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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sábado, 30 de novembro de 2013

Fácil publicar, difícil ser lido


por Fernanda Pompeu     Imagem: Régine Ferrandis

Um dos maravilhosos milagres da Nossa Senhora da Internet é possibilitar a expressão de uma multidão de escribas. Está quase todo mundo bordando palavras no Facebook, Twitter, blogs e congêneres.

A enorme vantagem de uma multidão de escribas é navegarmos na infinita leitura de pontos de vista, abordagens, opiniões. Veganos e carnívoros, devassos e evangélicos, anjos e demônios disputam olhos e atenção de leitores. Todos almejando aumentar o número de seguidores.

Mas também é fato que a redação interneteira tem seus tropeços. Às vezes, quer subir a ladeira e despenca. Outras, quer amanhecer, mas entardece. Há muita produção ruim. Talvez a facilidade espantosa de postar ideias e comentários nos leve ao afrouxamento de algumas regras básicas da comunicação.

As cinco perguntinhas O que? Quem? Como? Onde? Por quê? sumiram da maioria dos textos. Alguém nos chama para um evento, mas não diz onde é. Conta o final da história, mas omite o começo. Ou mesmo escreve o começo e fica com preguiça de desenvolver a continuação.

Ou seja, o leitor acaba órfão. Vira alguém convidado a atravessar uma avenida com os olhos vendados. Ora, quem quer isso? O leitor então foge. Vai procurar outro texto que o acolha e, principalmente, que produza sentido. Somos seres loucos por encontrar sentidos.

Não importa se a comunicação é impressa ou digital, a mensagem tem que cumprir seu ciclo de vida, tem que entregar um sentido. Ela sai da cabeça de alguém, materializa-se em frases, chega na cabeça de outro alguém. Operação simples e complexa ao mesmo tempo.

Daí quando você for escrever - de um curto parágrafo a um longo romance - lembre-se que sua matéria-prima é a língua. No nosso caso, o português-brasileiro. O idioma é a plataforma de lançamento dos foguetes levando nossas ideias, opiniões, interpretações do mundo.

Quanto mais íntimos ficarem língua e escriba, melhor será a expressão. Pois, no fundo, escrever é tirar as palavras para dançar. É levá-las para o meio do salão e fazê-las sonhar. Só assim o leitor sentirá ciúmes delas e nos seguirá.


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fernanda pompeu, webcronista do Yahoo e do Nota de Rodapé. *Texto Publicado originalmente no Mente Aberta - Yahoo.

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Foram me chamar


por Júnia Puglia    ilustração Fernando Vianna*

Eu estou aqui – o que é que há? A vida desocupada ia muito bem, obrigada. Para quem passou quase quarenta anos na ralação, viver sem agenda é uma bênção. Os dias em câmera lenta, as viagens despreocupadas, o sagrado direito de fazer nada, e também o de ir e vir, esticaaaados. Vez ou outra, invento um rango vegetariano, pra variar, e também porque tenho achado que devo dar umas folgas pras vacas, porcos, galinhas e companhia. As horas diante do computador, navegando, pensando e escrevendo, com pausas pra apreciar as árvores, a chuva e a bicharada lá fora. Leituras meio desconexas, por puro prazer, cinema no meio da tarde. Os almoços de sexta-feira com a turma do escritório, sempre estressada mas divertida. Muito engraçado e reconfortante ouvi-las falar de coisas que não me atormentam mais.

Nem cogitava voltar. De vez em quando, me dava uma ligeira nostalgia de estar ocupada, mas não muito, e das bobagens que a gente falava o dia todo e morria de rir, disto sim. De planos, planilhas e agendas alucinadas, saudade zero.

Eu vim de lá pequenininha, porque é por poucas semanas e porque, como sempre creem os coroas, não dá pra desperdiçar esse acúmulo de décadas de experiência que levo comigo. Além disto, apesar do apreço pelo ócio do último ano e meio, sinto que ainda posso contribuir, talvez equilibrando a pressão cotidiana com um olhar irônico e sereno de quem já aprendeu, com a mestra Lourdinha, que no fim tudo dá certo. Se não deu certo, é porque não chegou ao fim.

Passaram-se duas semanas, o suficiente pra confirmar que tudo mudou, mas nada mudou. A rotina do escritório continua pontilhada de urgências e emergências, incêndios a ser apagados o tempo todo. As horas passadas no trabalho ainda são insuficientes para tudo o que é preciso fazer, pois rola uma crença de que sempre se deve pedir e esperar mais do que as pessoas podem oferecer. As instituições são inclementes mesmo. Minha fonte mais frequente de desgaste é a maldita conexão de internet sem fio, instável e rebelde. Acho que ela não gosta de mim, ou está só querendo me atazanar, sei lá. Hei de vencer.

Por muito afastada da vida profissional, eu achava que poderia não saber mais como encaminhar os assuntos, como se dão os processos. Talvez acreditando que, por não ter precisado lembrar, teria esquecido. Que nada! Foi só vestir o modelito mais sério e pendurar o crachá, voltou tudo à memória, como uma caixa que se abre.

Alguém me avisou pra pisar nesse chão devagarinho. Nem precisava. Lá eu vivi grande parte dos últimos quase trinta anos. Como disse um ex-colega, que encontrei na porta um dia desses, a gente nunca sai de verdade. E ninguém conhece as dobras da instituição como nós, os veteranos, que repassamos cada uma delas em detalhes, vezes incontáveis. Por isso volto reverente e quero ficar meio invisível, quase um holograma. Juntei-me aos bambas pra me distrair. Segura a onda, preguiça! Fui ali e já volto.

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Os trechos em vermelho foram pincelados da música "Alguém me Avisou" de Dona Ivone Lara, ouça a versão do álbum Sorriso Negro, 1982.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto.

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Água: cidades querem o reconhecimento do Sistema Cantareira

Nas próximas semanas, o NR publica três matérias produzidas para o jornal laboratório do curso de jornalismo da FAAT, faculdade instalada em Atibaia, no interior de São Paulo. Semana passada, os trabalhos receberam o Prêmio Yara de Comunicação, lançado com o intuito de comemorar os 20 anos dos Comitês das Bacias Hidrográficas dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (Comitê PCJ) e que tem o objetivo de incentivar profissionais e estudantes a abordarem as questões relacionadas à qualidade e quantidade dos recursos hídricos das bacias que abastecem milhões de pessoas no Estado de São Paulo. 

As matérias que serão publicadas foram as três primeiras colocadas na categoria Trabalho Universitário. Sem exceção, todas partem de uma perspectiva local para tratar de questões globais, situações que atingem populações expressivas. 

O primeiro trabalho publicado é de Lucas Rangel, aluno do 3º ano de jornalismo, e reporta a falta de contrapartidas a pequenos municípios que produzem água de qualidade e abastecem localidades onde residem milhões de pessoas, caso da Região Metropolitana de São Paulo. 

Na semana que vem, publicaremos a reportagem de Fernanda Domingues, sobre o assoreamento do rio Atibaia que, entre outros problemas, causou fortes enchentes na cidade, com desastrosas consequências para a população, assunto tratado pelo NR em várias matérias. A última matéria a ser publicada é de Maria Ribeiro, que trata da polêmica a respeito da canalização de rios. 


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Água de qualidade não garante contrapartidas a municípios 

Responsável pelo abastecimento de 55% da Região Metropolitana de São Paulo, cidades do Sistema Cantareira se unem para buscar recursos estaduais 

por Lucas Rangel*

Rio Jaguari: o maior e mais limpo do
sistema Cantareira
(
Foto: Gustavo Douglas
A falta de contrapartidas do Governo do Estado de São Paulo e da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) para com as cidades que abrigam as bacias hidrográficas do Sistema Cantareira – responsável pelo abastecimento de 55% da Região Metropolitana de São Paulo – é um desafio a ser superado. De acordo com a Agência Unicidades, que busca, por meio de estratégias sustentáveis, melhorias para os municípios, não há nem sequer uma ação que reconheça a importância do Cantareira. 

Com liberação de 31 mil litros de água por segundo para quase 10 milhões de habitantes das zonas norte, central, parte da zona leste e oeste da capital, além de dez municípios da Região Metropolitana, entre eles Osasco e São Caetano do Sul, as quatro bacias que formam o Sistema Cantareira (Jacareí-Jaquari, Cachoeira, Atibainha e Juqueri) produzem umas das melhores águas do Brasil, segundo estudos da Sabesp. 

Apesar disso, a região segue atrás de contrapartidas para valorização dos municípios. Criada para organizar estratégias e unir as 15 cidades em favor da causa, a Agência Unicidades trabalha em busca de novos projetos sustentáveis. “Estamos buscando o desenvolvimento da região de uma forma limpa, até mesmo para poder manter a qualidade desses mananciais todos. Queremos que o Governo do Estado e a Sabesp nos deem o devido reconhecimento”, afirma Sidney Monteiro Fontes, diretor técnico da Unicidades. 

Segundo ele, são três os eixos de trabalho definidos pela agência em conjunto com as prefeituras: "Queremos fazer com que a região vire um grande pólo de desenvolvimento tecnológico, atraindo indústrias e instituições de ensino; transformá-la em um pólo de produção orgânica e fomentar o turismo”, concluiu. 

O foco da Unicidades é definir as estratégias e apresentá-las ao Governo do Estado e, consequentemente, à Sabesp, antes da definição da nova outorga, que ocorre no ano que vem. O último documento emitido pela Agência Nacional de Águas (ANA) em 2004, com vencimento em 2014, determina que 31 mil litros de água por segundo sejam retirados pela Sabesp e encaminhados à Região Metropolitana, e 5 mil litros por segundo para as bacias dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (Bacias PCJ). “Para a próxima outorga, vamos lutar para que a quantidade de água encaminhada ao PCJ chegue a pelo menos 8 mil litros por segundo”, avalia Sidney. 

Qualidade da água 

Para comprovar que a água produzida pelas bacias hidrográficas do Sistema Cantareira é uma das melhores do Brasil, a Unicidades trabalha com dados da própria Sabesp, que mostram que o custo de tratamento da água produzida na região é 50% menor do que o das represas Billins e Guarapiranga. 

O Departamento de Águas do Comitê PCJ, que trabalha com a Sabesp nesse assunto, diz que a bacia que possui a melhor água é a Jacareí-Jaguari, pois tem menor influência de produtos químicos e de esgoto. “A bacia do Jacareí-Jaguari, além de ser a maior e mais importante, devido às proporções (50 km² de inundação e produz 22 mil litros de água por segundo), é a que apresenta os melhores índices de qualidade”, afirma Regina Aparecida Ribeiro, representante do PCJ. 

Na sequência, aparecem os reservatórios Cachoeira e Atibainha, com qualidade de água considerada boa. A bacia do Juqueri é a que recebe mais resíduos químicos e esgoto, porém o Departamento de Águas e Energia Elétrica do Estado (DAEE) acredita que, nos últimos anos, a qualidade da água aumentou graças a trabalhos específicos. 

A Sabesp foi procurada pela reportagem, mas não se pronunciou sobre os casos da falta de contrapartidas e dos últimos estudos sobre a qualidade da água. 


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Lucas Rangel é estudante de jornalismo

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Sem graça


por Ricardo Sangiovanni*

Sentei já todo gaiato agora há pouco na frente do computador decidido a contar-lhes hoje a história da diarista da casa de minha sogra, que botou o marido no jeito na base do cipó quando o flagrou dando uns amassos numa sirigaita desenxabida detrás da igreja.

Mas acontece que vou ter que lhes pedir desculpas, não vai dar: caí na besteira de dar uma folheada nas internets antes de começar o relato, e li uma notícia que me levou a graça embora.

O título era “Ensino da cultura negra ainda sofre resistência nas escolas”, na BBC Brasil. Falava em geral dos problemas da implementação do ensino da cultura afro-brasileira nas escolas, mesmo tendo-se passado já dez anos da lei que determina a obrigatoriedade do dito cujo.

A matéria está bacana, honesta, normal. Tem, ademais, minha adesão ideológica: hoje mesmo comentava com o pessoal que, se alguém diz “macarronada”, logo pensamos na pequena Itália; falou “bacalhau”, acionamos o minúsculo Portugal; mas, se alguém diz “acarajé”, contentamo-nos com a ideia genérica e imprecisa de “África” – como se África fosse uma coisinha miúda, um vilarejo na beira da estrada, a primeira quebrada à direita depois que passa Feira de Santana.

Enfim: o que me roubou o bom humor foi o comentário de um cidadão que se identificou como “Diego”, “filho de negro com branco”, no pé da reportagem. Transcrevo: “Meu filho tem que aprender matemática, literatura portuguesa. Não é porque o Brasil teve um período escravagista que ele tem de estudar sobre a cultura “afro-brasileira”. Perda de tempo estudar isso, o ideal é substituir essa parte para aprender outro idioma. Pois assim estaria mais preparado para encarar a vida no resto do mundo. De preferência o idioma inglês, mais falado no mundo todo. Empreendedorismo, biologia na prática etc… Estudar cultura afro-brasileira é perda de tempo e não prepara as crianças para a vida, para esse mundo do cão.”

Diego, meu camarada: aí você pegou pesado. Talvez tenha sido só uma fala infeliz essa sua, mas arrisco dizer que gente que pensa assim como você pensou nessa fala reproduz um esquemão colonial secular, que é justamente o que mais precisamos superar (muito embora com toda consciência): de um lado, um mundo globalizado, moderno, competitivo, que requer conhecimentos funcionais que nos “preparem para encarar a vida no resto do mundo”; de outro, um mundo tradicional, ancestral, “africano”, que é até curioso e tal, mas que a rigor não serve para nada, afinal essa história de escravidão já passou faz é tempo, vamos deixar isso para lá, para depois, para nunca, no fundo do baú.

Não sei, Diego, em que parte de “ensino de cultura afro-brasileira” pessoas que pensam como você nessa fala lêem “em detrimento do ensino de tudo o mais necessário para se viver nesse mundo cão”. De contrabando nesse seu argumento, parece haver uma ideia atravessada de que aprender sobre a África significa praticamente arriscar-se a uma espécie de “reescravização”. E mais: que basta ir branqueando, quando não a pele, o jeito de ser, de pensar, de viver, no passar das gerações, para superar a tragédia que foi esse “um período escravagista” que durou mais de 300 anos nesse Brasil.

Qual nada, Diego: precisamos saber mais – quando digo mais, é ao nível corrente da conversa mundana, no nosso dia-a-dia de arraia miúda – sobre a África sim, porque precisamos entender um tiquinho melhor e respeitar mais trejeitos, costumes, heranças africanas que estão no nosso dia-a-dia, mas que ignoramos ou tomamos por simples e “genuinamente brasileiros”.

Precisamos saber da África, Diego, porque em cada pedaço dela existem povos e culturas diferentes, tantas quantas – ou provavelmente mais que – as que existem nos retalhinhos da miuditica Europa. Será que ignorá-los nos ajuda a aprender melhor o inglês?

Precisamos saber da África, meu bom Diego, porque o cabelo encaracolado do garoto entrevistado nessa matéria que você leu tem origem, tanta e igualmente humana origem quanto os cabelinhos escorridos meio alourados dos coleguinhas que provavelmente lhe puseram o apelido de “Bombril”. Não, Diego, não vamos pedir ao garoto que simplesmente não dê ouvidos aos coleguinhas bobos – porque ante a discriminação não dá para se fazer de surdo, porque dói; discriminação é uma desgraça, Diego – você sabe.

Em vez disso, que mal há em pretender que se ensine (falo ensinar à vera, não só por “3 meses, por 30 minutos a cada 4 dias apenas”, como você propõe) a toda essa molecada de tudo quanto é cor que na África existem povos que são tão povos quanto qualquer povo de pele clara desse mundo, e que muito do que somos descende diretamente de alguns deles, os quais portanto merecem tanto respeito e reverência quanto qualquer outro?

Enfim, Diego, precisamos saber da África por muitos outros mais motivos. Para encurtar conversa: você me deixou de mal humor, cara. E privou meus leitores das risadas que dariam com a história ótima do cipó do amor. Estamos todos putos contigo, Diego. Abre o olho.

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Ricardo Sangiovanni, jornalista, coordena o blog O Purgatório e mantém no NR a coluna Mistério do Planeta. Escreve de Salvador.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Dois pesos, duas medidas


por Celso Vicenzi*

Não me queixo dos interlocutores nas redes sociais. Tenho compartilhado artigos e análises pessoais e, principalmente, de autores que julgo importantes, para uma boa reflexão sobre o país, seu passado, seu presente e seu futuro. Igualmente em relação ao planeta. De um modo geral, meus interlocutores – homens e mulheres – são educados e vários deles discordam de meus pontos de vista, como, por exemplo, no caso do chamado “mensalão”. No entanto, há uma parcela de pessoas que mostra-se particularmente incomodada, às vezes até irritada em estender o debate. São pessoas que gostam de pôr um ponto final à História. Como se fosse possível e, mais que isso, desejável.

O vigor de uma democracia se faz justamente pelo intenso debate e compreensão dos fatos, o que deveria ir muito além dos clichês e respostas prontas, fruto de muitos anos de uma educação pouco questionadora e uma mídia que reforça certezas habilmente construídas. A obrigação de respeitar decisões legítimas no âmbito de todos os poderes não significa silenciar sobre os motivos dessas decisões. Pode ser legítima a promulgação de uma lei, mas seus benefícios ou prejuízos são passíveis de análise e comentário. Ou até de repúdio, quando injustos.

Somos doutrinados para obedecer, mais do que questionar. Somos ensinados a executar tarefas e a não perguntar. Somos instruídos para ocupar cargos na estrutura social e fazer o mínimo de indagações. Mais ou menos assim: "Pegue o seu salário, divirta-se e não queira contestar o que está errado." Não olhe para trás, nem para o lado. As injustiças sociais, que se multiplicam, devem ter outras razões que não aquelas que fizeram de você, de nós, privilegiados.

Num país que, apesar de estar entre as dez maiores economias do mundo, possui uma das sociedades mais desiguais, como não discutir as decisões de suas mais altas cortes, sejam elas do Judiciário, do Executivo ou do Parlamento? Nenhuma injustiça social é obra do acaso. Depende de decisões que envolvem pessoas que ocupam postos em vários escalões das organizações empresariais, políticas, religiosas, jurídicas, sindicais, educacionais – o leque é amplo e de peso variado no grau de influência que exerce nos destinos de uma nação.

O Brasil das capitanias hereditárias ainda tem marcas muito presentes nas esferas de poder do país. Leonardo Boff, em recente artigo, identifica intenções veladas e nunca declaradas no tão espetacular julgamento do “mensalão”. Os erros do PT não são pequenos, mas todo esse furor midiático não tem como alvo apenas os defeitos do partido, mas justamente os avanços que, apesar das alianças conservadoras, o governo conseguiu levar adiante, beneficiando milhões de brasileiros. Boff menciona uma elite conservadora, “sempre mais interessada em defender privilégios do que em garantir direitos para todos”.

Aconteceram casos semelhantes ao “mensalão” antes e durante o processo que ocupou a mídia como “nunca antes na história desse país” – para usar de uma ironia. Elegê-lo como “o maior caso de corrupção da história do país" é desconhecer a história, o país e brincar com a inteligência do povo, ou usar de má-fé, o que a mídia tem feito, aliás, sem nenhum pudor. Para não multiplicar exemplos, há o caso noticiado por um jornal de circulação nacional que cita parlamentares que teriam recebido dinheiro para aprovar a emenda da reeleição de Fernando Henrique Cardoso. E, em pleno julgamento do “mensalão”, estoura o escândalo dos trens em São Paulo, que envolve a gestão de prefeitos e governadores do PSDB.

Mencionar esses e muitos outros casos é tentar desviar o foco do “mensalão”? Não! É simplesmente analisar e tentar compreender o que faz com que a mídia e o STF, particularmente neste caso, operem de maneira tão diversa do que costumam reservar para outros casos semelhantes ou ainda piores. O que se discute não é apenas uma sentença e, sim, o funcionamento das instituições e o modelo de país: conservador, elitizado, racista, preconceituoso, desigual, injusto e excludente. Entre outras razões, exatamente porque suas principais instâncias de poder também funcionam assim. Onde quase tudo costuma ter dois pesos e duas medidas, como muito bem sabem os mais pobres.

A versão oficial da história é sempre a dos vencedores, sim. Mas impérios, algum dia, também caem. Não há como pôr um ponto final à História. Ela será permanentemente reescrita.


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Celso Vicenzi, jornalista, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina, com atuação em rádio, TV, jornal, revista e assessoria de imprensa. Prêmio Esso de Ciência e Tecnologia. Autor de “Gol é Orgasmo”, com ilustrações de Paulo Caruso, editora Unisul. Escreve humor no tuíter @celso_vicenzi. “Tantos anos como autodidata me transformaram nisso que hoje sou: um autoignorante!”. Mantém no NR a coluna Letras e Caracteres.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Descosido


por Júnia Puglia*

Tem uma caixa de retalhos aqui dentro, todos querendo entrar nesta breve crônica. Vou tentar.

Há poucos dias, uma notícia me deu calafrios. Em algumas cidades suíças, os governos locais estão implementando normas de convivência que vetam o acesso de estrangeiros candidatos à condição de asilados (quase todos oriundos de países pobres) a certos lugares, como escolas e clubes. Tais normas são referendadas pela população, como determina a lei. O nome disto é “apartheid”, que significa “separação” em africâner, língua falada pelos brancos na África do Sul, país onde o regime segregacionista foi banido em 1994.

Muitos são os que acreditam na legitimidade da separação, e a desejam. Conviver com a diferença chega a ser uma ofensa para aqueles que se sentem mais gente que os outros. Não me esqueço de um pastor evangélico brasileiro branco, que conheci no final dos anos setenta, e que voltava de trabalhar por dois anos na África do Sul como missionário. Justificava o apartheid com toda convicção, pois “aqueles negros não sabem nem usar a privada; pra eles, um coqueiro serve muito bem”. Eu estava dando os primeiros passos no mundo adulto. Foi um choque e tanto.

O tempo passou, e a vida me deu um marido carioca, filho de pai baiano, por sua vez filho da querida Vó Izabel, baiana negra e miúda, que conheci já passada dos noventa anos. Filha de escravos, nasceu livre no papel, mas não conheceu outra vida senão a do trabalho e da dureza, como empregada doméstica e lavadeira desde sempre.

Nosso filho andava pelos nove anos. Um menino que gostava de conversar e de pensar, e que bem cedo revelava o historiador que viria a ser. Numa aula de História do Brasil, o tema da escravidão levou-o a uma conexão perturbadora, que culminou na pergunta: mãe, você acha que a família da Vó Izabel pode ter sido escrava nas terras dos nossos antepassados paulistas? Respondi que não, porque viveram muito distantes geograficamente. Ele ficou aliviado, mas pouco.

Lembrei-me disto quando vi uma série de fotos de escravos brasileiros rodando na internet, um raro registro visual daquela gente que não era considerada bem gente. São algumas dezenas de imagens, mas não consegui passar da décima, tamanho o incômodo que senti com as expressões, principalmente das mulheres, por mais belas que fossem, por mais enfeitadas que estivessem.

Com essas coisas rodando na cabeça, meu alento foi um artigo de jornal sobre os pescadores da italiana Lampedusa. Todos os dias, eles arrancam das garras do Mediterrâneo náufragos malis, líbios e eritreus, que se jogam ao mar em barcos caquéticos, tentando desesperadamente escapar da fome e da miséria e encontrar um futuro decente na tal de Europa. Aquela mesma onde o fermento da xenofobia e do ódio racial tem inflado na mesma medida do encurtamento do dinheiro e dos postos de trabalho. Não importa, dizem os pescadores, não podemos deixá-los morrer.

Mal costurado? É que os retalhos não se deixaram manusear o suficiente.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Philippe Loubat

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Querida Bety


por Carlos Conte      ilustração Marcelo Martins Ferreira*

Querida Bety, conheci você há alguns anos, dentro de um sebo no bairro de Pinheiros. Seu nome está na folha de rosto do livro que eu comprei, “6 propostas para o próximo milênio”, do Italo Calvino: “Bety, espero que me perdoe. Feliz 92. Te amo demais! Alfredo. 31/12/91”, diz a dedicatória. Livro especial, sem dúvida. O Alfredo, além do bom gosto, tinha ótimas intenções ao lhe ofertar esses valores literários que o Calvino transmitiu para as gerações do novo milênio. O que o Alfredo te fez, Bety? Alguma mancada grave? Para o livro ter ido parar na estante do sebo, acredito que sim. Com certeza quis apagá-lo da lembrança. Você não o perdoou.

Confirma minha hipótese o fato do livro estar praticamente novo. Mais de 20 anos depois, Bety, e nenhuma folha amassada, nenhuma orelhinha sequer... Você não leu esse livro, tenho certeza. Tivesse lido, teria deixado algum sinal. E olha que eu sou atento! Consigo divisar um vestígio em livro como poucos. Aliás, confesso, tenho mania por livros usados. Dizem que cada qual tem a sua. Ou até mais de uma. No meu caso, livros usados. E por isso não ligo para rasuras, como a maioria. Para mim, é interessante saber como um desconhecido leu as mesmas palavras que eu estou lendo. Comentários marginais, exclamações, interrogações – ah, como pode esse cara não entender esse parágrafo!... Me divirto.

Só me deixam angustiados os trechos grifados, alguns marcados com asteriscos, que eu leio, releio, e não entendo. Como pode alguém ter encontrado tanto sentido nessa parte tão difícil?... Nessas horas, Bety, tendo a me considerar um mau leitor. Desatento. Limitado. Meio burrinho, se é que você me entende.

Tudo bem. Quem sabe um dia, pegando de novo o bicho, eu entendo. Vou passar pelas mesmas linhas, pelas mesmas frases, e me deparar com as interrogações aflitas que eu mesmo rabisquei anos atrás. Dois Carlos, enfim, se encontrando, separados por um intervalo de cinco, dez anos. E aí, Bety, nesse encontro inusitado, vou olhar com indulgência para as minhas garatujas preocupadas de outros tempos, minhas antigas marcas da adolescência.

Já ganhei trevos de quatro folhas, recortes de jornal, fotos pessoais. Objetos esquecidos no meio de livros. Livros que foram parar em sebos, não se sabe por quais circunstâncias da vida: desinteresse pela leitura, falta de grana (caso de quem vende parte de sua biblioteca para levantar algum), falta de espaço, mudança de endereço, falecimento.

No seu caso, Bety, deduzo que tenha se livrado do livro por falta de amor. Mas também pode ter sido por excesso. Sim, excesso de amor é uma hipótese plausível. Isso já aconteceu comigo mais de uma vez. Para me livrar completamente de uma pessoa que eu amo demais, mas que preciso esquecer de qualquer maneira, já que esquecê-la é a única maneira de tornar a existência suportável, preciso jogar fora todos os seus vestígios materiais: chinelos, presilhas de cabelo, cartas, calcinhas, presentes... Livros, dentre os presentes, têm importância especial. Afora as pessoas que escolhem livros como quem escolhe meias numa gôndola de supermercado, presentear com um livro geralmente requer sensibilidade, sofisticação. Não é um presente qualquer. Acertar na escolha de um livro significa que se está em sintonia com a pessoa presenteada. Quase telepatia. E há livros que, de tão especiais, acabam se tornando marcos de um relacionamento: positiva ou negativamente. Exemplifico. Num momento de fogo, de grande libertação, inclusive sexual, quando viajávamos e nos descobríamos, comprei para uma ex-namorada On the Road, do Jack Kerouac (que ela não leu). No final do namoro, simbolizando a lápide fria da inércia típica do final de um relacionamento, ela me deu de presente de aniversário um dicionário (extremamente útil, um Houaiss tamanho grande, completo, atualizado com a nova grafia), mas um dicionário.

Sabe, Bety, no seu lugar não teria me livrado do livro, como você fez. Apagar o Alfredo da memória talvez fosse mesmo inadiável, mas não em troca de um ótimo livro, como esse do Calvino. Poderia, em vez disso, ter rabiscado a dedicatória, ou arrancado a folha de rosto. Por causa do Alfredo? Não deve valer grande coisa... Ao menos deveria ter ficado com a literatura. Mas aí eu nem te conheceria. De qualquer maneira, espero que tenha passado um feliz 92, querida Bety.

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Carlos Conte, sociólogo e cronista, mantém a coluna mensal Casa de Loucos, uma homenagem aos mestres João Antônio e Lima Barreto. Ilustração de Marcelo Martins Ferreira, design e músico, especial para o texto

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Revista Cesárea vem para "subverter o óbvio"


Nascida como “banda de garagem”, revista literária que acaba de surgir propõe resistência e renovação do jornalismo cultural

por Ricardo Viel*

No final de agosto recebi um e-mail de Schneider Carpeggiani (acima, à direita) que dizia assim: “Ricardo, eu estou num projeto de fazer uma revista de literatura pra tablet, a ideia é ver se lanço o primeiro volume dela em novembro como piloto, para ver o mercado. Queria ver se a gente podia conversar sobre esse projeto. Toparia?”. Eu respondi que, se tivesse dinheiro, pagaria para entrar. Três meses depois, a revista está em trabalho de parto. Na próxima quarta-feira, dia 27, a Cesárea – assim se chama – estará à venda nas lojas on-line (nesse primeiro número eu assino um perfil de Daniel Mordzinski, “o fotógrafo dos escritores”).

Schneider e eu não nos conhecemos pessoalmente, mas há mais de um ano trocamos e-mails com frequência. Ele é editor de uma publicação para a qual colaboro, o Suplemento Pernambuco. Do primeiro correio que lhe mandei, em que o chamava de “estimado senhor Schneider Carpeggiani”, até hoje muita água passou debaixo da ponte. Descobri que o editor com nome de personagem histórico tem mais ou menos a minha idade, corte de cabelo moderno – como esses que a juventude de hoje usa, diria minha avó –, que é dj nas horas vagas, e que é um cara simples e cheio de ideias. Nesses meses trocamos impressões sobre jornalismo, literatura e sobre a vida (sobre fracassos, amores e sonhos), e agora estamos ansiosos com a tal Cesárea.

Desde o começo do projeto fiquei curioso para saber como tinha surgido a ideia, quem mais participaria, como seria etc. Até que achei que valia fazer uma entrevista com o Schneider para que mais gente pudesse conhecer a história.

Nota de Rodapé  –  O que é a Cesárea? O leitor pode esperar o que dessa nova revista?
Schneider Carpegianni – Cesárea é uma revista de literatura, a princípio, para iPad, que será vendida trimestralmente na loja da Apple por US$1, 99. Eu não gosto de pensar que a revista vai seguir essa ou aquela linha editorial, apenas parto do princípio de que a base é literatura, ou seja: uma narrativa, real ou não, que subverte o óbvio. Acho que é isso o que me move como editor de texto e a edição de arte de Jaine Cintra (acima, à esquerda), minha sócia. Provavelmente, o segundo número da revista não terá nada a ver com o primeiro, porque pensamos que a edição precisa ser sempre uma espécie de mostra artística, um work in progress. Além da questão dessa raiz literária a revista é pensada a partir da perspectiva de trazer várias vozes e colocar essas vozes diversas de forma horizontal, sem hierarquia para o leitor: nessa edição, por exemplo, temos nomes consagrados como Silviano Santiago, José Castello e outros, ao lado de autores praticamente inéditos. Misturar essas vozes é meio que a nossa pretensão. Acho que é isso o que o leitor poderá esperar a cada três meses: novas visões de um work in progress e um coro heterogêneo falando para ele.

Cesárea é uma revista de literatura, a princípio, para iPad, que será vendida trimestralmente na loja da Apple por US$1, 99. Eu não gosto de pensar que a revista vai seguir essa ou aquela linha editorial, apenas parto do princípio de que a base é literatura, ou seja: uma narrativa, real ou não, que subverte o óbvio. 

NR –  Por que o nome Cesárea?
Cesárea Tinajero é uma personagem do livro “Detetives Selvagens” do Roberto Bolaño, um autor que sou especialista por conta do doutorado que fiz sobre ele. Cesárea desapareceu do mapa e acabou despertando a curiosidade desses detetives selvagens, que acreditam que ao encontrarem Cesárea, encontrarão a salvação na poesia. Bolaño é mestre em criar essas tramas em que somos atraídos por miragens, que seguimos coisas que não se mexem. Acho que em tempos de crise como vivemos, em que todo mundo procura uma solução, uma saída, a metáfora da Cesárea seria perfeita; além disso é um nome próprio, e o Brasil tem tradição de nomes próprios para batizar suas publicações; e esse título também tem razões bem pessoais para mim, na verdade um problema que decidi colocar uma luz neon em cima ao usar o nome Cesárea. Mas a criação é um pouco por aí, sempre.

NR – Como surgiu a ideia da revista? Por que faze-la para plataforma virtual?
A Cesárea surgiu por vários fatores: Jaine Cintra, minha sócia, havia chegado de um ano de curso para publicações para ipad num Portugal corroído pela crise, em que as pessoas estavam desesperadas e pessoas desesperadas do it better, criam soluções; eu estava frustrado após um projeto frustrado com uma revista impressa, que era legal, a ArtFliporto, mas que justamente por ser impressa acabava tropeçando nos problemas das outras, distribuição, falta de controle da editora, essas coisas. Aí juntamos o olhar dela do desespero criativo e a minha criatividade diante da frustração, isso fez surgir a Cesárea. O iPad é a plataforma meio que como o estúdio caseiro, que possibilitou tanta gente a fazer música sem grandes gravadoras. iPad, o tablet, a tecnologia de forma geral é o verdadeiro punk rock: traz independência, ajuda você a fazer as coisas por você mesmo.

A Cesárea é uma forma de resistência, eu não sei ainda se estou resistindo certo, mas estou resistindo. Acho que mais do que um momento de se trazer a verdade absoluta, esse é o momento das pessoas trazerem novas propostas.

NR –  A Bravo! e Sabático morreram. Outros jornais cortaram páginas dos cadernos de Cultura. Criar uma revista literária/cultural numa época dessa é uma forma de resistência?
Eu pelo menos sou de uma geração que é dita migrante, a geração que nasceu no analógico e que vai morrer no digital. Eu não gosto de segurar uma bandeira dizendo: isso é o futuro, tudo acabou e tal. Mas o jornal como é feito hoje em dia é um cadáver em praça pública. Não apenas por conta das notícias que já sabemos na véspera (quando havia só tv nós já sabíamos tudo na véspera), mas por conta de uma certa forma como ele é pensado que datou, esta anacrônico, sobretudo ideologicamente: o jornal ainda quer que a gente acredite que é ele é imparcial. Não existe isenção ou imparcialidade, por favor... A crise no jornalismo é extremamente bem-vinda. Mas estamos no meio dela e não sabemos direito o que fazer com ela, como sair dela, mas é preciso tentar alguma coisa. A Cesárea é uma forma de resistência, eu não sei ainda se estou resistindo certo, mas estou resistindo. Acho que mais do que um momento de se trazer a verdade absoluta, esse é o momento das pessoas trazerem novas propostas. Talvez o futuro seja mais de novas propostas do que de grandes verdades. Se for assim, vou achar ótimo.

NR – Quais as maiores dificuldades que encontrou em colocar em marcha o projeto? Como a revista pretende se financiar? Que significa isso de que funcionará como cooperativa?
Já não é novidade que talvez o futuro do jornalismo seja a cooperativa: um grupo se une e divide os lucros pela venda, como uma grande sociedade; e talvez o futuro seja esse especialização, publicações cada vez mais segmentadas. É arriscado fazer futurologia, mas sem palpite ninguém sai de casa. Todo mundo que participar da Cesárea receberá igualmente uma porcentagem pelas vendas. A diferença vai ser nessa primeira edição, que os primeiros mil downloads serão para pagar o startup do projeto. Como é uma cooperativa, estão todos envolvidos. Eu e minha sócia, Jaine Cintra, tivemos muita sorte porque reunimos alguns dos melhores profissionais do mercado para fazer a revista. Acho que a parte mais difícil vai ser agora, dar continuidade ao projeto, fazer com que ele não morra, ajudar esse projeto a inspirar outras iniciativas semelhantes.

Não é possível hoje em dia ser jornalista sem pensar em design;  ou ser design sem pensar na importância do conteúdo. Uma coisa está atrelada a outra. Acho que isso faz parte da mudança.

NR –  Quem é o Schneider? Quem mais comanda esse barco? 
Digamos que existem Os Cesáreos, algo como uma dupla sertaneja, eu e Jaine Cintra que é diretora de arte e design. Tudo é feito em conjunto, como se fosse um coral, a gente pensa muito parecido em termos visuais e de texto, então é fácil. Não é possível hoje em dia ser jornalista sem pensar em design;  ou ser design sem pensar na importância do conteúdo. Uma coisa está atrelada a outra. Acho que isso faz parte da mudança.

NR –  A Cesárea tem alguma publicação como modelo/inspiração?
Na verdade, é como colocar uma bandeira na lua com essa revista. Em geral as revistas para iPad que tenho observado elas são muito mais de imagem do que texto, o texto é algo meio que decorativo, na verdade as revistas no Brasil de forma geral caíram na falácia de que o leitor quer menos palavras, que quer facilitação, eu não acredito nisso. Com exceção acho que da Piauí as revistas brasileiras têm textos minúsculos, e como nem todo mundo sabe a força de ser sintético, o material acaba ficando superficial. A ideia é justamente fazer uma revista com muito texto, muita palavra, nosso material é literatura, então precisávamos ver como a palavra em si vai se adequar ao universo do tablet.

Tenho muita sorte porque Jaíne Cintra, minha sócia, é genial em transformar o óbvio e o simples em coisas surpreendentes e perturbadoras – na verdade isso é um pouco o que a própria literatura faz, não? 

NR –  O fato de ser virtual significa algumas limitações em relação a uma publicação impressa, mas ao mesmo tempo uma enormidade de vantagens, a começar pelo custo, não é? Tentarão explorar alternativas multimídias?
Eu gosto de dizer que a Cesárea é um projeto punk-rock por excelência. O punk dos anos 70 colocou um pouco isso: você não precisa ser um exímio cantor ou um grande músico para fazer música, você precisava simplesmente fazer. A tecnologia atual, que tanto está afundando as grandes corporações, é punk: qualquer um pode fazer sua revista, seu livro e tal. A revolução digital é muito mais aguda que aquela dos anos 1960, que a gente olha de forma tão romântica, sobretudo porque não vivemos aquele momento. Eu sentia a falta da literatura, do texto da literatura, de entrar nesse universo, é como se a literatura estivesse meio vivendo à margem dessa mudança, o que é uma bobagem, afinal o século 21 é o século da palavra, como o século 20 foi o da imagem. É a palavra que norteia tudo o que fazemos. A Cesárea ainda é, em termos de multimídia, simples. Precisamos de mais recursos. Mas é um work in progress. Nesse primeiro número, por exemplo, há um leitura arrepiante de Luis Henrique Pellanda de uma crônica dele; no segundo número, haverá mais recursos multimídia. Tenho muita sorte porque Jaíne Cintra é genial em transformar o óbvio e o simples em coisas surpreendentes e perturbadoras – na verdade isso é um pouco o que a própria literatura faz, não? Nós temos também uma página no Facebook para divulgar a revista e também notícias de literatura que tenham a ver com o tom da Cesárea e também uma página no mixcloud onde iremos disponibilizar mixtapes para os leitores. O bom de trabalhar nesse tipo de plataforma é justamente oferecer essas outras coisas, que não são necessariamente enfeites da literatura; o problema é que temos ainda uma visão muito restrita do que implica a palavra literatura.

NR –  Só quem tem iPad poderá ler a revista? Como se compra?
A princípio sim, porque até então é a plataforma das empresas que trabalham com revistas desse tipo no Brasil. Mas a partir do ano que vem a revista deve passar para outras plataformas. O leitor poderá comprar a Cesárea na loja da Apple por US$ 1, 99, o valor médio de um app.

 

Bob Dylan e a consciência negra

Hoje, dia 20 de novembro, se comemora o Dia da Consciência Negra no Brasil. Uma data importantíssima, comemorada em 1047 cidades brasileiras. A data tornou-se um marco de combate ao racismo e promoção de políticas públicas de inclusão negra e remete à morte, em 1965, do líder quilombola Zumbi dos Palmares, que lutou pela libertação dos negros escravizados.

Para lembrar a data nacional, Nota de Rodapé recorre ao fantástico Bob Dylan e a música Hurricane (O furação), que inspirou o filme de mesmo nome.

A história é a seguinte: nos EUA em 1966, Rubin "Hurricane" Carter era uma grande promessa do boxe mundial. Estava prestes a disputar o cinturão dos pesos pesados. No auge, Hurricane foi injustamente condenado a prisão perpétua após o assassinato de três pessoas num bar na cidade de Nova Jersey.

Naquela noite, voltando para sua casa de carro, o lutador foi erroneamente preso como um dos assassinos. A música de Bob Dylan conta essa história e é, sem dúvida, das mais incríveis formas de protesto. É universal.

Anos mais tarde, Carter publicou um memorial (The 16th round) em que conta esse episódio de sua vida. O livro inspirou um adolescente do Brooklyn e três ativistas canadenses a juntarem forças com apoio do próprio Carter em busca da inocência do lutador. Carter, oras, era negro. Negro no racista EUA daquele período.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Pra boi dormir ou dá muita preguiça


por Júnia Puglia*

Propaganda eleitoral. Quase todos os livros de auto-ajuda. Gênero musical new age, com destaque especial para Enya. Bloqueio de sinal de celular em cadeias e penitenciárias. A polêmica das biografias. A farsa das UPPs – eu acreditei.

Pintura naïf, flores artificiais, cerveja sem álcool, feijoada light, refrigerante zero, espírito natalino, meta de inflação. Chamar a velhice de “melhor idade”. Grande parte da linguagem politicamente correta. Postagens edificantes nas redes sociais. Postagens malcriadas nas redes sociais. A glorificação da maternidade e dos laços familiares. Caridade. Revistas de celebridades. Gente que chora com as reportagens sobre cachorrinhos maltratados e continua comendo carne.

Reuniões de trabalho intermináveis. Marombeiros convictos. Tudólogos convictos. Microfone aberto ao público em seminários e palestras. Discutir a relação, qualquer uma. Festa de aniversários do mês. Amigo oculto de fim de ano. Dia das mães, dia dos pais, dia da família, dia das crianças, dia dos namorados. Bêbado enturmado. O persistente item “estado civil” em questionários banais – pra quê?

Restaurante com cardápio em francês ou que serve porções mínimas, ou as duas coisas. Restaurante com fila na porta, nem morta! Fotos das viagens alheias. Fazer sala, entreter socialmente. Ser inteligente às sete da manhã.

Reforma política, reforma previdenciária, reforma fiscal. Copa do Mundo no Brasil. Declarações do Pelé, corrida de carro, voto obrigatório. Comentários tipo “classe média sofre”. Grandes corporações tentando me convencer do seu compromisso com o meu bem-estar. Sulistas, incluindo paulistas, que acham que carregam o Brasil nas costas. Governante decretando a felicidade suprema.

Vou aos poucos, ainda tem muito mais.

* * * * * * 

Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

TV contemporânea: mocinhos E bandidos?


por Maria Shirts     ilustração de estreia Camila Rocun*

Na semana passada comecei a assistir Breaking Bad. Segundo todos os amigos, a internet, os professores da faculdade e quiçá a Dilma, a melhor coisa desde o pão fatiado.

O seriado é, de fato, bem cativante. Apesar de já ter acabado nos Estados Unidos em setembro, ainda passa no Brasil no canal AXN todas as sextas às 22h. Quem tiver a assinatura pode assistir via Netflix também.

Pra quem não sabe, se é que alguém não sabe, a série trata da vida de um professor de química pra lá de mal pago que descobre estar com câncer terminal. Para ganhar um extra que possa deixar para a família (um filho com deficiência e uma esposa grávida), resolve fabricar cristais de metanfetamina.

Como um bom químico, o nosso protagonista Walter (Bryan Cranston) consegue produzir o melhor cristal da praça, que se diferencia dos outros pela cor azul. E assim segue o enredo vivendo sua dupla personalidade de pai exemplar da classe média americana e produtor de drogas pesadas. Por vezes não sabemos qual delas é pior.

Independente da trama, que é bem pensada e roteirizada, o que tenho achado mais interessante em Breaking Bad é a complexidade da personagem de Walter. Quer dizer, como “engolir” um professor de química classe média que opta pela vida clandestina e ilícita do tráfico? É no mínimo arrojado.

Mas por nenhum momento se questiona a verossimilhança dessa personagem. Ao contrário, torcemos cegamente por ele, sem colocar em xeque nossos valores morais e bons costumes. É como se a opção de ganhar um troco com o mundo da metanfetamina não fosse tão horrível assim, “ok, poxa, sempre vejo isso por aí.”

É verdade que a atuação de Bryan Cranston ajuda a convencer-nos da trama, tendo ganhado elogios até de Antony Hopkins (leia a carta de Hopkins a Cranston).

De qualquer forma, já tem um tempo que comecei a reparar nessas personagens ambíguas dos programas contemporâneos. Não sei se é uma particularidade das novas tramas. Mas me parece ser um recurso cada vez mais popular.

É o caso, por exemplo, do vilão da novela Amor à Vida, ainda em exibição no horário nobre da Rede Globo. O Félix (Mateus Solano) carrega o mal em praticamente todas as suas ações. Deixou a sobrinha numa caçamba quando ainda recém-nascida, internou a irmã num hospício barra pesada, chantageou pessoas para chegar à presidência da empresa da família… entre outras peripécias dignas de um vilão da Rede Globo.

Mas em vários momentos o espectador sente uma compaixão pela personagem. Ri de suas piadas, sente muito quando ele é reprimido pelo pai por ser homossexual… Ainda essa semana, por exemplo, meus olhos lacrimejaram quando ele declarou amor pelo filho o qual descobriu não ser o pai.

Essas ambiguidades de Félix e Walter permitem, ao público, se identificar melhor com esse tipo de personagem. Claro que as caracterizações são mais exageradas que na vida real. Quer dizer, ainda não conheci nenhum professor meu que traficasse drogas (mas, quem sabe?). No entanto, só o fato deles serem mais complexos que simples mocinhos ou bandidos faz com que o espectador não se sinta (tão) subestimado pelos teledramas.

* * * * * * * *

*Maria Shirts, internacionalista e pedestrianista, estreia no NR a coluna mensal Transeunte Urbana. Ilustração de Camila Rocun, graduanda em Design Digital, ilustradora e apaixonada por cinema, divide seu tempo entre fazer arte pelo Portal R7 e ser mãe do Léo. Estreia hoje no NR.

terça-feira, 12 de novembro de 2013

A esfinge, a mídia, e o rio


texto e ilustração por Ana Beatriz Rosa*

É difícil falar das violências simbólicas, dessas assim... estapafúrdias. Parece mesmo difícil falar das violências corriqueiras, normatizadas e naturalizadas no nosso convívio social. Falar sobre a violência do nosso cotidiano já parece tarefa árdua demais para um certo puritanismo-pacífico-opressor das grandes mídias – inibem as línguas e os corpos para fazer valer seu próprio conceito-notícia quando o assunto é a violência. Neste processo, uma ardilosa política dos “cidadãos de bem” parece ganhar corpo desde que as manifestações de junho iniciaram o seu work in progress. Entoar hinos de louvor em defesa de patrimônios e capitais e esquecer de pessoas – essas, de carne e osso – parece ter ganhado ares de normalidade.

De um lado parte da cobertura midiática parece entoar louvores aos bons modos durante as manifestações, de outro, para complementar, ecoam gritos condenando os possíveis “vândalos” que habitam entre nós. Sempre que penso sobre isso me vem um trecho do poema “Nossa truculência”, da Clarice Lispector que diz:
“(...)é preciso não esquecer/ E respeitar a violência que temos. (…) A nossa vida é truculenta: nasce-se com sangue/ e com sangue corta-se a união que é o cordão umbilical/ E quantos morrem com sangue/ É preciso acreditar no sangue como parte de nossa vida/ A truculência é amor também”. 
Parece mais fácil apontar vândalos entre nós que observar o vandalismo em nós, na maneira como nos relacionamos uns com os outros.

Querendo brincar de separar o joio do trigo, as linhas editoriais das empresas que monopolizam a comunicação no Brasil (seis famílias controlam 70% da imprensa no país) parecem não se preocupar que algumas raízes possam estar entrelaçadas a ponto de dificultarem os cortes.

Não seria mais útil criar manuais? Vejamos... "Cartilha para o bom manifestante", ou quem sabe, "manifeste-se bem, para manifestar sempre". Talvez com as cartilhas os manifestantes possam melhor entender como servir bem para servir sempre. Um conjunto inteiro de cartilhas de etiqueta para protestos! Parece boa a ideia, não? E pode vender! Como manda o figurino.

Estou chegando à conclusão de que é mesmo difícil falar da violência. Parece ser difícil reconhecer violência em atos não “materiais”, estes que não estão ao alcance das mãos mas ainda assim perpassam os corpos. Como, em uma sociedade onde tudo se toca e dá valor (feito moeda de troca), perceber e condenar violências que não atacam bens, produtos e coisas, mas pessoas? Como fazer com que pautas como essas tornem-se fundamentais, para além das obviedades? Afinal, o que é mais violento? Quebrar paredes ou quebrar gente? A comparação parece esdrúxula? Também imaginei que sim, não fosse muita vidraça valer mais do que muita gente por aí.

Vai ser difícil ouvir em noticiários que o senhor que mora na minha calçada é violentado todos os dias. Que no corpo a corpo da pirâmide social todos nós nos violentamos enquanto sustentamos a paz e a boa vida dos 'inocentes do Leblon' como já poetizou Drummond. Que a moça que é estuprada é vítima, e sempre vítima de uma violência física e simbólica mergulhada no machismo nosso de cada dia. Que o Amarildo foi violentado, brutalmente violentado, e que tantos outros como ele também são. Que o diferente e estranho aos padrões de conduta da nossa moral 'partilhada' é violentado na sociedade dos iguais. Que o que escapa à heteronormatividade, ao patriarcado, que não é branco nem puritano, vai ser violentado mais dia menos dia. Que aquela criança que não precisa de gênero para se entender vai ser violentada pela limitação dos que mal se entendem...

Como é difícil ouvir alguém falar da violência urbana cotidiana, da violência do capital, da violência econômica, das segregações sociais, do preconceito, da violência do medo nas cidades.

O discurso de grande parte da nossa imprensa é violento quando desrespeita a comunicação como lugar de conhecimento e transformação do mundo, quando desrespeita grande parte população que raramente se sente representada. Tenho a impressão de que estes discursos produzidos também compõem a própria locomotiva da violência social, da violência do capital, da violência nas ruas, afinal.

Falar sobre a violência não é fazer apologia a ela. Ignorar que a violência existe todos os dias é. Fazer um recorte das manifestações priorizando os tais atos de “vandalismo” também. Talvez seja mais importante reconhecer primeiro a violência do Estado, do descaso dos poderes públicos, da ganância de muitos, da indiferença de tanta gente sobre as milhares de vidas condenadas à (sobre)viver todos os dias. É importante falar dos que morrem de fome e dos que sobrevivem com salários de fome também, porque viver está caro.

É importante, por fim, saber respeitar o rio quando as margens o oprimem demais, trata-se de respeitar uma sociedade que, como pode, está dizendo que como está não dá mais para continuar. Bertold Brecht tem uma frase muito bonita que já foi usada por muita gente de olhares atentos: “Do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento. Mas ninguém chama violentas às margens que o comprimem” – pois já está na hora de começar a chamar. Por menos vidraças nos noticiários! “Decifra-me ou devoro-te”, é o que eu escuto das ruas.

* * * * * * * * 

*Ana Beatriz Rosa, especial para o NR. É jornalista nômade e poeta praticante. Tem os sentidos voltados para experimentos artísticos e poéticas urbanas. Nas horas nem tão vagas garimpa olhares, palavras e ideias para o Café com Pitanga - um o espaço de comunicação antropofágica. Mora no Rio de Janeiro.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Mongolia: contra a crise na Espanha, o humor


É a receita de Mongolia, uma revista mensal que, com pouco mais de um ano de existência, tem como alvos privilegiados de seus ataques ferinos a monarquia e a Igreja, baluartes do conservadorismo espanhol

por Ricardo Viel, de Madri 
(o texto publicado é da Revista Retrato do Brasil, edição 71, junho de 2013, fruto de parceria mensal com o NR)
Em um pequeno povoado das Astúrias, no norte da Espanha, numa manhã de fevereiro, um senhor pregou no quadro de avisos da paróquia uma nota de falecimento. Nada de incomum por aquelas bandas, não fosse o fato de o anúncio tratar-se, em realidade, da capa de uma revista humorística e de o morto ser o primeiro-ministro espanhol, o direitista Mariano Rajoy. Em letras garrafais, a edição da Mongolia daquele mês informava algo de que muitos espanhóis desconfiavam: “Rajoy morreu”.

“Isso, de um senhorzinho avisar seus vizinhos de que esse governo está morto, é algo que, se fôssemos uma revista virtual, nunca aconteceria”, explica Eduardo Galán, 33 anos, um dos fundadores da revista mensal criada há pouco mais de um ano. “O papel é algo que tem mais impacto, nossa capa fica exposta nas bancas e instiga as pessoas a lerem a mensagem.” A ideia de “matar” o primeiro-ministro surgiu em janeiro passado, após a revelação de um escândalo envolvendo o financiamento irregular das campanhas do Partido Popular (PP), atualmente no poder. Rajoy demorou dias para dar explicações e, quando o fez, não convenceu. “Dizíamos entre nós: esse governo está morto, cheira como cadáver”, diz Galán. “Também fizemos uma brincadeira com o [diário espanhol] El País, que dias antes tinha publicado uma foto falsa do Hugo Chávez, sem apurar as circunstâncias. Fizemos igual: anunciamos a morte e esclarecemos que não sabíamos como nem quando tinha acontecido.”

Por provocações como essas, a publicação satírica vem conquistando fãs e desafetos no país de Cervantes. A revista é fruto do momento político e econômico pelo qual passa a Espanha. Foi criada por um grupo formado por cinco amigos – jornalistas, artistas gráficos e cartunistas –, que se viram desempregados ou subempregados por conta do “enxugamento” de vários meios de comunicação (e o fechamento de outros). A eles se juntou um advogado, espécie de mentor da trupe. Reuniram-se, conseguiram convencer três dezenas de conhecidos a bancarem, como acionistas, o projeto de 60 mil euros (cerca de 150 mil reais) e colocaram em marcha uma revista que mistura humor e jornalismo. Em meio à crise e utilizando uma plataforma considerada obsoleta por muitos (o velho papel), Mongolia parecia fadada ao fracasso. Não foi assim. A revista (que custa 3 euros por exemplar, cerca de 8 reais) teve uma tiragem inicial de 25 mil exemplares mensais e atualmente circula com cerca de 40 mil. O número de assinantes é crescente (hoje, beira os 2 mil) e em um ano o grupo lançou cinco livros relacionados com a publicação. Iniciaram a aventura com dinheiro suficiente para manterem-se por seis meses e hoje já não cogitam a possibilidade de fechar por falta de recursos – nem por outro motivo.

“Sentíamos que havia um espaço para uma publicação assim”, diz o argentino Fernando Rapa, 42 anos, responsável pela parte gráfica do projeto. “Ficamos 18 meses planejando, fizemos vários números experimentais e tínhamos medo de que alguém fizesse antes que nós.” Do Brasil, onde trabalhou em veículos como os diários Lance! e O Estado de S. Paulo, o desenhista trouxe algumas influências, como do Casseta & Planeta (da fase inicial, esclarece) e, principalmente, de O Pasquim. Também tem como espelho revistas satíricas francesas e argentinas e algumas publicações nascidas na Espanha no período posterior ao da ditadura de Francisco Franco (1938–1973) e que não existem mais.

Longe de ser um obstáculo, o momento atual se apresenta estimulante, dizem os criadores de Mongolia. Na década passada, época de bonança, em que todos os espanhóis acreditavam ser ricos (por conta dos empréstimos que os bancos ofereciam), não havia espaço para a contestação no país. O humor se afastou da crítica social. De repente, a bolha imobiliária estourou e a mensagem de que na Espanha não havia pobreza se esfumou. Vieram os protestos de rua e abriu-se espaço para o surgimento de uma revista que, com humor, coloca o dedo na ferida, diagnosticam os criadores de Mongolia. O fechamento, em 2007, do diário Público, o mais à esquerda que havia na Espanha e que agora mantém somente a versão on-line, foi a gota que fez transbordar o copo, avalia Rapa, ex-funcionário do jornal. “Os meios de comunicação tradicionais não atenderam a essa demanda que está nas ruas. Queríamos preencher esse espaço. Herdamos muitos leitores do Público, mas não só isso. Espanta-nos ver que nosso leitor é variado. Às vezes recebemos cartas escritas à mão, há muita gente idosa que nos lê.”

Mongolia tem uma política própria em relação ao conteúdo que produz. Nada do que é publicado em papel é disponibilizado virtualmente – a revista vive das vendas em bancas e das assinaturas e tem uma estrutura muito enxuta. Além disso, a ausência de publicidade (há pouquíssimos anúncios, todos ocupam pouco espaço e são, portanto, baratos) garante a independência necessária para atacar quem quer que seja. “Não somos contra a publicidade, só não aceitaríamos anúncios de bancos. E de prostituição, mas, nesse caso, enquanto for ilegal. A questão é que não podemos nos condicionar a isso”, diz Galán, o responsável, entre outras tarefas, pela divulgação da revista nas redes socais da internet. Embora aposte no papel, Mongolia tem mais de 80 mil seguidores no Twitter e 20 mil no Facebook. Algumas das brincadeiras feitas no mundo virtual acabam chegando à edição impressa. A internet também serve para medir o interesse dos leitores por certos assuntos e divulgar os muitos eventos que realizam – debates, viagens pelo país para promover a publicação, etc.

Para reduzir o custo e manter a independência, os fundadores da revista resolveram eliminar todos os intermediários possíveis. A cada edição, eles vão à gráfica, carregam os próprios carros com os exemplares impressos e os distribuem em Madri e arredores. O restante da tiragem é enviado por correio aos assinantes e distribuidores (como livrarias e bares) em outras cidades.

A primeira edição da revista, publicada em março do ano passado, trazia na capa a frase: “A Espanha tem uma saída (Barajas)”. Barajas é o aeroporto da capital espanhola, e a piada fazia referência à fuga, principalmente de jovens, em busca de trabalho em outros países – o desemprego na Espanha atingiu 27% da população economicamente ativa no final do primeiro trimestre, mas entre os jovens a taxa foi muito maior, 57%. No número seguinte, o alvo foi a monarquia: “O rei poderia estuprar você e nada aconteceria com ele”. A publicação listou cem coisas que o monarca espanhol, por ser, de acordo com a Constituição, uma figura “inimputável”, pode fazer e os demais mortais, não, como baixar filmes piratas na internet, fazer xixi na rua, etc. As edições seguintes foram “dedicadas” à Igreja, aos políticos, banqueiros e, em especial, à Casa Real.

A revista funciona numa sala minúscula, sem banheiro próprio, próxima à sede do Congresso dos Deputados (equivalente à Câmara dos Deputados brasileira), em Madri. O lugar é sublocado. Até as seis da tarde, ali funciona uma empresa de criação gráfica; depois, a Mongolia. O espaço é usado, sobretudo, na semana de fechamento da edição. No restante do tempo, cada um dos membros da equipe trabalha em sua própria casa. No final de fevereiro, eles preparavam a edição que teve na capa a foto do rei Juan Carlos com um tomate espatifado na cara. “Não tenho dúvida de que graficamente é nosso melhor trabalho”, diz, sem disfarçar o orgulho, o humorista e roteirista Darío Adanti, 37 anos, outro argentino. No mês passado, a Casa Real foi novamente o alvo principal da publicação. Num truque gráfico, que combinava letras em tamanhos muito diferentes colocadas sobre a foto da filha do rei, a infanta Cristina – que está sendo investigada pelo suposto enriquecimento ilícito de seu marido –, lia-se em letras enormes: hija de puta. Uma fonte minúscula preenchia os espaços e a frase que se formava, quase imperceptível, era: “Filha dos reis da Espanha é imputada” (denunciada).

Os ataques à família real foram vários, mas foi contra os católicos radicais a principal briga. Por alterar a imagem “oficial” da Virgem de Macarena (padroeira de Sevilha) em um panfleto de divulgação da revista na cidade, o grupo foi atacado pelo prefeito e sofreu ameaças de morte. “O que não sabíamos era que a imagem da virgem tem copyright”, diz Eduardo Bravo. “Ou seja, por qualquer santinho que você queira fazer tem que pagar direitos autorais. Esses caras da Igreja vão direto pro inferno, serão os primeiros. Jesus Cristo falou dos mercadores, não foi? Esses aí podem rezar quanto quiseram que vão queimar”, se diverte o espanhol. “Disseram que iam fazer com a gente o que se fez na Guerra Civil [1936–1939], que iam nos matar e que ninguém ia encontrar nossos corpos. Há gente doente da cabeça, que precisa ir ao médico. Dizer que uma imagem de madeira é a mãe deles...”, diz Galán. “Só se fossem filhos do Pinóquio”, completa Bravo, recebendo os cumprimentos do xará, que gargalha com o comentário.

Assim trabalha a equipe de Mongolia. Ideias e piadas surgem a qualquer momento, em qualquer lugar: durante jantares, no táxi indo para um show, no bar tomando cervejas ou durante uma entrevista. Ainda que recheada de piadas inocentes ou sem maior objetivo do que provocar o riso, Mongolia é uma publicação que tem como principal marca a contestação, a crítica e a denúncia. Por trás do lema “Uma revista sem mensagem nenhuma”, há uma ideologia clara: a equipe é formada por ateus. E de esquerda. Muito mais à esquerda do que muitos dos que hoje na Espanha se dizem de esquerda, ressaltam os membros da equipe, que encaram as bancas como “trincheiras”.

Quando questionados sobre os limites para o humor, a resposta é simples: a lei. Não há tema tabu: morte, opção sexual, credo, raça, tudo pode ser piada, dependendo do bom senso e do aval de Gonzalo Boye, um advogado criminal de 47 anos que aceitou o desafio de editar a revista e atuar como “censor”. Tudo que é publicado passa por sua lupa legal. “Outro dia, iríamos fazer uma piada com uma pessoa que todo mundo sabe que é viciada em cocaína”, relembra Bravo. “Só que o Boye nos explicou que era um crime, que poderia dar cadeia. Chegamos à conclusão de que não valia a pena ir para a prisão por uma piada.” Na edição de abril, a revista saiu com um texto que tinha mais de 30% das palavras riscadas. Eram os vetos do advogado. Ao lado vinham suas anotações a caneta.

Curiosamente, uma das seções de Mongolia que mais sucesso e repercussão têm é a que é publicada nas últimas páginas da revista, a cargo do experiente jornalista catalão Pere Rusiñol. É a parte das reality news. Da página 30 à 45, o que se lê são reportagens investigativas, que tocam em assuntos que muitos jornais, por questões diversas, não se atrevem a publicar. Muitas das histórias são passadas por colegas de outros meios – anonimamente – que sabem que não conseguiriam publicá-las nos veículos para os quais trabalham. Escândalos envolvendo ministros, negócios escusos entre empresários e políticos, assuntos sigilosos envolvendo a monarquia, questões da transição à democracia que nunca foram esclarecidas (e ficaram esquecidas) são alguns dos temas que levaram a seção a ser considerada por muitos como exemplo do melhor jornalismo feito hoje na Espanha.

Embora publique piadas pesadas e denúncias graves, a revista, até agora, não sofreu nenhum processo. O número dois, que falava dos privilégios do rei, trazia na capa a advertência: edição para ser apreendida nas bancas. Nada aconteceu. “Nós levantamos duas hipóteses para não termos sido processados”, teoriza Galán de maneira brincalhona. “Para não dar publicidade à revista é uma hipótese. A outra é que tudo o que nós publicamos é verdade e eles não têm como contestar.”

Após um ano de existência de Mongolia, o balanço é amplamente favorável. Passados seis meses, os criadores começaram receber salários e a pagar os colaboradores – como acordado no início. Vieram vários prêmios, um deles, recebido no mês passado, pelo trabalho da publicação na defesa dos valores humanos. Os leitores e seguidores nas redes sociais continuam crescendo, e artigos elogiosos, como os que saíram nos diários americanos The New York Times e The Washington Post e no italiano Corriere della Sera, se acumulam. Artistas, escritores e intelectuais de importância na Espanha literalmente vestiram a camisa da revista e fazem publicidade gratuita.

Talvez o maior desafio seja manter-se no topo. “É, isso assusta”, diz Bravo, que coça a longa e grisalha barba. “Já falamos sobre isso. Há duas saídas. Uma é reinventar-se sempre. Ainda achamos que podemos melhorar. Eu sempre gosto mais da última edição. A segunda opção é ser como o Chaves [personagem humorístico da TV]: todo mundo já sabe o final da piada, mas é tão bom que todo mundo ri.”

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Ricardo Viel, jornalista, atualmente em Lisboa, Portugal

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Sem imposto

por Júnia Puglia     ilustração Fernando Vianna*

Por que preciso tanto que gostem de mim? Que gostem de mim eu quero, valorizo, aprecio, ignoro, desprezo, lembro, esqueço, guardo, incentivo, desencorajo, manipulo, mil coisas, mas, acima de tudo, preciso.

Preciso gostar de outras pessoas também, mas preciso mesmo é que gostem de mim. Eu disse precisar, entendeu bem? Querer, esperar é uma coisa, precisar é outra.

E é aí que a coisa pega. Se eu pudesse simplesmente receber o que me é oferecido, na base de que a gente colhe o que planta, por exemplo, seria tão mais fácil viver. Mas um plantar distraído, relaxado, como quem cuida de gerânios e pepinos no quintal, não de um canavial para produção de etanol.

Aliás, eu queria que gostar fosse tão espontâneo quanto marias-sem-vergonha nas pirambeiras ou cogumelos no pasto depois da chuva. Estão lá porque sim. As florzinhas desencanadas, desavergonhadas, nascem e se abrem todas porque bateu um vento em algum lugar e levou as sementes por aí. E os cogumelos, bem, estes se aproveitam dos nutrientes que abundam nos pastos molhados, e pronto. Dispensam frescuras. Se a gente pudesse viver sem essa idéia fixa de que tem que seduzir as pessoas, cultivá-las e mantê-las ao nosso lado; se deixássemos que a própria vida, os ventos, as energias se encarregassem do intercâmbio de sentimentos, seria como ter um perfil no facebook, só que muito mais interessante, onde as outras pessoas passassem para deixar e levar afeto e outras coisas, alimentando uma rede de troca incessante.

Se a gente pudesse relaxar e gozar, simplesmente, seria muito bom. Já pensou? Não precisar que gostem de você?

Que libertação! Ficar ali, vivendo a vida, vendo novela ou tomando sopa, indo pro trabalho de ônibus ou cuidando dos porcos, lendo ou cozinhando, viajando ou tomando banho, sem precisar que alguém expresse um amor enooorme por você, mas recebendo tudo, segurando o que vale a pena e rebatendo o que não preste ou não te sirva. Isto sim é que é um bom sonho, que, como se sabe, não paga imposto.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Nada mudou 4 anos após enchente em Atibaia

por Gabriela Araújo*

As fortes enchentes que atingiram a cidade de Atibaia, no interior de São Paulo, há quase quatro anos, deixaram muito mais do que prejuízos econômicos. A situação persistente dos desabrigados do Campo do Santa Clara, num alojamento “provisório” desde 2010, no bairro do Caetetuba, na periferia da cidade, mostra que as feridas são muito mais profundas.

No mês de dezembro de 2009, alagamentos originados pelas chuvas deixaram, aproximadamente, 900 famílias desabrigadas em vários bairros do município. Dessas, 35 famílias – cerca de 200 pessoas – “moram” até hoje em abrigos improvisados pela Prefeitura que, na época da instalação do alojamento, era administrada pelo PV (Partido Verde).

O que seria provisório já passou dos três anos e 11 meses. Ao observar as dependências internas do lugar, cada porta dá vista a espaços compostos de quarto e banheiro. São poucos metros onde moram até 15 pessoas. O ambiente não tem isolamento térmico ou resistência à umidade.
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O sentimento geral é de revolta. Rose da Cunha, que mora com dois filhos num dos pequenos compartimentos, conta que não queria se mudar para lá, pois previa que a família se sentiria em “uma lata de sardinha”. Em abril de 2010, 14 famílias retiradas de humildes barracos na Vila São José, bairro às margens do rio Atibaia, passaram a morar em contêineres instalados no campo de futebol. Depois, foram para barracões de madeira fina (que dão forma ao alojamento em que ainda estão) e quase colocados embaixo de telhas de amianto, substância cancerígena, proibida no Estado de São Paulo e que só foi removida após denúncias originadas neste NR.

A Prefeitura de Atibaia, à época, informou aos desabrigados que a situação duraria apenas seis meses. Após esse prazo a promessa era de que as famílias seriam transferidas a um conjunto habitacional que até hoje não foi entregue. Depois de vários adiamentos a nova previsão de entrega ficou para o início do ano que vem.

Para a arquiteta e urbanista Raquel Rolnik, professora da Universidade de São Paulo (USP) e relatora especial da ONU para o direito à moradia adequada, é necessário, em situações como essa, enfrentar discriminação, atraso na distribuição de ajuda e nos trabalhos de reconstrução. “A situação consolida laços nos novos assentamentos e torna ainda mais complexo o reassentamento das famílias nos lugares de origem ou em novos territórios”, disse ao NR.

Outro desabrigado, Wilson Santos, explica a angústia da espera. Em cada fala, a lágrima ameaça cair. “Trabalhei a vida inteira e não tenho lugar digno para viver. A gente sente como se tivesse viajando o tempo todo. Só que a viagem nunca tem fim”, comenta.

O que diz a prefeitura 

Procurada pela reportagem do NR, a Prefeitura de Atibaia, hoje administrada pelo PSD (Partido Social Democrata), declarou em nota que tem a responsabilidade principal de viabilizar novas unidades habitacionais, mas não esclareceu quando os moradores vitimados pelas enchentes e pelo descaso sairão do local improvisado. “Desde o início deste ano, a Administração Municipal viabilizou 1.480 unidades pelo Programa Minha Casa, Minha Vida [projeto viabilizado pelo Governo Federal], três vezes mais do que foi feito nos últimos 30 anos. 700 unidades serão entregues até o fim do próximo ano”.

Sobre as famílias no Campo do Santa Clara, o texto diz que estão cadastradas no Programa Caetetuba II, cujas moradias estariam em fase final de construção, com “previsão de entrega para o início de 2014”. Não estipulou, no entanto, data para a finalização do conjunto habitacional prometido.

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Gabriela Araújo, especial para o NR.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Avós das ruas


por Izaías Almada*

Há alguns anos era comum se ouvir de alguns especialistas sobre coisa nenhuma aqui no Brasil que política e futebol não se misturavam. Que nos digam as ditaduras brasileiras e argentinas dos anos 60 e 70, para ficar em dois exemplos próximos e emblemáticos…

Transformado num mercado de negócios dos mais gananciosos e estranhos, onde mafiosos russos, milionários árabes, bancos lavadores de dinheiros, sonegadores de impostos, empresários inescrupulosos, alguns já vivendo em paraísos fiscais, jornalistas corruptos, celebridades de pés de barro, emissoras de televisão, empreiteiros, advogados de porta de cadeia, lobistas e políticos profissionais de duvidosa formação moral deitam e rolam, o futebol tem cada vez mais a ver com política e poder.

O ano que vem está aí para desmentir os “especialistas” de antanho. Copa do Mundo e eleições majoritárias no país, agora com “nova oposição” (rs, rs, rs…) vão dar o que falar e embaralhar cada vez mais a cabeça dos sociólogos, filósofos, historiadores, políticos profissionais com alguma decência, esportistas, eleitores, torcedores, jornalistas, manifestantes de rua, humoristas, blogueiros e comentaristas de blogues, Datenas e Ratinhos, CQCs, partidos de esquerda, de centro e de direita, deputados e senadores, associações médicas, ativistas e black blocs, motoristas de taxi, atrizes globais, garis e petroleiros, encanadores e banqueiros, filósofos, príncipes e poetas, classe média paulista, carnavalescos, corretores de imóveis, baristas, passeadores e protetores de cães, nessa imensa salada russa, onde todos falam e ninguém ouve ninguém…

Por falar em especialistas e nos lembrarmos acima da relação futebol e política durante as ditaduras brasileira e argentina, tenho tentado ler algumas das análises feitas sobre o nosso último mês de junho, chamado o mês do “clamor das ruas”, onde muita gente quis e quer acreditar que o país, necessitado de mudanças, foi para as ruas protestar “contra tudo que está aí”… Embora não se saiba exatamente que “tudo” é esse que se tem que ser contra e nem quem organizou as “manifestações espontâneas” de junho, se foi a esquerda radical e mal (in)formada ou a direita encurralada e que pretende botar as manguinhas de fora em 2014, o certo é que o resultado dos “grandes protestos de junho”, para além do recuo no preço das passagens de ônibus urbanos, foi mesmo o vandalismo das depredações, dos ônibus queimados, da interrupção do trânsito até à invasão de laboratórios para salvar cachorrinhos do “choque elétrico”. Tudo salpicado pela eterna repressão de uma polícia que não aprende a combater distúrbios no Brasil, além da pancadaria generalizada…

Fico me perguntando, ingênuo que sou em política, por qual razão passou a se cobrar do atual governo (entenda-se o período Lula/Dilma) que ele resolva em “24 horas” graves mazelas que se formaram, adensaram e proliferaram nos últimos 500 anos? Mazelas sociais e gravíssimos problemas praticados em todos os níveis pelos governos anteriores a esse, em maior ou menor escala, consoante obediência às instruções e determinações do FMI, do Banco Mundial e da Casa Branca com seu manual de “democracia do cassetete”?

A voz das ruas… A voz das ruas… De tanto ouvir a expressão “para lá e para cá”, como dizia uma tia minha – esta especialista em massas de pães de queijo e bolos de fubá – a sonoridade lembrou-me das avós das ruas e das praças de Buenos Aires. Um movimento feito com o coração sangrando de centenas e centenas de mães e avós que perderam seus parentes queridos num dos mais impiedosos e selvagens genocídios do mundo contemporâneo. Mães e depois avós, avós da Plaza de Mayo, protesto inesquecível do coração ferido da América Latina. E que já levou generais e ex-presidentes argentinos, torturadores confessos, aos bancos dos réus e até à prisão perpétua. Essas, sim, poderão ser chamadas de “A voz das ruas”. E por aqui? O que têm a dizer as nossas inúmeras Comissões da Verdade?

Contudo, já estamos no limiar de 2014, ano em que o país mostrará ao mundo a verdadeira relação entre política e futebol, com o mês de junho – quem sabe? – se destacando novamente com os grandes protestos que não levam a lugar nenhum, mas que, com toda certeza, tentarão conturbar a paz dos estádios em plena Copa do Mundo…

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Izaías Almada, mineiro de Belo Horizonte, escritor, dramaturgo e roteirista, é autor de Teatro de Arena (Coleção Pauliceia da Boitempo) e dos romances A metade arrancada de mim, O medo por trás das janelas e Florão da América. Publicou ainda dois livros de contos, Memórias emotivas e O vidente da Rua 46. Como ator, trabalhou no Teatro de Arena entre 1965 e 1968. Mantém no NR a coluna mensal Pensando Alto

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