho neste país. E está desde sempre acordado, pessoal das centrais sindicais. De pijama, que seja, mas muito bem acordado obrigado.
*Ricardo Sangiovanni, jornalista, coordena o blog O Purgatório e mantém no NR a coluna Mistério do Planeta. Escreve de Salvador.
Queria fazer aqui uma denúncia ao pessoal das centrais sindicais: quinta-feira passada, dia da manifestação, Antônio, um dos dois Antônios que é porteiro aqui no prédio onde alugo este apartamento, veio trabalhar normal, não se abalou nem nada de ir para a rua protestar.
Mas trabalhando – disso fiquem sabendo vocês, pessoal das centrais – Antônio protesta mais, bem mais do que se parasse um dia só para se manifestar.
Antônio pega no serviço todo dia às dezoito da tarde, para largar só às seis do dia seguinte. (Por sinal, doze horas, pessoal das centrais sindicais: cadê vocês? Enfim, deixa quieto, que não é sobre isso a crônica.)
Se o morador daqui chega em casa cedo, até umas vinte, vinte-e-uma da noite, capaz que ainda pegue Antônio todo empertigado, de sapato lustrado, calça social, camisa de botão com o nome do condomínio bordado, de cinto e tudo, luxando numa fineza danada.
Mas passou desse horário, é batata: lá vai Antônio abrir o portão arrastando pendurado no pé seu borrachudíssimo chinelo (também, não tem pé que aguente aquele tijolo de sapato), já vestido com sua calça preta moleton (a mais velhinha que a pessoa tem, a do elástico folgado, sabe?), mais o usual blusão vermelho, puído mas de estimação – de manga comprida, é claro (porque de noite bate um ventinho, aquilo esfria os ossos que só vendo).
E assim, todo dia, Antônio se manifesta: imprime um pijâmico ritmo a uma parte de seu trabalho inglório, que é levantar-se da cadeira toda santa vez que chega alguém na porta, a pé ou de carro – aliás, a esse propósito, amigos, creiam: moro num prédio 1) de cujos portões nenhum morador possui a chave, dependemos todos do porteiro; e 2) no qual se arranja muito dinheiro para reformar as pastilhas da fachada, e nenhum para instalar um bendito de um portão automático para facilitar a vida ao trabalhador da portaria. (A síndica a esta altura estará pegando da caneta para escrever-me uma carta, lembrando-me de que o condomínio recentemente fez uma benesse aos porteiros, comprou-lhes uma televisão nova, grandona, inquirindo que isso eu não boto na crônica. Pois boto, dona síndica, e digo mais: arranja-se muito dinheiro para comprar televisão, e nenhum para instalar um bendito de um portão automá…)
E tem mais, pessoal das centrais sindicais: não é só Antônio não, viu? É todo mundo, no Brasil todo mundo é cedo ou tarde obrigado a dar um galho no trabalho, porque aqui pelo trabalho paga-se uma miséria, dá-se uns benefícios indignos do nome, e cobra-se em troca o couro do cidadão. Essa Bahia onde vivo é talvez a prova maior de que o ato, a noção mesma de trabalho, no Brasil, já leva em si, incorporada, um quê imenso e diário de protesto.
O brasileiro trabalhador já está se manifestando, pessoal das centrais sindicais, desde que se inventou o trabalho neste país. E está desde sempre acordado, pessoal das centrais sindicais. De pijama, que seja, mas muito bem acordado obrigado.
*Ricardo Sangiovanni, jornalista, coordena o blog O Purgatório e mantém no NR a coluna Mistério do Planeta. Escreve de Salvador.
segunda-feira, 15 de julho de 2013
Como vota Sua Excelência?
por Celso Vicenzi*
Virou clichê dizer que “todos os políticos e partidos são iguais”. É essa também a impressão de uma grande parcela de cidadãos que aderiu às manifestações em todo o país. Para chegar a essa quase-certeza (ou certeza, para os mais convictos), houve a colaboração intensiva da mídia no dia a dia da cobertura política. É verdade que boa parte dos políticos tem contribuído para que essa percepção prevaleça. Mas esse sentimento quase unânime foi também habilmente construído pelos meios de comunicação. Pura e simplesmente por omissão, por sonegar informação ao leitor, ao radiouvinte, ao telespectador, ao internauta.
Não interessa aos donos da mídia dizer “quem é quem” no cenário político nacional, estadual e municipal. Por isso, com raríssimas exceções, a cobertura de votações importantes costuma trazer apenas o resultado, sem mencionar claramente como votaram os partidos, os vereadores, os deputados e os senadores. Pode-se alegar que, nos veículos impressos ou na TV, não há espaço e tempo para tanto detalhamento. Dependendo da importância do que está em votação, por que não? Em que manual está escrito que não pode? Depende de que tipo de jornalismo se queira fazer. Na mídia impressa, certamente há espaço – que não ocupa mais do que um parágrafo – para indicar pelo menos o voto dos partidos. Idem nas TVs e rádios. São informações que não deveriam ser omitidas, sob pena de a população nunca saber como votam os seus representantes nas questões mais essenciais. Quem tem feito esse papel, com as limitações evidentes de alcance, tem sido as redes sociais.
A diferença de posições ideológicas entre os partidos, apesar dos pesares, fica evidente, por exemplo, no caso recente da votação de uma Moção de Repúdio à espionagem norte-americana que acessou bilhões de emails, telefonemas e dados de empresas e cidadãos brasileiros, além do governo. A Moção foi apresentada pelo deputado federal José Guimarães (PT) e aprovada por 292 votos. No entanto, 86 deputados votaram contra e 12 se abstiveram de aprovar um documento que se posiciona em favor da soberania brasileira e pede uma solução internacional para a violação do direito à privacidade e do sigilo que envolve as relações entre empresas e países. Quem votou “sim” expressou também “concordância com as iniciativas destinadas a criar uma agência multilateral, no âmbito do sistema das Nações Unidas, para gerir e regulamentar a rede mundial de computadores, poderoso instrumento de uso compartilhado da humanidade”. E externou, ainda, “apreensão com a segurança do cidadão norte-americano Edward Snowden, que está refugiado, há dias, no aeroporto de Moscou”.
Certamente há razões para tantos parlamentares manifestarem-se contrários ou absterem-se de apoiar uma moção contrária à violação das leis internacionais, que o governo brasileiro – e outras nações – classificaram como muito grave. O que importa, no caso, não é discutir o mérito. Mas observar que os partidos identificados mais à esquerda votaram unânimes pela aprovação. Quando se identificam os votos, o eleitor tem a chance de saber quem de fato o representa.
Neste caso, dos partidos maiores, votaram unânimes pela Moção o PCdoB (11 votos), PDT (24 votos), PT (70 votos), PPS (9 votos), PRB (9 votos) e PV (8 votos). Foram acompanhados pelo voto uniforme de partidos menores como PEN (2 votos), PHS (1), PSL (1), Psol (2), PTdoB (2) e o voto do catarinense Jorge Boeira (sem partido). Votaram contra: DEM (16 dos 20 votos), PMDB (11 contra e uma abstenção, de um total de 64 votos), PMN (2 contra em 3 votos), PP (17 contra em 24 votos), PR (4 contra e uma abstenção, em 24 votos), PRP (um contra e um a favor), PSB (2 contra e uma abstenção, em 21 votos), PSC (8 contra em 10 votos), PSD (20 contra em 32 votos), PSDB (3 contra e 10 abstenções) e PTB (2 contra em 13 votos).
Se houvesse uma prestação de contas rotineira, certamente seria possível que uma parcela cada vez mais significativa da população compreendesse que, mesmo numa época em que as cores partidárias perderam muito da sua autenticidade programática, é possível, sim, perceber diferenças muito claras entre os partidos e os parlamentares. Os brasileiros e brasileiras têm o direito de saber como votam os parlamentares. E a mídia do país tem o dever de mostrar. Se não o faz, é porque tem interesse em desinformar. E impedir que o cidadão identifique, com mais clareza, quem de fato o representa.
*Celso Vicenzi, jornalista, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina, com atuação em rádio, TV, jornal, revista e assessoria de imprensa. Prêmio Esso de Ciência e Tecnologia. Autor de “Gol é Orgasmo”, com ilustrações de Paulo Caruso, editora Unisul. Escreve humor no tuíter @celso_vicenzi. “Tantos anos como autodidata me transformaram nisso que hoje sou: um autoignorante!” Estreia hoje no NR sua coluna Letras e Caracteres.
sexta-feira, 12 de julho de 2013
Heróis e santos
por Júnia Puglia ilustração Fernando Vianna*
Uma das características mais interessantes da cultura brasileira é a nossa irreverência em relação às figuras heroicas (quase todas homens). Não lhes damos muita atenção, não as cultuamos nem homenageamos. Na verdade, não as levamos a sério. Parece que todas as personagens supostamente míticas que atuaram no nosso passado, e de alguma forma nos moldaram como país e sociedade, foram submetidas ao crivo implacável do tempo, que vai-lhes desvestindo o figurino heroico e revelando personalidades bastante humanas, tão parecidas com as de todo mundo, que o pedestal perde o sentido.
A pesquisa e perspectiva históricas têm desempenhado um papel muito importante neste processo. Hoje sabemos o quanto interesses políticos, econômicos e pessoais nada louváveis, quando não francamente escusos, atuaram em episódios ou processos antes relatados sob a ótica que mais convinha. Ou será que alguém ainda acha que a conquista das Américas pelos europeus, por exemplo, foi um processo belo e justo?
Na verdade, a manutenção de figuras míticas ao longo do tempo é muito mais um produto da propaganda ou da fantasia coletiva do que a confirmação de feitos extraordinários e desinteressados, sobre-humanos. Lembro-me da única vez que estive em Cuba, há uns dez anos, e de como me impressionou a repetição exaustiva dos nomes e façanhas dos heróis oficiais da revolução socialista, começando pelos programas infantis na televisão.
Se tenho um herói, ele é Nelson Mandela. A despeito das críticas que se lhe façam ou dos erros que tenha cometido, o saldo da sua contribuição para o mundo me parece amplamente positivo. Prefiro assim, admirar alguém, preservando a consciência das limitações impostas pela condição humana. Talvez por isso me soe tão ingênua a expectativa, expressa por muitas pessoas, de que figuras públicas sejam perfeitas ou desinteressadas, quase santas.
Falando em santas, não posso deixar de mencionar Madre Teresa de Calcutá. Admirada no mundo todo, já era meio santa em vida e está prestes a ser oficialmente santificada por sua igreja. Mas que figura sombria foi esta senhora! Decidida a viver entre os doentes e os miseráveis, não hesitou em usá-los como um meio fácil e indecente de atender sua necessidade pessoal de glorificação da dor e do sofrimento; na verdade, esquivou-se de curar as doenças e aliviar a miséria dos muitos que a procuraram. Atraiu para sua mórbida missão um grande número de voluntárias e recebeu, nas palavras da sua sucessora, recursos financeiros “incontáveis”, que, segundo diversos relatos, não foram empregados em prover atendimento médico e dignidade, mas na construção de conventos e em gordos depósitos nas contas bancárias da sua igreja. Por sinal, a mesma instituição que faz tudo o que pode para impedir o avanço da liberalização do aborto com argumentos “pró vida”. Infelizmente, nada disso surpreende.
Tanto o heroísmo quanto a santidade pressupõem super pessoas, que se situam além e acima das limitações e interesses humanos, como se fosse possível. Prefiro gente comum, que me inspire com suas atitudes e visão da vida, mas que me deixe ver também como somos iguais e como precisamos uns dos outros.
*Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto.
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