“Não espero nem peço que se dê crédito à história sumamente extraordinária e, no entanto, bastante doméstica que vou narrar.”
Edgar Allan Poe, ‘O Gato Preto’
Há cerca de um ano, apareceu na casa amarela que avisto do meu quintal uma placa de “aluga-se”. Simpática, a casinha é bem iluminada pelo sol e tem uma grande varanda na frente. Por curiosidade, e uma certa mania que tenho de ver imóveis em geral (reflexo de quem mora e já morou em muitas casas alugadas?), peguei a chave no bar da esquina e fui ver a casa.
O terreno é íngreme: a casa é incrustada num morro. Uma escada comprida e estreita leva à entrada. Passados os degraus um tanto incômodos, à direita está o acesso à casa, feito pela porta da cozinha – uma marca registrada desse tipo de construção tão comum em São Paulo: casas geminadas, quase sem terreno, encarapitadas umas nas outras, construídas por um unico dono (e talvez em algum momento de sua origem sendo apenas uma única casa) e depois alugadas continuamente, passando por dezenas de locatários e suas histórias ao longo dos anos. À esquerda desse primeiro cômodo, o tradicional “banheiro na cozinha”; à direita uma sala mínuscula, um quarto pequeno e outro grande, dando para a gostosa varanda.
Se, ao invés de acessar a parte interior da casa ao término da incômoda escada inicial, o visitante seguir pelo corredor lateral, chegará a um pequenino quintal cimentado; acima dele, ainda nos limites do terreno da casa, uma parte de terra com uma única árvore: uma mangueira, não muito grande, não sei se nova ainda ou se pequena pela falta de espaço para crescer.
Depois o muro e atrás dele o resto de morro com o matagal maltratado que se estende até o muro da próxima casa, que já dá frente para a rua de cima. Uma casa simples, mas gostosa. Uma casa que eu moraria quando era mais nova, pensei.
Passado pouco tempo, a casa foi alugada. Do meu quintal tive as primeiras visões dos habitantes e visitantes da casa: meninos e meninas jovens, uma rede na varanda. Gostava de observá-los conversando, um deitado na rede com um laptop ou livro no colo, outro sentado no muro fumando com longas e despreocupadas baforadas.
Às vezes havia festas: acendiam velas pela varanda e daqui eu podia ouvir a música, de boa qualidade e em volume razoavelmente aceitável para os vizinhos. No outro dia, ao levantar cedo com minha bebê, via a varanda com cara de ressaca, os restos da festa iluminados pelo sol. Os ocupantes da casa dormiam lá dentro, talvez muitos em uma só cama, talvez com amigos sem rumo dormindo no sofá da sala – se é que existia um.
Aos poucos identifiquei pelo menos uma moradora fixa da casa da varanda: uma menina, cabelos escuros e longos. Se nos finais de semana a varanda servia para as festas, durante a semana eu a via estendendo roupa lavada com calma e esmero. Sentia uma certa identificação com ela – era como se visse a mim mesma há algum tempo atrás, ou a uma amiga próxima.
O tempo passou e a casa ao lado da casinha da varanda começou a ser aumentada no tradicional estilo puxadinho. O corredor lateral, antes aberto e iluminado, foi sufocado por um grande muro – a recém-erguida parede da casa ao lado. Pensei com tristeza que as janelas da casa da varanda, todas laterais, deviam ter sido praticamente tapadas pela parede vizinha, ainda sem acabamento. Era uma casa simples mas agradável; tornou-se uma casa simples e escura. Mas a varanda, simpática e iluminada, permaneceu.
Só que a alegria da varanda sumiu. Ainda via a rede pendurada, mas agora sempre vazia. Eventualmente via algumas roupas no varal, mas nunca mais pude observar sua jovem e esmerada lavadeira estendendo as peças. Nunca mais festas, velas ou música. A varanda silenciara. Pensei que talvez a menina dos cabelos escuros e longos tivesse se mudado.
Na minha casa não tem gato nem cachorro. E, apesar de bem acessível para os que andam pelos telhados da vizinhança, nunca tive visitantes de quatro patas e bigode. Faz no máximo um mês que comecei a receber a visita insistente de um gatinho branco e cinza.
Miador e nada arisco, ele passou a viver na minha lavanderia; entra aqui fugindo de um enorme e assustador gatão branco e – folgado – já apareceu até mesmo dentro da minha sala (e fugiu, assustado com o meu susto). Tomei uma certa simpatia pelo bichinho e certa vez lhe ofereci pedaços de presunto, que ele retribuiu se esfregando à maneira dos gatos. Esta semana ele apareceu demais por aqui, a ponto de eu ter considerado a possibilidade de efetivamente adotá-lo como morador da casa.
Quarta-feira à tarde juntou gente na rua. Um rapaz, bermuda e camiseta, chorava muito e falava incessantemente ao telefone. Polícia, bombeiros, a vizinhança em volta. A menina dos cabelos escuros e longos se matou.
Enforcou-se na mangueira, e não se sabe quando. Foi vista pela última vez na segunda-feira. Tinha vinte e cinco anos; deixou a rede pendurada e algumas roupas no varal. Os outros habitantes da casa haviam se mudado e ela vinha morando sozinha há algum tempo. Não tinha família na cidade. O amigo de bermuda e celular permaneceu ao redor da casa durante todo o dia, até o carro dos bombeiros sair, já de noite. Não o vi entrar na casa novamente.
O gatinho branco e cinza esteve aqui em casa desde cedo. Uma senhora veio ao meu portão e disse: esse é o gato da moça que se enforcou.
A luz da varanda está acesa desde então. Ninguém parece ter tocado na rede ou nas roupas do varal. Ontem à noite o gatinho miou forte aqui no quintal. Não o vi, mas sei que é ele.
Acendi uma vela para a moça dos cabelos escuros e longos e levei minha filha para dormir comigo.
Sofia Amaral, produtora e roteirista, especial para o Nota de Rodapé. Com ilustração de Caco Bressane