É a receita de Mongolia, uma revista mensal que, com pouco mais de um ano de existência, tem como alvos privilegiados de seus ataques ferinos a monarquia e a Igreja, baluartes do conservadorismo espanhol
por
Ricardo Viel, de Madri
(o texto publicado é da Revista Retrato do Brasil, edição 71, junho de 2013, fruto de parceria mensal com o NR)
Em um pequeno povoado das Astúrias, no norte da Espanha, numa manhã de fevereiro, um senhor pregou no quadro de avisos da paróquia uma nota de falecimento. Nada de incomum por aquelas bandas, não fosse o fato de o anúncio tratar-se, em realidade, da capa de uma revista humorística e de o morto ser o primeiro-ministro espanhol, o direitista Mariano Rajoy. Em letras garrafais, a edição da Mongolia daquele mês informava algo de que muitos espanhóis desconfiavam: “Rajoy morreu”.
“Isso, de um senhorzinho avisar seus vizinhos de que esse governo está morto, é algo que, se fôssemos uma revista virtual, nunca aconteceria”, explica Eduardo Galán, 33 anos, um dos fundadores da revista mensal criada há pouco mais de um ano. “O papel é algo que tem mais impacto, nossa capa fica exposta nas bancas e instiga as pessoas a lerem a mensagem.” A ideia de “matar” o primeiro-ministro surgiu em janeiro passado, após a revelação de um escândalo envolvendo o financiamento irregular das campanhas do Partido Popular (PP), atualmente no poder. Rajoy demorou dias para dar explicações e, quando o fez, não convenceu. “Dizíamos entre nós: esse governo está morto, cheira como cadáver”, diz Galán. “Também fizemos uma brincadeira com o [diário espanhol] El País, que dias antes tinha publicado uma foto falsa do Hugo Chávez, sem apurar as circunstâncias. Fizemos igual: anunciamos a morte e esclarecemos que não sabíamos como nem quando tinha acontecido.”
Por provocações como essas, a publicação satírica vem conquistando fãs e desafetos no país de Cervantes. A revista é fruto do momento político e econômico pelo qual passa a Espanha. Foi criada por um grupo formado por cinco amigos – jornalistas, artistas gráficos e cartunistas –, que se viram desempregados ou subempregados por conta do “enxugamento” de vários meios de comunicação (e o fechamento de outros). A eles se juntou um advogado, espécie de mentor da trupe. Reuniram-se, conseguiram convencer três dezenas de conhecidos a bancarem, como acionistas, o projeto de 60 mil euros (cerca de 150 mil reais) e colocaram em marcha uma revista que mistura humor e jornalismo. Em meio à crise e utilizando uma plataforma considerada obsoleta por muitos (o velho papel), Mongolia parecia fadada ao fracasso. Não foi assim. A revista (que custa 3 euros por exemplar, cerca de 8 reais) teve uma tiragem inicial de 25 mil exemplares mensais e atualmente circula com cerca de 40 mil. O número de assinantes é crescente (hoje, beira os 2 mil) e em um ano o grupo lançou cinco livros relacionados com a publicação. Iniciaram a aventura com dinheiro suficiente para manterem-se por seis meses e hoje já não cogitam a possibilidade de fechar por falta de recursos – nem por outro motivo.
“Sentíamos que havia um espaço para uma publicação assim”, diz o argentino Fernando Rapa, 42 anos, responsável pela parte gráfica do projeto. “Ficamos 18 meses planejando, fizemos vários números experimentais e tínhamos medo de que alguém fizesse antes que nós.” Do Brasil, onde trabalhou em veículos como os diários Lance! e O Estado de S. Paulo, o desenhista trouxe algumas influências, como do Casseta & Planeta (da fase inicial, esclarece) e, principalmente, de O Pasquim. Também tem como espelho revistas satíricas francesas e argentinas e algumas publicações nascidas na Espanha no período posterior ao da ditadura de Francisco Franco (1938–1973) e que não existem mais.
Longe de ser um obstáculo, o momento atual se apresenta estimulante, dizem os criadores de Mongolia. Na década passada, época de bonança, em que todos os espanhóis acreditavam ser ricos (por conta dos empréstimos que os bancos ofereciam), não havia espaço para a contestação no país. O humor se afastou da crítica social. De repente, a bolha imobiliária estourou e a mensagem de que na Espanha não havia pobreza se esfumou. Vieram os protestos de rua e abriu-se espaço para o surgimento de uma revista que, com humor, coloca o dedo na ferida, diagnosticam os criadores de Mongolia. O fechamento, em 2007, do diário Público, o mais à esquerda que havia na Espanha e que agora mantém somente a versão on-line, foi a gota que fez transbordar o copo, avalia Rapa, ex-funcionário do jornal. “Os meios de comunicação tradicionais não atenderam a essa demanda que está nas ruas. Queríamos preencher esse espaço. Herdamos muitos leitores do Público, mas não só isso. Espanta-nos ver que nosso leitor é variado. Às vezes recebemos cartas escritas à mão, há muita gente idosa que nos lê.”
Mongolia tem uma política própria em relação ao conteúdo que produz. Nada do que é publicado em papel é disponibilizado virtualmente – a revista vive das vendas em bancas e das assinaturas e tem uma estrutura muito enxuta. Além disso, a ausência de publicidade (há pouquíssimos anúncios, todos ocupam pouco espaço e são, portanto, baratos) garante a independência necessária para atacar quem quer que seja. “Não somos contra a publicidade, só não aceitaríamos anúncios de bancos. E de prostituição, mas, nesse caso, enquanto for ilegal. A questão é que não podemos nos condicionar a isso”, diz Galán, o responsável, entre outras tarefas, pela divulgação da revista nas redes socais da internet. Embora aposte no papel, Mongolia tem mais de 80 mil seguidores no Twitter e 20 mil no Facebook. Algumas das brincadeiras feitas no mundo virtual acabam chegando à edição impressa. A internet também serve para medir o interesse dos leitores por certos assuntos e divulgar os muitos eventos que realizam – debates, viagens pelo país para promover a publicação, etc.
Para reduzir o custo e manter a independência, os fundadores da revista resolveram eliminar todos os intermediários possíveis. A cada edição, eles vão à gráfica, carregam os próprios carros com os exemplares impressos e os distribuem em Madri e arredores. O restante da tiragem é enviado por correio aos assinantes e distribuidores (como livrarias e bares) em outras cidades.
A primeira edição da revista, publicada em março do ano passado, trazia na capa a frase: “A Espanha tem uma saída (Barajas)”. Barajas é o aeroporto da capital espanhola, e a piada fazia referência à fuga, principalmente de jovens, em busca de trabalho em outros países – o desemprego na Espanha atingiu 27% da população economicamente ativa no final do primeiro trimestre, mas entre os jovens a taxa foi muito maior, 57%. No número seguinte, o alvo foi a monarquia: “O rei poderia estuprar você e nada aconteceria com ele”. A publicação listou cem coisas que o monarca espanhol, por ser, de acordo com a Constituição, uma figura “inimputável”, pode fazer e os demais mortais, não, como baixar filmes piratas na internet, fazer xixi na rua, etc. As edições seguintes foram “dedicadas” à Igreja, aos políticos, banqueiros e, em especial, à Casa Real.
A revista funciona numa sala minúscula, sem banheiro próprio, próxima à sede do Congresso dos Deputados (equivalente à Câmara dos Deputados brasileira), em Madri. O lugar é sublocado. Até as seis da tarde, ali funciona uma empresa de criação gráfica; depois, a Mongolia. O espaço é usado, sobretudo, na semana de fechamento da edição. No restante do tempo, cada um dos membros da equipe trabalha em sua própria casa. No final de fevereiro, eles preparavam a edição que teve na capa a foto do rei Juan Carlos com um tomate espatifado na cara. “Não tenho dúvida de que graficamente é nosso melhor trabalho”, diz, sem disfarçar o orgulho, o humorista e roteirista Darío Adanti, 37 anos, outro argentino. No mês passado, a Casa Real foi novamente o alvo principal da publicação. Num truque gráfico, que combinava letras em tamanhos muito diferentes colocadas sobre a foto da filha do rei, a infanta Cristina – que está sendo investigada pelo suposto enriquecimento ilícito de seu marido –, lia-se em letras enormes: hija de puta. Uma fonte minúscula preenchia os espaços e a frase que se formava, quase imperceptível, era: “Filha dos reis da Espanha é imputada” (denunciada).
Os ataques à família real foram vários, mas foi contra os católicos radicais a principal briga. Por alterar a imagem “oficial” da Virgem de Macarena (padroeira de Sevilha) em um panfleto de divulgação da revista na cidade, o grupo foi atacado pelo prefeito e sofreu ameaças de morte. “O que não sabíamos era que a imagem da virgem tem copyright”, diz Eduardo Bravo. “Ou seja, por qualquer santinho que você queira fazer tem que pagar direitos autorais. Esses caras da Igreja vão direto pro inferno, serão os primeiros. Jesus Cristo falou dos mercadores, não foi? Esses aí podem rezar quanto quiseram que vão queimar”, se diverte o espanhol. “Disseram que iam fazer com a gente o que se fez na Guerra Civil [1936–1939], que iam nos matar e que ninguém ia encontrar nossos corpos. Há gente doente da cabeça, que precisa ir ao médico. Dizer que uma imagem de madeira é a mãe deles...”, diz Galán. “Só se fossem filhos do Pinóquio”, completa Bravo, recebendo os cumprimentos do xará, que gargalha com o comentário.
Assim trabalha a equipe de Mongolia. Ideias e piadas surgem a qualquer momento, em qualquer lugar: durante jantares, no táxi indo para um show, no bar tomando cervejas ou durante uma entrevista. Ainda que recheada de piadas inocentes ou sem maior objetivo do que provocar o riso, Mongolia é uma publicação que tem como principal marca a contestação, a crítica e a denúncia. Por trás do lema “Uma revista sem mensagem nenhuma”, há uma ideologia clara: a equipe é formada por ateus. E de esquerda. Muito mais à esquerda do que muitos dos que hoje na Espanha se dizem de esquerda, ressaltam os membros da equipe, que encaram as bancas como “trincheiras”.
Quando questionados sobre os limites para o humor, a resposta é simples: a lei. Não há tema tabu: morte, opção sexual, credo, raça, tudo pode ser piada, dependendo do bom senso e do aval de Gonzalo Boye, um advogado criminal de 47 anos que aceitou o desafio de editar a revista e atuar como “censor”. Tudo que é publicado passa por sua lupa legal. “Outro dia, iríamos fazer uma piada com uma pessoa que todo mundo sabe que é viciada em cocaína”, relembra Bravo. “Só que o Boye nos explicou que era um crime, que poderia dar cadeia. Chegamos à conclusão de que não valia a pena ir para a prisão por uma piada.” Na edição de abril, a revista saiu com um texto que tinha mais de 30% das palavras riscadas. Eram os vetos do advogado. Ao lado vinham suas anotações a caneta.
Curiosamente, uma das seções de Mongolia que mais sucesso e repercussão têm é a que é publicada nas últimas páginas da revista, a cargo do experiente jornalista catalão Pere Rusiñol. É a parte das reality news. Da página 30 à 45, o que se lê são reportagens investigativas, que tocam em assuntos que muitos jornais, por questões diversas, não se atrevem a publicar. Muitas das histórias são passadas por colegas de outros meios – anonimamente – que sabem que não conseguiriam publicá-las nos veículos para os quais trabalham. Escândalos envolvendo ministros, negócios escusos entre empresários e políticos, assuntos sigilosos envolvendo a monarquia, questões da transição à democracia que nunca foram esclarecidas (e ficaram esquecidas) são alguns dos temas que levaram a seção a ser considerada por muitos como exemplo do melhor jornalismo feito hoje na Espanha.
Embora publique piadas pesadas e denúncias graves, a revista, até agora, não sofreu nenhum processo. O número dois, que falava dos privilégios do rei, trazia na capa a advertência: edição para ser apreendida nas bancas. Nada aconteceu. “Nós levantamos duas hipóteses para não termos sido processados”, teoriza Galán de maneira brincalhona. “Para não dar publicidade à revista é uma hipótese. A outra é que tudo o que nós publicamos é verdade e eles não têm como contestar.”
Após um ano de existência de Mongolia, o balanço é amplamente favorável. Passados seis meses, os criadores começaram receber salários e a pagar os colaboradores – como acordado no início. Vieram vários prêmios, um deles, recebido no mês passado, pelo trabalho da publicação na defesa dos valores humanos. Os leitores e seguidores nas redes sociais continuam crescendo, e artigos elogiosos, como os que saíram nos diários americanos The New York Times e The Washington Post e no italiano Corriere della Sera, se acumulam. Artistas, escritores e intelectuais de importância na Espanha literalmente vestiram a camisa da revista e fazem publicidade gratuita.
Talvez o maior desafio seja manter-se no topo. “É, isso assusta”, diz Bravo, que coça a longa e grisalha barba. “Já falamos sobre isso. Há duas saídas. Uma é reinventar-se sempre. Ainda achamos que podemos melhorar. Eu sempre gosto mais da última edição. A segunda opção é ser como o Chaves [personagem humorístico da TV]: todo mundo já sabe o final da piada, mas é tão bom que todo mundo ri.”
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Ricardo Viel, jornalista, atualmente em Lisboa, Portugal